sábado, 18 de outubro de 2025

Camp não é Kitsch – é mau gosto intencional


Camp (que à letra se traduz por "acampar") é uma gíria originária dos EUA que apareceu para denotar um certo tipo de comportamento demasiado exagerado na sua teatralidade. Um adjetivo, portanto, que significa aquela artificialidade de muito mau gosto. Mas foi com pretensões artísticas e estéticas que esta afetação se disseminou intencionalmente para exibir o ridículo com ironia. Ora, Susan Sontag pegou no assunto e, em 1964, publicou um ensaio que se tornou clássico acerca do tema: Notes on Camp. 

O texto de Susan Sontag é um dos ensaios mais influentes sobre estética e cultura do "gosto pelo mau gosto" do século XX. Camp é a exibição do mau gosto de forma consciente, provocatória, irónica e sofisticada. Não se trata de não perceber que é kitsch, mas de apreciá-lo justamente porque é kitsch, porque é teatral, artificial, “over the top”.


Sontag defende no ensaio: O “camp” é uma sensibilidade, não uma doutrina ou filosofia. É uma forma de ver o mundo que transforma o sério em jogo, o feio em belo, o banal em extraordinário. O “camp” separa a aparência da essência. Não valoriza a autenticidade ou a naturalidade, mas o artifício e o estilo como fins em si mesmos. O “camp” é profundamente ligado à ironia. Ele aprecia as coisas “porque são más”, mas más de um modo delicioso, revelador ou libertador. O “camp” tem uma relação com a cultura queer. Embora Sontag não diga isso explicitamente, o texto foi lido como uma celebração da sensibilidade gay – que, historicamente, soube rir da seriedade da cultura dominante e transformar o “excesso” em resistência estética.


Exemplos típicos de “camp” são drag queens, filmes de série B, performances melodramáticas, roupas de glamour excessivo, óperas sentimentais ou filmes como os de John Waters (Pink Flamingos).

Ou Celebridades camp: Judy Garland, Cher, Lady Gaga, Madonna -- todas incorporam, em algum momento, esse gosto pela teatralidade e pela auto-paródia. Cultura visual: letreiros neon, mobiliário dos anos 1950, filmes com efeitos especiais rudimentares,  tudo que é “too much”, mas encantador.


Camp é o triunfo do estilo sobre o conteúdo, da estética sobre a moral, da ironia sobre a tragédia. Ele celebra a beleza da superfície, a elegância do exagero, a liberdade do fingimento. É uma forma de se libertar do peso da seriedade e do bom gosto “oficial”. Camp é uma forma de ver o mundo como um fenómeno estético. Tudo na vida é estilo, não substância. Sontag sugere que o camp é uma visão de mundo, uma maneira de olhar tudo como espetáculo – uma estetização radical da existência. O ensaio de Sontag propõe que o camp seja uma estética da liberdade, uma forma de transformar o peso do mundo em leveza, a seriedade em jogo, o bom gosto em ironia.

Vários cineastas transformaram o camp numa linguagem cinematográfica deliberada, como John Waters, autor de Pink Flamingos (1972) e Hairspray (1988). Fez da vulgaridade e do grotesco uma forma de beleza. A atriz Divine é uma figura icónica, uma paródia hiperbólica do feminino. Pedro Almodóvar do camp ibérico, mistura melodrama, ironia e paixão, como em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988). Baz Luhrmann, em Moulin Rouge! (2001) e Elvis (2022), transforma o camp em espetáculo visual total – artifício elevado à categoria de virtude.

O mundo da moda adotou o camp com entusiasmo. Os estilistas perceberam que o “excesso”, o “artificial” e o “teatral” eram formas sofisticadas de expressão estética. Versace, Vivienne Westwood, Moschino, Jean Paul Gaultier – todos exploraram o camp como celebração do exagero e da ironia. Gucci, sob Alessandro Michele, reinventou o camp como “nostalgia excêntrica”. Em 2019, o Met Gala teve como tema: “Camp: Notes on Fashion” em homenagem direta ao ensaio de Sontag. Lady Gaga, por exemplo, fez quatro trocas de roupa na passadeira vermelha como pura encenação camp. Hoje, o camp também é interpretado como um sintoma da pós-modernidade: a dissolução da fronteira entre “alta cultura” e “cultura popular”; o triunfo da ironia sobre a seriedade; a valorização da performance sobre a “autenticidade”. Em certo sentido, nas redes sociais vivemos numa era camp – onde quase tudo é encenação, autoparódia, “metalinguagem”. São exemplos figuras como Berlusconi, Boris Johnson ou mesmo Donald Trump, com o seu excesso, o exagero, o grotesco – tudo calculado como show, nesse sentido, é camp. Políticos caricatura que são adorados precisamente por isso.

o “camp” é diferente do “kitsch”, com o qual é frequentemente confundido. Há uma diferença subtil, mas decisiva entre ambos. O termo kitsch vem da cultura alemã do século XIX, e foi muito explorado por pensadores como Clement Greenberg, Theodor Adorno e Hermann Broch. Refere-se à arte sentimental, falsa, de mau gosto, que tenta comover, mas de forma fácil e banal. Exemplos típicos são os quadros de anjos dourados e pastorzinhos em lojas de recordações. Ou esculturas de porcelana “românticas”. Filmes ou músicas que tentam emocionar o público à força, com sentimentalismo e clichés. Publicidade e telenovelas lacrimosas. O kitsch quer ser belo e sério sem a intensão de ser vulgar, mas é. É inconsciente do seu ridículo. Como dizia Milan Kundera: "o kitsch é a negação absoluta da merda". Ou seja, o desejo de não querer ser feio, trágico, ambíguo. Mas é. É a estética da ilusão doce. O camp pode parecer kitsch, mas é enganador. E goza com isso. É a ironia lúcida aplicada ao artifício.


Kitsch quer emocionar e parecer belo. Camp revela o engano – diverte-se com o facto de tudo ser artifício. O camp é, portanto, uma forma de inteligência estética; o kitsch, uma forma de ingenuidade estética. É o momento em que o gosto pelo mau gosto se transforma em filosofia do olhar – uma forma refinada se ironia. O kitsch aparece associado ao populismo político apelando a emoções simples e sonsas. O bom povo da pátria imaculada com os seus valores da família. É a estética da pureza moral sonsa. Regimes autoritários, tanto de direita como de esquerda, foram os grandes paladinos do kitsch.
Emoção fácil, não de reflexão, teatralizando um embuste de belo estereotipado. Milan Kundera chamou a isso “kitsch totalitário”. 

A publicidade é um laboratório de kitsch & camp simultâneos. O kitsch publicitário vende emoções puras: “família feliz”, “mãe perfeita”, “o carro que realiza o seu sonho”. É o kitsch do conforto emocional. Mas a publicidade contemporânea também aprendeu com o camp. Usa o exagero irónico (“tão mau que é bom”), o autoparódico, o absurdo estilizado. No fundo, o camp tornou-se uma estratégia do marketing pós-moderno. Nas redes sociais, a fronteira entre kitsch e camp praticamente desapareceu. O kitsch manifesta-se na busca pela emoção artificial e pela beleza idealizada: selfies filtradas, mensagens de “autoajuda” e “gratidão”, frases motivacionais sobre “ser feliz todos os dias”. É o kitsch da vida perfeita encenada. O camp surge na autoconsciência dessa encenação: criadores que se riem dos clichés, que se filmam chorando de propósito, que fazem humor com o drama da própria vida. As redes são um imenso palco onde todos os papéis se misturam: cada “influencer” é uma atriz do kitsch. Cada “meme” é uma peça do camp.

Se olharmos mais fundo, há uma melancolia existencial nisso tudo. O kitsch e o camp são respostas diferentes ao vazio de sentido da modernidade tardia. Filosoficamente o camp é nietzschiano: reconhece que a vida é teatro, máscara, aparência. Em vez de buscar o “verdadeiro”, o camp cria o “brilhante”. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, já intuía isso: “Só como fenómeno estético a existência e o mundo se justificam eternamente.” O camp leva essa frase ao extremo: se tudo é teatro, sejamos atores conscientes. 

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