domingo, 22 de outubro de 2023

O diálogo entre Israel e a Palestina, e o fundamentalismo de ambos os lados



A partir de 1960, no mundo islâmico, tal como no Ocidente, as subtis mudanças ideológicas começaram na academia. Antes do fundamentalismo emergir em outros lugares, alunos islamistas na Palestina já tinham obtido o controlo das universidades, que outrora tinham sido as fortalezas do nacionalismo secular.

Para entender a centralidade do fundamentalismo no conflito da Palestina é preciso recuar um pouco no tempo. A Palestina abriga a mais antiga comunidade cristã do mundo, dividida em inúmeras Igrejas que atualmente estão em declínio. 
Mas a população, durante o século XX, havia sido relativamente ocidentalizada e secularizada. Hoje na Palestina, pelo menos 85% são muçulmanos, quase todos sunitas.

A Palestina, depois da Primeira Guerra Mundial, e entre 1920 e 1948, esteve sob administração britânica por mandato. Durante esse período decorreu uma migração significativa de judeus para esse território, que supostamente devia ter terminado com a partilha do mandato em dois Estados: Israel e Palestina. Mas o que veio ao de cima foi apenas um Estado de Israel aos olhos de muitos muçulmanos. E a mera existência de Israel passou a constituir uma afronta ao “povo árabe”. Sim, para os muçulmanos, os palestinianos são povo árabe.

Em 1967 deu-se a Guerra dos Seis Dias, e a partir daí o conflito entre o povo árabe e o povo judeu agudizou-se ainda mais até aos dias de hoje. No entanto, pelo povo árabe, quem dá a cara é o islão conservador, sem os traços daquele modernismo que se identifica com o chamado “Ocidente”. Entre 1936 e 1939 tinha havido uma revolta popular anticolonial e antissionista. Uma guerrilha rural liderada por Izz al-Din al-Qassam, hoje considerado o pai fundador da resistência islâmica na Palestina, deu o seu nome ao Hamas. Entre 1947 e 1948, na luta contra a instauração do Estado de Israel, destacou-se a Irmandade Muçulmana do Egito, considerada a mãe do Hamas na organização das suas células na Palestina. Isso não evitou a fragmentação dos palestinianos em grupos dispersos de refugiados na Jordânia, Síria e Egito.

O renascimento do nacionalismo palestino começou a surgir em finais da década de 1950. No entanto, na Jordânia, que absorveu a maior parte dos refugiados, a integração da Irmandade Muçulmana no sistema da monarquia absoluta causou-lhe a perda da credibilidade. Contudo, a OLP, o novo nacionalismo palestiniano, que surgiu nos campos de refugiados da Jordânia, não teve como motor o pendor religioso do islamismo. A OLP definiu a sua meta em termos não religiosos, ou seja, a implantação de um Estado Secular Multiconfessional. E como únicos a desafiar o poder de Israel, o seu nacionalismo atingiu o auge na década de 1980. 

Mas, entretanto, em 1979, chegou a Revolução Islâmica Khomeini, no Irão. E então o fulgor da luta palestiniana adquiriu um novo ímpeto. Os debates dentro da comunidade palestina levaram à evolução de um movimento islamista independente da OLP, até então a única detentora da legitimidade nacionalista. Israel inicialmente apoiou os islamistas, acreditando serem uma alternativa aos nacionalistas da OLP não tão difícil de combater, e fator de divisão.

Os fracassos da OLP nos processos de paz se combinaram perfeitamente com os sucessos da oposição religiosa. No contexto palestiniano, a onda fundamentalista começou com a primeira intifada (1987-1993). A OLP de Arafat só parcialmente controlou a intifada; nos confrontos com soldados israelitas, a tendência fundamentalista cresceu espantosamente, e logo se constituiu como a segunda força política alternativa à OLP. A sua emergência se beneficiou do facto de que as mesquitas eram a última instituição não desmantelada por Israel.

Em finais de 1980, o Jihad Islami, de Fathi Shiqaqi, ainda era o grupo fundamentalista mais ativo nos territórios ocupados. Mas logo de seguida foi ultrapassado pelo Hamas - Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de Resistência - filho indisciplinado da Irmandade Muçulmana. Ativistas tais como o xeique Ahmad Yassin criticavam os “irmãos” como sendo gradualistas demais e não assertivos o bastante contra os sionistas. Numa tentativa (bem-sucedida) de ultrapassar a Fatah em extremismo, desenvolveu-se uma ideologia islamista que substituiu a nacionalista e secular da OLP. Essa nova ideologia está articulada na Carta do Hamas, 1988, o seu documento fundador. 

Na visão do Hamas, a raiz do problema são os judeus que querem controlar o mundo. Essa ideologia religiosa inverte a incorporação do nacionalismo. Para o Hamas a questão da Palestina como Estado é secundária. O que lhe interessa é o islamismo. E o islão basta estar salvaguardado na Esplanada das Mesquitas, ou Mesquita Al-Aqsa. Ou seja, o caso se resolve pela sua presença em Jerusalém, cuja santidade tem um alcance universal. Enquanto Terra de Deus, a Palestina integra o Dar al-Islam, que é pertença de todos os muçulmanos. São interessantes estes paralelos do Hamas com o sionismo de direita em Israel, que considera a Terra de Israel (terminologia judaica para a Palestina) como pertencente a todos os judeus do mundo. É o fundamentalismo judaico que, numa linha semelhante de argumentação, considera a Terra de Israel a casa de Deus. Assim, para ambos estes lados, a partilha com o inimigo, o infiel, está fora de questão. 

A ideologia do Hamas revelou-se tão acirrada como a ideologia sionista de Israel c
om a sua oposição à tendência nacionalista de Arafat. Daí que as relações entre essas duas grandes tendências palestinas exibam uma mistura ambivalente de inimizade e até de violência aberta entre si, cuja moderação no discurso para fora é apenas tática, para não perder apoio do exterior à causa palestiniana.

A tensão entre a OLP e o Hamas chegou ao auge com a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993. Diametralmente opostos ao processo de paz, os islamistas tentaram miná-lo atacando-o. Na sua luta, o Hamas em geral não diferenciava entre combatentes e civis, dando como argumento a suposta militarização da sociedade israelita. Israel se retiraria progressivamente dos territórios ocupados e permitiria ali o estabelecimento da Autoridade Palestiniana numa "espécie" de Estado Palestiniano. E Arafat, por seu lado, se comprometia a manter os opositores islamistas violentos sob controle. Os pontos remanescentes de desacordos territoriais e demográficos seriam negociados posteriormente. Mas Israel prosseguiu com a construção de assentamentos, os tais colonatos que só tem dificultado a boa-fé dos acordos. E a Autoridade Palestina falhou lamentavelmente em toda a linha de supressão do terrorismo partindo da Faixa de Gaza. É difícil determinar se essas faltas foram premeditadas ou se resultaram de um ciclo de mal-entendidos e da violência dos extremistas de ambos os lados.

Continuar as ações “militares”, mais propriamente (do ponto de vista de suas vítimas civis), “terroristas”, era a mais efetiva estratégia contra a Autoridade Palestina, considerada colaboradora do inimigo. Seguem-se, já nos anos 1994 e 1995, os sequestros e ataques suicidas contra alvos militares e civis – são os primeiros homens-bomba palestinos. As reações punitivas israelenses automaticamente vitimaram mais a população civil palestina do que os perpetradores e seus recrutadores. A autoridade de Arafat foi duplamente minada: aos olhos de Israel, por ele não conseguir prevenir atos terroristas; e aos olhos dos palestinos, por ele não conseguir protegê-los da ira de Israel.

Para a maioria dos palestinos, o Hamas era sinónimo de uma rede de assistência social, mais ampla e honesta do que a oficial da Autoridade Palestiniana. Em consequência, o apoio popular à solução islamista cresceu. Um novo governo de direita em Israel congelou a negociação com Arafat, acusando-o de incentivar o terror. Além disso, o espaço de manobra da AP já diminuíra: desde 1994, fechamentos punitivos e outras medidas impostas por Israel geraram o empobrecimento dos palestinos, limitaram as possibilidades de clientelismo de Arafat e conduziram a políticas de repressão, que só aumentaram a frustração dos palestinos, sem favorecer Israel. O Hamas obteve vários sucessos – o mais significativo sendo a volta de seu líder espiritual Yassin a Gaza.

Nesse clima de crescente impaciência, incredulidade e intransigência mútuas, o fracasso das negociações em Camp David em julho de 2000 não surpreendeu. As consequências foram gravíssimas, pois isso conduziu à segunda intifada que imediatamente criou um novo ciclo de violência. A resistência palestina retomou o uso, mais intenso do que nunca, do terrorismo contra civis. Isso levou à punição israelita, como a incursão sanguinária em Jenin e outras cidades da Cisjordânia em abril de 2002. Isto acabou com o poder de facto de Arafat, doravante preso na sua fortaleza parcialmente bombardeada em Ramallah. Dentro do campo palestiniano o Hamas foi o grande vencedor dessas batalhas. Mas a causa islamista está muito para lá da causa palestiniana. As raízes do Hamas e da Jihad Islâmica mergulham em interesses mais alargados e profundos. Daí que, mesmo que um dia se alcance a paz na  Palestina, as convulsões por via do fundamentalismo islâmico continuarão vivas. 

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