terça-feira, 24 de outubro de 2023

O panorama ideológico do Médio Oriente



Entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, no mundo árabe, desenvolveu-se o pan-arabismo não territorial e secular, para além dos patriotismos territoriais. Em 1922, para apaziguar os ânimos nacionalistas, os ingleses coroaram dois filhos de Hussein como monarcas pró-ocidentais. Dividiram a Palestina, separando o emirado da Transjordânia para satisfazer Abdallah; e o Iraque foi oferecido a Faisal. Aberrações demográficas que se revelaram, na prática, inviáveis.

Durante a Segunda Guerra Mundial a Alemanha nazi cobiçara o petróleo. A estratégia do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) foi alcançar essa fonte, cuja possessão decidiria possivelmente a guerra, por meio da conjunção de duas frentes armadas: a primeira, forçando o seu caminho pela África do Norte através do Egito em direção ao leste; a segunda, indo da Rússia através do Cáucaso em direção ao sul. Caso tivesse tido êxito, hoje não existiria o Estado de Israel. Nesta altura o governo britânico já se distanciara preventivamente de seus compromissos pró-sionistas anteriores.

A queda da França e a fraqueza britânica frente a Hitler só incentivaram a agitação nacionalista. A URSS e a Grã-Bretanha forçaram a demissão do Xá da Pérsia, admirador confesso de Hitler, e o Irão foi ocupado pelos Aliados. Em 1941, um golpe colocou uma conspiração militar a favor da Alemanha no poder no Iraque. Somente após um ano a Grã-Bretanha conseguiu derrubá-la. Algo parecido poderia facilmente ter acontecido no Egito. Porém, em 1942, o destino da guerra mudou, e os alemães foram derrotados em El Alamein. A vitória aliada poupou os árabes de uma ocupação alemã. Mas o preço em troca foi amargar a presença militar reafirmada das potências ocidentais.

A única parte do mundo árabe a não ser colonizada foi a Arábia, sendo considerados como principados primitivos e pobres demais para justificar uma ocupação ocidental. No entanto, nem nas dimensões reduzidas da Arábia peninsular realizou-se o sonho de Hussein em Meca, o de liderar uma independência árabe. Na região vizinha de Najd, o líder tribal Abdul Aziz (“Ibn Sa’ud” – 1876-1953), puritano extremo, renovou nos anos 1920 a coalizão histórica de sua tribo, os sa’ud, com pregadores wahhabitas. Os wahhabitas, seguidores do pregador puritano Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792) são uma seita muçulmana extremista que no começo do século XIX conseguira, numa aliança com os líderes sauditas do Najd, conquistar as cidades sagradas do Hijaz. Com o apoio da irmandade wahhabita dos Ikhwan, ele conquistou o Hijaz em 1924 e expulsou Hussein dos lugares sagrados. Nos anos seguintes, expandiu seu controle sobre os outros xeiques de quase toda a península, estabelecendo em 1932 a monarquia absolutista da Arábia Saudita.

Os seguidores do comunismo, que nos anos 1950 e 1960 conseguirá mobilizar setores proletários, intelectuais e minorias cristãs e judaicas no Egito, no Iraque e em áreas próximas, nunca chegou à amplitude necessária para desafiar as ideologias rivais. A Irmandade Muçulmana era um projeto religioso minoritário. A primeira onda fundamentalista a sacudir o mundo muçulmano teve as suas origens no Egito. Em 1981, ativistas da Jihad cometeram novas atrocidades contra os coptas.

Após uma série de distúrbios por causa da fome e outros incidentes sérios, o Takfir wa-Hijra sequestrou e assassinou, em 1977, o xeique Muhammad Hussein al-Dhahabi, líder muçulmano moderado. Tanto pan-arabistas seculares quanto islamistas rejeitaram tal acomodação e a denunciaram como traição. Os espíritos se inquietaram ainda mais com a assinatura do acordo de paz em 1979. No mesmo ano, Sadat defendeu a separação entre Estado e religião. A oposição ao regime autoritário foi crescendo, tanto do lado de intelectuais progressistas quanto de fundamentalistas. Paralelamente, a repressão oficial aumentou. No período de Sadat, a guinada pró-EUA, a liberalização da economia e a paz com Israel provocaram o isolamento do Egito no mundo árabe. Esta conjuntura constituiu um chão fértil para grupos fundamentalistas, que se inspiravam em Qutb. Desde o seu martírio na prisão que Qutb se tornou o maior guru dos fundamentalistas sunitas. Sua obra mais extremista, Marcos Miliários (Ma’alim fi al-tariq), tem sido leitura obrigatória para gerações de fundamentalistas posteriores, que começaram a atacar os alvos simbólicos ocidentais. Depois, o tenente Khalid Islambouli assassinou Sadat durante um desfile militar. Islambouli pertencia à Jihad, e obtivera o aparente aval do xeique cego Umar Abdul Rahman. O assassinato provocou uma turbulência política que chocou extremamente a elite egípcia, provocando forte reação.

Sob a gestão do sucessor de Sadat, Hosni Mubarak, a polícia reprimiu a organização fundamentalista, mas não pôde evitar que um levantamento islamista acontecesse no mesmo ano em Asyut, no sul do Egito. O Egito meridional contava com as maiores concentrações tanto de fundamentalistas muçulmanos quanto de coptas. Islambouli, o assassino de Sadat, Muhammad Abdul Salam Faraj, o ideólogo do movimento, e alguns de seus colegas foram executados; outros foram condenados a penas de prisão. Abdul Rahman, após sua libertação, migrou para os EUA. Ali fez parte da conspiração, em 1993, do primeiro ataque – fracassado – para explodir o World Trade Center.

Naguib Mahfouz, romancista e prémio Nobel, favorável à paz com Israel, em 1994, enquanto saía da sua casa no Cairo, foi esfaqueado no pescoço por um fundamentalista islâmico, cuja ação foi inspirada na declaração emitida pelo clérigo radical Omar Abdel-Rahman, segundo a qual os livros de Mahfouz constituíam blasfémia e que o escritor merecia morrer. A estratégia islamista de desestabilização mais brutal – e potencialmente mais eficaz – foi de atingir o turismo, uma das principais fontes de rendimento.

Em 1996, fundamentalistas mataram dezoito pessoas em Luxor; no ano seguinte, mais de sessenta. Terror arbitrário contra civis inocentes, que repugnou até os múltiplos simpatizantes passivos do fundamentalismo. No olhar dos perpetradores, porém, esta inocência das vítimas não existe e não poderia existir. As próprias leis islâmicas proíbem fazer mal a inocentes e contêm uma cadeia de recomendações para proteger pessoas vulneráveis. Mas os islamistas contornam esta dificuldade com artifícios teológicos. Cada vez menos se usam as roupas tradicionais e os vestidos ocidentais, considerados descobertos demais, e se vê mais o típico “uniforme” fundamentalista sunita: o véu branco e o casaco cinza ou marrom que cobre o corpo inteiro e dissimula as suas formas, deixando visíveis somente o rosto e as mãos.

Ao contrário do Egito, nessa altura a Síria era diferente. Sociedade extremamente fragmentada etnicamente, entre árabes, curdos e outras etnias; economicamente, entre citadinos e camponeses; e religiosamente, entre sunitas, drusos, uma abundância de Igrejas cristãs, ismaelitas, para além dos cerca de um milhão de alawitas ou nusairis, seita xiita extremista cuja religião é secreta, mas que está tão longe da ortodoxia que os sunitas não os consideram como muçulmanos. Os franceses eram muito menos abertos à perspetiva de autodeterminação política árabe, portanto a descolonização de suas possessões se deu mais vagarosamente. A Síria, extremamente dividida entre comunidades étnico-religiosas, se tornou o centro do nacionalismo pan-árabe – liderado pelos sunitas – e de protestos contra a partilha do mundo árabe. Para enfraquecê-la, a França separou do corpo sírio o Vale do Bekaa e alguns outros territórios costeiros povoados por muçulmanos, juntando-os ao Monte Líbano: esta região também era de composição complexa – a maioria do campesinato e da burguesia era composta de maronitas e drusos, mas as tensas relações entre eles proporcionaram o pretexto para uma intervenção francesa. A ampliação do Líbano com novos territórios muçulmanos criou ali um frágil equilíbrio demográfico – garantia de tensões adicionais, que por sua vez justificaram a ordem mantida pela presença francesa. A Síria, obviamente, recusou esta “cirurgia territorial” e nunca aceitou a existência separada do Líbano – tampouco de seus outros vizinhos árabes, a Palestina e a Jordânia.

Isso é relevante a partir do momento em que o líder Bashar al-Asad e boa parte da elite no poder do Ba’ath sírio são alawitas: o secularismo do programa ba’athista os atraía, e devido aos privilégios dado a eles pelos franceses, logo controlaram as alavancas para a tomada de poder, o que aconteceu em 1966. Tal situação continua até nossos dias; o regime alawita se esconde, porém, atrás um véu de pan-arabismo meramente formal. Este pan-arabismo é particularmente adequado pois a Síria carece de claras fronteiras ou de uma identidade histórica própria. Do ponto de vista sírio, o Líbano, a Jordânia e a Palestina fazem parte da Grã-Síria.

Em relação ao Iraque, Bagdad era uma capital de cultura literária sofisticada. E em direção à foz, o Iraque tem duas cidades sagradas xiitas: Karbala e Najaf. Esses são os locais do martírio de Ali e Hussein. Os sunitas desprezavam os xiitas, considerando-os como praticamente não árabes, mas a diferença era ainda maior com os habitantes do Iraque setentrional. No Norte, a província de Mossul, rica em petróleo, fora cedida com relutância pela Turquia. Mas a sua população curda também não era bem-vinda sob o teto iraquiano. Para consolidar o seu poder, os ingleses deram autoridade artificial a chefes tribais. No Iraque, uma tradição parlamentar quase não se desenvolveu – ao contrário do Egito, da Índia e de outras colónias inglesas. Desde que chegou à independência, em 1932, o país conheceu somente a instabilidade.

Ao mesmo tempo as tensões cresciam continuamente entre judeus sionistas e árabes na Palestina. Os sionistas queriam obter uma maioria judaica na Palestina. E os árabes da Palestina recusavam compartilhar o poder com os judeus.



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