segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Os efeitos pós-otomanos no Médio Oriente



O Império Otomano congregou diferentes grupos étnicos e religiosos. Houve momentos em que a interação foi cooperante e harmoniosa, porém, sob as pressões do moderno nacionalismo, essas relações étnicas e religiosas deterioraram-se. Uma questão penosa que não afeta apenas os palestinianos. Tais conflitos nada tinham de inevitável. A explicação para cada um deles reporta-se aos séculos XIX-XX e baseia-se, não em animosidades raciais, mas no desenrolar de ocorrências específicas.

Revisitando Edward Said, que foi dos poucos a sugerir uma terceira via (nem Arafat, nem Hamas, não apoiou o acordo de paz de Oslo), a melhor solução para a paz seria a criação de um único estado binacional que englobasse Israel, Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Ele dizia que os estereótipos apresentam sempre uma imagem distorcida, e por outro lado, para justificar a autonomia, inventam-se novos passados. A despeito de todos os estereótipos e preconceitos, e para fundamentar a sua posição, assegurava que ao longo de grande parte da história otomana as relações intergrupais tinham sido razoavelmente pacíficas, tendo em conta os padrões da época. Durante séculos a fio, as minorias do império otomano desfrutaram de mais direitos e de maior proteção legal do que as suas congéneres sob o domínio dos europeus. As relações entre as comunidades otomanas agravaram-se devido às potências ocidentais, ao introduzir o seu capital e à sua ingerência nos assuntos otomanos.

Um exemplo paradigmático é o surgimento dos sindicatos em Salónica. Os sindicatos como forma de organização laboral chegaram numa fase bastante tardia da era otomana; os mais importantes (talvez todos eles) nasceram no âmbito do capital estrangeiro. Raramente foram homogéneos do ponto de vista religioso. No início, os empregados do comércio muçulmanos e cristãos organizaram-se em dois sindicatos distintos (1908); contudo, decorridas algumas semanas, fundiram-se numa única organização. A característica intercomunitária dos sindicatos é vivamente ilustrada por uma manifestação de protesto realizada em junho de 1909 (contra as políticas laborais do Estado); a manifestação teve lugar em Salonica, tendo os oradores discursado à multidão em otomano, búlgaro, grego e ladino (espanhol arcaico, cuja escrita utiliza caracteres hebraicos). Salónica notabilizava-se pelo caracter multiétnico e multicultural da atividade da sua classe operária, tendo parte dela evoluído para movimentos socialistas.

As práticas de contratação das empresas estrangeiras são fundamentais para se compreender as tensões intercomunitárias, que passaram a ser demasiado comuns no mundo otomano do século XIX. As empresas estrangeiras ascendiam às dezenas; entre elas incluíam-se os caminhos-de-ferro, bancos, companhias portuárias e serviços públicos, bem como indústrias têxteis e alimentares. No seu conjunto, empregavam um avultado número de súbditos otomanos - mais de 13.000 trabalhavam nos caminhos-de-ferro, tendo o Gabinete da Dívida Pública Otomana contratado mais de 5.000 funcionários. A questão relaciona-se, aqui, com a estratificação do trabalho nas empresas estrangeiras recém-criadas (por vezes, de grande envergadura). Os muçulmanos encontravam-se na base dessa hierarquia empresarial, desempenhando as funções menos qualificadas e auferindo os salários mais baixos. Além disso, em épocas críticas, a tendência dessas companhias era recrutar uma quantidade desproporcionada de estrangeiros e de não muçulmanos, como se desconfiassem dos empregados e operários muçulmanos.

De um modo mais ou menos equiparável, a liderança dos sindicatos tendia a ser maioritariamente cristã, sendo mistas as suas fileiras (cristãos e muçulmanos). Deve salientar-se que tal desenvolvimento não era intrinsecamente necessário. O capitalismo não tem de gerar estratificações sindicais de cariz étnico ou religioso, embora por vezes isso tenha acontecido. Todavia, no caso particular otomano, a interação do capital estrangeiro com a sociedade local (otomana) privilegiou como força laboral os correligionários dos investidores estrangeiros. Este escalonamento colocava os estrangeiros e os não muçulmanos em posições de superioridade em relação aos muçulmanos, invertendo, dessa forma, o velho e centenário paradigma otomano da predominância política e jurídica muçulmana.


Todos os anos as salas do Congresso americano incendeiam-se com os grupos de pressão gregos, armênios e turcos, que procuram o apoio do governo americano para as suas respetivas posições a favor ou contra as comemorações oficiais dos acontecimentos da I Guerra Mundial. As atrocidades principiaram com os massacres dos arménios em 1895-1896, repetindo-se nos anos de 1908, 1909 e novamente em 1912. Neste último caso, os refugiados muçulmanos que haviam sido expulsos das províncias europeias aquando dos conflitos dos Balcãs atacaram as comunidades arménias na costa norte do mar da Mármara. Esses refugiados haviam acorrido em massa àquelas paragens em busca de abrigo, pois haviam sido escorraçados das suas terras, fazendo recair a sua ira e frustração sobre os inocentes e desafortunados Arménios otomanos. As chacinas de 1915-1916 foram, sem dúvida, as piores. Calcula-se que tenham morrido cerca de 600.000 Arménios otomanos após terem sido deportados da sua região natal da Anatólia Oriental.

O acontecimento não se enquadrou no padrão nazi que procurou capturar e exterminar todos os elementos de um grupo enquanto tal. Curiosamente, os Arménios que se encontravam fora das zonas de combate não foram abrangidos pelas deportações ou pelos massacres. Nem procurou o governo otomano ou a Organização Especial expatriar ou exilar as comunidades arménias otomanas que viviam na Anatólia Ocidental e nos Balcãs meridionais. Em cidades como Istambul e Esmirna, no período de 1915-1916, as numerosas comunidades arménias permaneceram incólumes no local onde habitavam, prosseguindo a sua vida. Nesse mesmo período, em acentuado contraste, chacinavam-se centenas de milhar de compatriotas seus das províncias orientais dilaceradas pela guerra.


Em todos os casos de formação dos Estados sucessores do Império Otomano, foi o Estado que antecedeu a nação e não o contrário. A fundação de países independentes decorreu não de movimentos espontâneos, mas sim da ação de certos círculos da sociedade que procuravam privilégios económicos e/ou políticos, a que não tinham acesso sob o domínio otomano. Ou seja, um punhado de indivíduos estabeleceu um aparelho governativo, traçou as fronteiras no mapa, fez a bandeira e o hino nacional. A sua criação é um testemunho do apoio das grandes potências, da determinação e da capacidade de organização dos separatistas. Foi nessa base que fundaram novos Estados, dentro dos quais principiaram a construir as novas nacionalidades.

Não obstante as próprias tendências seculares dos Jovens Turcos, a componente islamita da identidade otomana ganhou maior importância depois de 1908 em virtude da intensificação do desmembramento das províncias europeias do império (na sua maior parte cristãs). Predominava claramente entre os Jovens Turcos uma mundividência secular e otomana, mantendo-se dispostos a moldar uma nova identidade nos seus súbditos. A aprovação da nova Lei Eleitoral após a Revolução de 1908 é um sinal desse esforço de criação de uma identidade otomana comum. Procurava-se eliminar a representação por comunidade religiosa e substituir a política comunitária pela política partidária. Em geral, a atuação dos regimes otomanos pós-1908 refletia fortes tendências centralizadoras, insistindo num apertado controlo e na imposição de padrões imperiais uniformes e não no nacionalismo turco.

Em 1914 a grande maioria dos súbditos povos otomanos - qualquer que fosse a sua etnia ou religião - não pretendia libertar-se; desejava, antes, conservar a sua identidade como súbditos otomanos. Os acontecimentos ocorridos no Médio Oriente após a I Guerra Mundial são, em parte, a chave para se entender a dissolução do império. A França e a Grã-Bretanha repartiram entre si as províncias árabes, aí impondo regimes que as governavam sob sua tutela; até meados da década de 50, no século XX, essa tutela enquadrou-se no âmbito da Sociedade das Nações e assumiu formas diversas. Era intenção dos Franceses e dos Britânicos entregar uma vasta faixa territorial da Anatólia aos seus protegidos de Atenas, mantendo-se um insignificante resquício do Estado otomano. Em vez disso, a resistência otomana uniu forças, porém, incapaz de restaurar o império, resignou-se com a fundação de um Estado de menores dimensões no seu fragmento anatólio, naquele que mais tarde viria a ser o Estado da Turquia.

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