segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Os navegadores fenícios e cartagineses no Atlântico



Pode-se descrever a Europa como uma península de penínsulas da Eurásia, rodeada pelo Atlântico Norte e seus braços – o Mediterrâneo; o Báltico, o Mar do Norte; o canal da Mancha; e o mar da Irlanda. Não admira, portanto, que os europeus tivessem desenvolvido um denso sistema de comunicações marítimas. 

Os fenícios, que viviam na costa libanesa do Mediterrâneo, não dispunham de muita terra para a agricultura, pelo que empurrados por Assírios ou Persas não tiveram outro remédio que atirarem-se ao mar. Acresce que no chamado período escuro da Antiguidade surgiram os chamados Povos do Mar que invadiram toda a costa leste do Mediterrâneo, que proporcionaram o comércio marítimo com os fenícios. A entrada em águas desconhecidas não se fez sem grandes riscos. Ainda assim, pelo menos desde meados do século VII a.C., que se regista a presença fenícia no Atlântico. Os fenícios estiveram em diversas praias, não apenas nas costas continentais, mas também nas ilhas da Madeira e Canárias. Muito provavelmente também exploraram mais a oeste os Açores e Cabo Verde, embora sem confirmação. É através de um conjunto de escritos, mais literários do que históricos, que podemos conjeturar a força e o arrojo dos antigos navegadores. São autores como Avieno (“Ora Marítima), Estrabão, Diodorus Siculus, Heródoto e Platão que nos dão aso a muita imaginação.

Atraídos pelas minas de estanho, os fenícios seguiram rumo ao norte num arco que vai de Cádis até à Irlanda. Estabeleciam contacto com populações nativas, recebiam destas a matéria-prima que buscavam e em troca ofereciam produtos da própria manufatura. O comércio provocou mudanças nas comunidades indígenas cujos vestígios são hoje interpretados pela arqueologia. Tartesso ou Tartéssios é uma das referências. Na Idade do Bronze, essa foi a maior e mais famosa cultura diante da demanda das civilizações mediterrânicas por estanho. Os tartéssios estabeleceram contactos comerciais ao longo de toda a costa europeia do Atlântico, desde a Andaluzia até às Ilhas Britânicas. Metais oriundos da Inglaterra, de Gales, da Cornualha e mesmo da Irlanda eram transportados até ao sul da Espanha. O que indica a existência de rotas comerciais bem estabelecidas. Por volta do século VI a.C., os fenícios instalaram-se em Cádis. 

É nesse contexto que se insere a narrativa sobre Himilcão, um navegador cartaginês, que entre outros feitos, é narrada a expedição até às ilhas do estanho: as Estriminidas:
Daqui até à ilha Sagrada [a Irlanda, assim chamada pelos antigos], um navio tem um caminho de dois sóis. Essa ilha descortina em meio às ondas um amplo território e é habitada, em sua largura e em seu comprimento, pela raça dos hiernos. Próximo se estende a ilha de Álbion [a Inglaterra] e os tartéssios se acostumaram também a comerciar até aos confins das Estriminidas. Mesmo colonos de Cartago e o povo que vive entre as Colunas de Hércules se aproximavam desses mares, sobre os quais o cartaginês Himilcão afirmou poderem ser atravessados em apenas quatro meses, segundo disse em seu relato haver confirmado mediante navegação.

Himilcão
 descreveu uma jornada longa, de quatro meses, cheia de perigos — calmarias, algas em quantidade, monstros marinhos (cetáceos, possivelmente) que acompanhavam os barcos, nevoeiros. Mas não fora o primeiro a singrar as águas do Atlântico Norte, tampouco foi o último. Até seus concorrentes mais aguerridos, os gregos, descobriram as rotas marítimas e mesmo quando Cartago fechou as Colunas de Hércules à passagem de naves de outros Estados, o Atlântico passou a ser atingido através de rotas terrestres.

Píteas destaca-se entre os vários gregos que navegaram as águas gélidas do norte. Seu périplo era por vezes tão fantástico que Estrabão, embora o cite com frequência, o faz desacreditando-o, ao afirmar que o navegador já enganara muitos com suas descrições absurdas. A despeito da opinião do geógrafo, o relato de Píteas é o mais antigo a retratar o extremo Norte Atlântico. Esse navegador grego, por volta do século IV a.C., sulcou as águas relativamente conhecidas das costas britânicas e seguiu para o norte, chegando a uma terra chamada Thule. Sobre Thule, escreve Estrabão: «Nossa informação histórica é ainda bastante imprecisa graças à sua localização longínqua, pois Thule, de todos os países conhecidos, é aquele situado mais ao norte.» Píteas foi o primeiro a descrever essa região tão afastada e a partir do seu texto já se tentou descobrir exatamente a que terra ele se referiu: seriam as ilhas Órcadas, ao norte da Escócia? Talvez a Islândia ou, alguns afirmam, a Gronelândia mesmo. Tal identificação é praticamente impossível. Então podemos afirmar que Píteas navegou por entre os mares gélidos do Atlântico Norte.

Mais para o sul, margeando as costas, fenícios e principalmente cartagineses fizeram a primeira exploração da África pelo Atlântico, que se tenha conhecimento. Suas colónias tinham início na atual Tânger, Marrocos, e seguiam até aproximadamente o nível das ilhas Canárias, com uma economia baseada na exploração das águas oceânicas, em especial a pesca e a tintura de púrpura.

Heródoto narra uma dessas viagens, que, pela sua extensão e complexidade, desafia os limites da plausibilidade. 
Heródoto visitou o Egito “por volta de 450 a.C., apenas um século depois dos eventos do fim da XXVI Dinastia”, e o monarca referido no texto, Necau, reinou entre 610 e 595 a.C. Essa dinastia, chamada saíta, foi marcada, entre outras coisas, pela ampliação do comércio marítimo, maioritariamente tocado por marinheiros gregos contratados. Logo, o financiamento estatal para uma expedição naval não seria algo absurdo nesses tempos.
A Líbia mostra ser envolvida pelo mar, exceto do lado em que confina com a Ásia. Necao, rei do Egito, foi o primeiro, ao que sabemos, a provar isso. Escolheu experimentados navegadores fenícios e, embarcando-os em seus navios no mar da Eritreia, navegaram pelo mar Austral. Depois de dois anos de navegação dobraram as Colunas de Hércules. Contaram, ao chegar, que navegando em torno da Líbia tinham o sol à sua direita, o que não me parece crível.
Algumas questões, porém, emergem: poderiam navios fenícios circum-navegar a África? Heródoto descreve uma longa viagem, de três anos, que, em sentido horário, teria começado no mar Vermelho (mar da Eritreia), seguido pelas margens do oceano Índico (mar Austral), contornado o cabo da Boa Esperança, bordejado todo o litoral Atlântico da África para, enfim, retornar pelas Colunas de Hércules ao Mediterrâneo. A tecnologia náutica disponível à época seria suficiente para tal empreendimento? Normalmente se considera que não, pois os navios fenícias e gregas não eram projetados para tamanhas jornadas. Além disso, qual o interesse de um monarca egípcio em descobrir essa passagem austral, já que o comércio de seu reino se dava em águas bem mais ao norte? Apesar de todas essas dúvidas, esse pequeno trecho contém narrativas que alimentam a crença em sua veracidade. Seja como for, parece que as informações sobre a forma do continente africano corresponde à verdade, pois, quando Heródoto relata que a “Líbia mostra ser envolvida pelo mar, exceto do lado em que confina com a Ásia”, descreve corretamente a configuração física da África, algo que só poderia ser obtido por meio da circum-navegação.

Outro dado notável se refere à posição do sol. Conquanto afirmasse descrença naquilo que ouvira, Heródoto registou que os navegadores fenícios, ao contornar a Líbia seguindo na direção oeste, tiveram o sol à sua direita, posição exata na qual se encontra o astro no contorno do cabo da Boa Esperança, ponta mais austral da África. Tal informação requer conhecimento empírico que só pode ser adquirido em tal viagem. Embora não seja comprovável (não há senão referências literárias ao feito, semelhantes a essa), há a possibilidade de os fenícios terem sido os primeiros a circum-navegar a África.

Um dos registos de viagens atlânticas mais fascinante que sobreviveram é o Périplo de Hano, empreendido por volta de 500 a.C. As fontes para o conhecimento dessa expedição são fragmentadas: imortalizada em placas expostas num templo em Cartago, foi posteriormente citada por autores gregos e latinos em seus textos sobre geografia e história. A narrativa afirma que Hano (referido no texto como “rei de Cartago”) seguiu para o Ocidente sob ordem do Senado cartaginês. Os cartagineses decidiram que Hano deveria ir além das Colunas e fundar cidades cartaginesas. Após a passagem pelas Colunas de Hércules e navegando por dois dias eles fundaram a primeira cidade, a qual foi chamada Thymiaterion. À sua volta uma grande planície. Em seguida, viajando em direção oeste, alcançaram o promontório líbio de Soloeis, o qual era coberto de árvores, e, após erigir um altar a Posídon, navegaram novamente em direção ao sol nascente por um dia, quando então chegaram a uma lagoa próxima do oceano coberta com canas altas, as quais alimentavam elefantes e um grande número de outros animais.

Embora haja certa controvérsia em relação a alguns percursos, parece ser a descrição plausível de uma exploração das margens atlânticas. Destaca-se dentre essas cidades Arambys, posteriormente chamada pelos exploradores portugueses de Mogador, centro produtor e exportador da púrpura, tintura de cor arroxeada obtida a partir de gastrópodes pescados no oceano. A expedição avança em direção a sul e descreve diversas populações nativas: os líxios, possivelmente berberes, com os quais estabeleceram boas relações e serviram de intérpretes: os etíopes. Mais alguns dias de viagem, chegaram a um largo rio chamado Chretes, cheio de hipopótamos e crocodilos — localidade normalmente identificada com o rio Senegal. A expedição de Hano pode ter atingido o golfo da Guiné e navegado até Camarões, as ilhas de Bioko (Guiné Equatorial) e São Tomé e Príncipe.

As aventuras de Hano foram adaptadas ao padrão helénico de redação e incorporaram o já conhecido conceito do maravilhoso. Basta ler o Crítias de Platão. A narrativa da expedição de Hano oferece uma antropologia das populações litorâneas africanas e também nesse trecho podemos perceber a presença dos padrões de barbarismo geográfico. A primeira população contatada pela expedição foram os líxios. Bárbaros, sim, mas tão amigáveis que se engajaram na empreitada. Sobre essa gente, diz-se que apascentava seus rebanhos, imagem bem familiar ao público helénico, quando da chegada da expedição. Mais ao sul ficam os etíopes, nome genérico grego para pessoas de cor de pele mais escura. Esses bárbaros, mais afastados, já não são amigáveis como os líxios. Dadas as parcas informações que chegavam dessa parte do mundo, os helenos preencheram os vãos do conhecimento com mitos e preconceitos. A exploração antiga do oceano Atlântico margeou as costas europeia e africana. Quando muito, atingiu as ilhas mais próximas. Não há qualquer vestígio de travessias até às Américas.


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