sábado, 28 de outubro de 2023

A ideia de uma nação



Segundo Ilan Pappe, é a partir de finais do século XIX até aos nossos dias, que a identidade de certos grupos reside na ideia de nação. Assim, podemos dizer que em contextos apropriados construiu-se uma “identidade nacional”, por uma autoafirmação que se buscou legitimar por meios políticos na senda internacional. Ilan Pappe data a entrada da Palestina na modernidade no final do governo otomano.

É de Ernest Gellner que retiro esta definição da categoria “nação”: duas pessoas são da mesma nação quando elas, e apenas elas, se reconhecem uma à outra como pertencentes à mesma nação. Pode ser suficiente, mas pode não bastar, o mero facto de ocuparem um dado território, ou falarem a mesma língua. Torna-se uma nação quando essas pessoas reconhecem certos direitos e deveres mútuos em virtude de se perceberem como membros dela. É neste tipo de reconhecimento de um ao outro como iguais que os torna uma nação, e não os outros atributos compartilhados, quaisquer que sejam, que os separem dos não-membros.

A ideia da nação Palestina surge no contexto da construção das fronteiras do Médio Oriente no final do século XIX e início do XX. E é movida não apenas por categorias positivas, mas também negativas em relação ao movimento sionista e à restante população de etnia árabe. O nome “Palestina” é muito antigo. Originou-se da província romana Palaestina, termo que substituiu o nome da província da Judeia (Iudaea) após a segunda revolta judaica (132-5 E.C). Com o domínio muçulmano e o fim do controlo bizantino, a região recebeu o nome de Filastin, sendo uma das divisões militares e administrativas (Jund) dos califados omíada e abássida. Dessa forma, ainda que o termo não tenha sido utilizado pelos governos mameluco e otomano, podemos ver que a região já possuía desde tempos antigos a referência à Filastin (nome da Palestina na língua árabe).

Devido ao avanço do antissemitismo na Europa, a partir de 1882 começa a verificar-se um movimento migratório de judeus vindos da Europa para a uma região que na Antiguidade se dava pelo nome de Judeia e Israel, e a cidade de Jerusalém como local de peregrinação das três religiões ditas do Livro, ou abraâmicas. E o grupo humano que habitava a região que hoje chamamos de Palestina se enxergava eminentemente como árabe. Esta constatação não implica dizer que não havia uma população árabe autóctone na Palestina quando os sionistas chegaram, ainda que haja especialistas que afirmem que os árabes da Palestina, durante o Mandato Britânico (1922-48), eram imigrantes ilegais vindos da Síria e da Transjordânia. Portanto, uma população flutuante e desenraizada.

É preciso notar que uma coisa é a identidade local ligada à posse e ao trabalho agrícola da terra. Outra coisa é a identidade nacional. Como se disse atrás, a identidade nacional se caracteriza eminentemente pela percepção de se constituir uma nação diferenciada do mundo árabe. E consequentemente, com o direito a um projeto político próprio, voltado para a constituição de um Estado moderno, soberano, com fronteiras definidas e reconhecido internacionalmente. Essa é a base de um projeto político nacionalista.

A população local da Palestina era uma entidade distinta do restante mundo árabe, de tal modo que desenvolveu o sentimento de pertencimento ao lugar. Porém, este era um sentimento local, não nacional. A identidade palestina ainda estava diluída nas identidades mais amplas, árabes e islâmicas.

Também se deve precisar que o movimento sionista é um movimento político e não étnico ou religioso. Até 1882, a população de judeus na Palestina era minoritária, mas sempre presente. A convivência entre árabes e judeus não possuía eventos de hostilidade significativa. Curiosamente, as relações eram mais tensas entre judeus Ashkenazy e Sefarditas, do que entre judeus e árabes. Claro, péssimas entre judeus e cristãos. Lembro que quando os judeus foram expulsos da Península Ibérica, muitos deles rumaram para o interior do Império Otomano.

Porém, no início do século XX, essa convivência mudaria radicalmente. Os judeus até então habitavam a Palestina enquadrados no estilo de vida local e no interior das instituições reconhecidas como legítimas: as otomanas e as locais. Mesmo a primeira leva de imigrantes de 1882 não despertou uma animosidade mais séria entre os árabes da Palestina. No entanto, a partir do Congresso de Basileia, em 1897, e posteriormente, no início da segunda onda de migrações, em 1904, quando os “pioneiros socialistas” se propunham a criar uma sociedade diferente, com organização social e ideologia europeias, a questão se alterou radicalmente e os árabes rapidamente identificaram o sionismo com o colonialismo europeu. Por fim, com as imigrações sionistas, emergia uma sociedade paralela à pré-existente. E, para alojar as levas de novos habitantes, seria necessário obter um recurso escasso na Palestina: terra.

Os judeus, com objetivos políticos, compravam terras de proprietários residentes nas cidades, na intenção de iniciar a construção de seu “lar nacional” na região. Embora esta nova sociedade estivesse localizada no interior da sociedade árabe, era paralela à sociedade árabe local, do ponto de vista social e político. Mas a percepção de que isso traria repercussões políticas de maior vulto ainda era muito incipiente. E, portanto, a noção de que os palestinos se constituíam como um grupo nacional era inexistente. A partir de 1908 nos jornais começavam a aparecer alertas para o fato de que, a continuar a venda de terras para os colonizadores sionistas, no futuro todo o “país” estaria em mãos judaicas. Mas o cerne do discurso ainda era arabista e não palestino. Os árabes diziam: «Quem conquistou a Palestina, retirando-a dos bizantinos em 638 foram os exércitos muçulmanos oriundos da península arábica».

No entanto, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, as circunstâncias se alteram. Em 1917, no que ficou conhecido como Declaração Balfour, Lorde Artur Balfour enviou uma carta à Organização Sionista Mundial afirmando que a Grã-Bretanha apoiaria o estabelecimento de um “lar nacional” judeu na Palestina. A partir daí, levantam-se vozes alertando para os objetivos de longo prazo do movimento sionista. Assim, com o apoio explícito da Grã-Bretanha e como os imigrantes judeus eram de origem europeia, e imbuídos do pensamento progressista e cientificista, alguns líderes árabes identificavam o estabelecimento judaico na Palestina como um movimento aos moldes do imperialismo europeu. Porém, para eles, o colonialismo judeu era ainda pior.

No Congresso Geral Sírio, os delegados da Palestina participaram na posição de representantes regionais, da mesma forma que o Líbano. Ambas as regiões, Líbano e Palestina, seriam parte da Grande Síria. A Palestina não se diferenciava da “Nação Síria”, era parte integrante dela. O representante palestino afirmava no Congresso sírio em 1919 que o colonialismo sionista era pior do que o francês no Líbano, pois enquanto os franceses sabiam que eram estrangeiros, os sionistas acreditavam estar em casa na Palestina. Nesse período, o contraponto à identidade judaica era a identidade árabe e os palestinos ainda não eram percebidos como grupo nacional. E essa realidade é fundamental para compreendermos um passo significativo, a autonomia concedida à Transjordânia, em 1923, isolando a Palestina de sua irmã territorial. Em 1924, o segundo relatório do Mandato já traz o título: “Relatório do Governo de Sua Majestade Britânica sobre a administração sob Mandato da Palestina e da Transjordânia”. Esse ponto foi importantíssimo na trajetória de construção da identidade nacional palestina, pois a Palestina passou a ser juridicamente tratada como uma área territorial específica e, assim, sua população passou a ser vista como específica a esta nova entidade governamental

O acordo Sykes-Picot no fim da Grande Guerra 1918, editou o sistema de Mandatos após o desmantelamento do Império Otomano. A Grã-Bretanha e a França delinearam as fronteiras que ainda são as de hoje. Em 1922, com o Mandato oficialmente conferido pela Liga das Nações à Grã-Bretanha, a Palestina passou a deter uma configuração territorial, juridicamente definida, separada da Síria. Os limites territoriais ainda não se encontravam completamente definidos, pois a Palestina englobava também a Transjordânia. A haver uma questão da demarcação do território, isso era algo relacionado à disputa da Grã-Bretanha com a França.

Como outros movimentos nacionalistas, aquele que começava a se levantar na Palestina necessitava de uma base territorial para a qual reivindicar independência. Em 1936, com a deflagração de grande revolta, o governo britânico percebeu que a única solução era a partição da Palestina em dois Estados: duas comunidades nacionais (um judeu; outro árabe) no interior das estreitas fronteiras de um pequeno país. A grande revolta de 1936-9 foi liderada pelo mufti22 Hajj Amin al-Husseini, que embora explorasse a insatisfação nacional palestina, possuía como fundamento um ideário islamista (defendendo a umma, a grande “nação” muçulmana).

Os acontecimentos de 1948-1949 criaram entre os palestinos a percepção de que os sionistas não eram seus únicos adversários políticos. Para os Estados árabes que invadiram o Estado judeu um dia após ele ser declarado – Egito, Transjordânia, Líbano, Síria e Iraque –, a Palestina era ainda vista como uma terra árabe e não como o território sobre o qual seria construído um Estado palestino. Aliás, a derrota sofrida pelos árabes pode ser creditada em grande parte à sua desunião, cada qual buscando sair vitorioso em suas contendas internas. A Transjordânia nutria esperanças de conquistar a parte árabe da Palestina (que havia sido destinada aos árabes no Plano de Partilha de 1947) e incorporá-la à sua monarquia, enquanto a Síria não havia deixado de pensar na “Grande Síria”.

em 1959, ocorreu um outro ponto chave na trajetória do movimento político palestino. No Kuwait, foi criado o Harakat al-Tahrir al-Watani al-Filastin (Movimento de Libertação Nacional da Palestina), o Fatah, sob a liderança de Yasser Arafat, Abu Jihad e Abu Yiad. A isso seguiu-se a fundação de outros grupos políticos e braços armados com o objetivo de “libertar” toda a Palestina. Surgiu assim uma grande diversidade de grupos, orientados por várias tendências políticas. A Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), de tendência marxista, enxergava os palestinos como a vanguarda revolucionária do Oriente Médio, pretendendo desencadear a revolução socialista por toda a região.

Mas chegou o dia em que a ONU recebeu Arafat como líder da OLP, e que esta era a legítima representante do povo palestino perante o mundo. A Liga Árabe, a União Soviética, a França e a Itália, por exemplo, já reconheciam a OLP como representante legítima dos palestinos. Porém, Israel ainda tratava a OLP como um agrupamento de terroristas. Mesmo em 1988, quando Arafat renunciou ao terrorismo como estratégia, os líderes políticos de Israel hesitavam em negociar com a Organização. Somente em Oslo, em 1993, com o aperto de mãos entre Arafat e Ytzak Rabin, a OLP foi reconhecida por Israel.

A OLP, vivendo em um ambiente internacional onde os Estados são os entes de direito a tomar decisões, precisou, durante um longo tempo, se apoiar em governantes árabes. A Síria era adversária, tanto que na Guerra Civil do Líbano, lutou inicialmente contra os palestinos. Restava o Iraque de Saddam Hussein. Somente analisando esse contexto é que podemos entender o apoio de Arafat à invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas em 1990. Esse foi um erro estratégico que lhe custou caro. Arafat morreu, em 2004, sem ter visto de pé um Estado Palestiniano.

Em 1987, com a eclosão da Intifada, a revolta popular contra a ocupação, se iniciaria um tempo de mudanças. Deflagrada por um movimento espontâneo, a Intifada inicialmente não possuía líderes. E quando estes surgiram, não eram as figuras mais conhecidas. Os condutores da revolta foram moradores e líderes locais da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, enquanto toda a liderança da OLP estava dispersa. Dentre todos os grupos que surgiram no contexto da Intifada, apenas um deles não se juntou à OLP: o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas. Originado da rede de assistência social Al Mujamah, conduzida pelo xeque Ahmed Yassin, o Hamas se levantou em armas contra a ocupação e contra o Fatah. O declínio da OLP passou a ser cada vez mais acentuado e o Hamas foi ganhando força. Em 2006, o Hamas venceu as eleições legislativas para o Conselho Nacional Palestino. Pela primeira vez, em quase quatro décadas, o Fatah perdia a hegemonia no movimento político palestino. Hoje, o movimento político palestino encontra-se polarizado entre esses dois grupos. Ambos se enfrentaram em 2007 e o Hamas tomou o poder na Faixa de Gaza (Israel desocupou este território em 2005).

Assim, a faixa costeira se encontra sob o domínio do Hamas enquanto a Cisjordânia está sob controle do Fatah. Ambos os grupos são filiados a ideários discordantes. O Fatah, de tendência secular nacionalista, e o Hamas, de tendência islamista. O Fatah oficialmente renunciou ao terrorismo, mas mantém laços não totalmente esclarecidos com organizações armadas – as Brigadas dos Mártires de al-Aqsa e a milícia Tanzim. Já o Hamas prega em sua carta a destruição de Israel. Assim, ser um nacional palestino já não está em questão, hoje o que está em causa é: Afinal, quem os representa?


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