domingo, 26 de maio de 2024

A identidade nacional


No tempo da União Soviética todo o cidadão soviético apresentava uma determinada nacionalidade constante do seu passaporte.




A questão da identidade histórica - cultural e religiosa, no pós União Soviética, mereceu reconhecimento formal das identidades nacionais na administração territorial do que era o Estado soviético. As políticas de naturalização não tiveram sucesso a integrar nacionalidades do sistema soviético, se exceptuarmos as repúblicas muçulmanas da Ásia central. E parece paradoxal, porque eram precisamente as mais diferenciadas da cultura eslava dominante. Mas tal se deve ao facto de no seu dia-a-dia essas repúblicas terem desenvolvido uma tal relação de dependência do poder central que só nos últimos dias de desintegração da União Soviética é que as suas respetivas elites ousaram assumir a liderança de movimentos favoráveis à independência.

O fim da União Soviética ocorreu em 1991 após a abertura política e econômica do governo Gorbatchev e o movimento político de Boris Ieltsin. O governo Gorbatchev (1985-1991) realizou dois projetos de reforma: a Glasnost, uma abertura política do regime; e a Perestroika, uma reestruturação econômica.

A dissolução da União Soviética ocorreu em 26 de dezembro de 1991, como resultado da declaração nº. 142-Н do Soviete Supremo da União Soviética. A declaração reconheceu a independência das antigas repúblicas soviéticas e criou a Comunidade de Estados Independentes.




Nos anos 90 os Abecasis, apoiados pela Rússia, lutaram para obter a quase independência no seu território, embora representassem a minoria da população. Há uma República Autónoma da Geórgia, que é muçulmana sunita, mas os georgianos não islâmicos que lá vivem, vigiam a sua autonomia dando apoio à Geórgia. Os inguches, muçulmanos, conflituam com os ossetas nas áreas fronteiriças entre a Geórgia, Ossétia e Chechénia/Inguchétia. Além disso, uma etnia turca deportada por Stalin é protegida pela Turquia. Isso fomenta assim a desconfiança na população.

No restante território as identidades nacionais não conseguiram fazer-se representar nas instituições artificialmente construídas que vinham do federalismo soviético. Um exemplo disso é a Geórgia, um verdadeiro mosaico étnico construído com base num Reino histórico. Os georgianos representam 70% da população de cinco milhões e meio de habitantes. De um modo geral essa parcela da população é devota da igreja ortodoxa da Geórgia. Contudo, tem de coexistir com os ossetas, fundamentalmente russos ortodoxos, cuja população se distribui entre a República Autónoma da Ossétia do Norte e a Oblast Autónoma da Ossétia do Sul. Na parte noroeste da Geórgia estão os Abecasis, que são muçulmanos sunitas de origem turca.

O resultado prático desta história, territorialmente confusa, foi que no início dos anos 90, quando o movimento nacionalista georgiano radical proclamou a independência sem considerar os interesses das minorias nacionais da Geórgia, desrespeitando as liberdades, desencadeou uma guerra civil na qual acabou num banho de sangue. Em 1994, Shevardnadze, pediu que fosse reconstituído o cargo de Presidente da República, abolido após a queda do anterior presidente, Gamsakhurdia, em 1992. Nas eleições levadas a cabo no ano seguinte, Shevardnadze tornou-se Presidente da República da Geórgia, tendo sido reeleito em 2000. Em 2003 foi novamente eleito, mas a crise económica e os graves problemas sociais vividos no país, deram origem a uma contestação eleitoral e a um levantamento popular liderado por Mikhail Saakachvili, forçando Shevardnadze a demitir-se. Novas eleições foram realizadas em janeiro do ano seguinte e Saakachvili tornou-se o presidente do país.

 Mas uma guerra de guerrilha prolongada, além de terrível, é debilitante. A integração das identidades nacionais na União Soviética, ao ter sido objeto de uma engenharia burocrática, portanto artificial, em vez de ter resultado do reconhecimento dessas identidades, tinha de fracassar. Observando princípios de uma lógica burocrática e geopolítica não contribuiu para a real identidade histórica e cultural ou religiosa de cada comunidade nacional, nem da sua especificidade geográfica. Toda esta complexidade de nacionalismos que envolve Georgianos, Abecasis e Ossetas tem arrastado a inevitabilidade de intervenção da Rússia de Putin numa retórica de levar a paz à região.



Com a aculturação proporcionada por esta globalização informática e cibernética, a 'identidade cultural' - que caracterizava as velhas nações, em que as narrativas da moda filiadas nos campus dos USA despertaram a má consciência histórica dos europeus - tem vindo a diluir-se. Era o nacionalismo cultural fruto de um história comum, convocada por laços de solidariedade na luta por uma independência livre de outras tutelas.

E esta identidade cultural, ao contrário do que muitos dizem, resulta não apenas da reação das elites, mas também das massas, ou seja, é uma identidade que se forma mais de baixo para cima do que de cima para baixo. E é isso que justifica o aumento dos nacionalismos pós-modernos, que vai mais atrás do período histórico da formação dos Estados/Nação modernos.

É o grande mal-entendido entre o poder da identidade e a autodeterminação dos povos sem nação. Esta União Europeia é a herdeira das nações com Estado, em contraponto com outra União, que se dava pelo nome de Soviética, esta sim, um Império. E entretanto, esta desapareceu. A União Europeia hoje volta a confrontar-se com o mesmo espaço geopolítico que era da União Soviética, agora uma Federação. E é neste cenário que se geram os equívocos em relação ao conceito de soberania. O sincretismo deste conceito, no léxico político da Europa, impede os europeus de estabelecerem distinções importantes relativas aos 'povos' no jargão da cartilha marxista-leninista, em contraponto com 'soberania nacional' e 'direitos humanos', que é o mesmo que dizer direitos dos cidadãos em cidadania.

Ora, hoje há uma corrente de nacionalismos pós-modernos que persistem impulsionados por fatores reativos ao grupo dominante do pós colonialismo. Isso não significa que uma parte dessa identidade tenha que ser construída em cima de fatores primários, sejam por exemplo um idioma ou uma religião. E é nesta construção que é indispensável o papel das elites cuja matéria prima está nesses fatores primários veiculados pelas massas.

A nação é a unidade social com os alicerces mais sólidos a partir do qual a vida coletiva deve ser reconstruída. Quantas nações terá hoje dentro de si a Federação da Rússia? A Federação da Rússia é composta por 85 unidades federativas. Essas unidades federativas incluem 22 repúblicas, que são consideradas nações dentro da Rússia, cada uma com sua própria constituição, presidente e parlamento, além de representar diversas etnias e grupos nacionais distintos. Além das repúblicas, a Federação Russa é composta por outros tipos de unidades federativas, incluindo: 9 krais (territórios); 46 oblasts (províncias); 3 cidades federais (Moscovo, São Petersburgo e Sebastopol); um oblast autónomo (Oblast Autónomo Judaico); 4 okrugs autónomos (distritos autónomos).

Cada uma dessas unidades tem um grau variável de autonomia e pode incluir várias nacionalidades e grupos étnicos. Portanto, ao considerar as repúblicas como nações dentro da Federação Russa, existem 22 nações e 60 grupos étnicos com reconhecimento formal dentro da estrutura federativa da Rússia.

Por conseguinte, aquilo que foi a experiência de 74 anos de União Soviética, é um bom modelo paradigmático para compreendermos que são as nações que mais perduram em relação ao Estado. No entanto, no atual contexto histórico e geopolítico, é pouco provável que as nações possam funcionar como novos estados-nação inteiramente soberanos. E quanto à Ucrânia, na data da sua independência em 1991, os ucranianos perfaziam 73 por cento. Quem nessa altura temia que mais tarde ou mais cedo o imperialismo russo voltasse, veio a revelar-se que estavam certos, como se pôde confirmar com a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Quando às nossas ideias, é avisado pensarmos que enfermam de incoerências insanáveis. Daí que a tendência seja para a fuga em frente, em que o recurso a teorias da conspiração é o mais frequente. E a escolha seletiva de uns factos desvalorizando outros, que não encaixam na teoria. Ora se cai numa espécie de esquizofrenia, outras vezes se cai numa espécie de disforia, obviamente política, não biológica. Há os acontecimentos, que a linguagem transforma em factos. Mas o que mais nos atazana a cabeça é a fenomenologia dos factos e as suas relações de causa e efeito, ou seja, a causalidade no jargão dos filósofos. Ultimamente tem-se falado bastante sobre civilidade: boa educação, bom senso e bom gosto. Boas e más ideias.

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