O espírito de uma cultura de honra é sempre um foco de tensões. Há uma tensão cultural profunda entre os dois sistemas de valores: o do individualismo igualitário que marcou a modernidade europeia fruto do Iluminismo e da laicização progressiva das instituições; e o do coletivismo hierárquico e identitário presente em muitas culturas orientais, especialmente em contextos de diáspora.
A cultura de honra -- típica de sociedades tribais e fortemente comunitárias, que valorizam a reputação, a virilidade, a família e a lealdade ao grupo -- é mais notada quando releva a resposta de uma comunidade que se sente ofendida pelo "Outro". Uma das conquistas que o iluminismo imprimiu à cultura europeia foi a transferência para o poder do Estado de dirimir esses diferendos entre grupos desavindos.
A cultura da dignidade ocidental tende a delegar conflitos ao Estado e a promover a tolerância e a negociação civilizada, mesmo quando isso exige engolir ofensas pessoais. Mas nos últimos anos chegou uma coisa nova ao Ocidente: o culto da vitimização como capital simbólico do encorajamento da empatia e da proteção dos “oprimidos”. Sendo uma causa que foi abraçada por uma elite académica bem intencionada, contudo, tem sido instrumentalizada por quem não partilha esses valores, especialmente quando a cultura de honra interpreta a tolerância como fraqueza, e a vitimização como tática de manipulação.
As elites ocidentais atualmente sentem-se culpabilizadas historicamente. E por isso evitam exercer a autoridade com medo de serem acusadas de racistas. Ora, isso tem minado a confiança social, fragilizando a autoridade do Estado como hospedeiro de hóspedes que não respeitam as leis desse Estado. É o que alguns sociólogos conservadores denominam por "doença sociológica das periferias urbanas".
A ironia trágica é que os europeus, ao projetarem um universalismo ético, acabaram baixando as defesas institucionais. E ao acolherem populações de cultura de honra, sem exigir contrapartidas reais de integração, criaram zonas de tensão cultural crónica que se estenderam por gerações. Norbert Elias, na sua obra – O Processo Civilizacional – descreve a longa jornada europeia de internalização da disciplina, o autocontrolo, a delegação da violência nas mãos do Estado, a valorização da cortesia e da vergonha em vez da honra. Isso contrasta com culturas em que a honra é externa, ou seja, reside no olhar dos outros e deve ser defendida, se necessário, com sangue. A Europa secularizou e refinou os seus mecanismos de controlo da violência. A cultura de honra muçulmana (ou de outras sociedades tribais) funciona com outra lógica: é mais importante vingar uma irmã desonrada do que levá-la ao terapeuta. Num contexto europeu onde o autocontrolo é rei, essa lógica parece bárbara, mas para o portador dessa cultura, ela é nobre.
Emmanuel Todd – com a sua antropologia das famílias – estudou os modelos familiares que estão por trás das ideologias. Ele nota que o Islão sunita, especialmente em sociedades árabes e afegãs, favorece estruturas patrilineares, endogâmicas e autoritárias. Já a Europa do Norte favorece famílias igualitárias e individualistas. O multiculturalismo europeu falhou ao presumir que valores familiares e educacionais poderiam ser adaptados por osmose. Em vez disso, o gueto cultural reprodutivo persistiu, inclusive no seio da segunda ou terceira geração, que se radicalizou mais ainda, buscando nas mesquitas uma identidade sólida que a sociedade de acolhimento não oferece.
Bernard Lewis debruçou-se sobre o ressentimento histórico. No célebre “What Went Wrong?”, explica o ressentimento do mundo islâmico como reação ao declínio de uma civilização que já foi hegemónica. O contacto com o Ocidente moderno (militarmente superior, culturalmente secularizado) foi vivenciado como humilhação. A migração muçulmana para a Europa não é só económica, é também simbólica: entrar na “casa do inimigo vitorioso”. Daí que muitos muçulmanos não integrem a cultura do anfitrião, mas sim a desafiem ou se refugiem na sua própria. A cultura de honra reage à humilhação com orgulho. O discurso europeu da tolerância parece, a certos olhos, humilhante e frouxo, não inspirando respeito.
Amin Maalouf, escritor libanês francófono, escreveu "As Identidades Assassinas", onde alerta que identidades fechadas e absolutas são perigosas. Ele defende a ideia de identidades múltiplas -- ser muçulmano, francês, árabe, europeu, simultaneamente. O ideal é atraente, mas falha na prática quando a cultura de origem impõe lealdade total ao grupo étnico ou religioso, punindo o “traidor” que se ocidentaliza. A cultura europeia, por outro lado, dá liberdade para romper com a origem, o que muitas vezes é visto como apostasia, literal ou simbólica.
Em "A Tirania da Penitência", Pascal Bruckner acusa a Europa de cultivar um sentimento de culpa histórico (pela colonização, pelo racismo, pelo Holocausto), que a torna psicologicamente indefesa. Ela perdoa a todos, mas não a si mesma. Essa disposição penitente casa mal com uma cultura de honra, que não se autocritica da mesma forma. Resultado: a Europa baixa as defesas, enquanto seus críticos levantam os punhos. A vitimização muçulmana muitas vezes é absorvida de forma acrítica, mesmo quando camufla projetos hostis à liberdade de expressão ou igualdade de género.
Em "Submissão", Michel Houellebecq imagina uma França futura governada democraticamente por um partido islâmico moderado, numa aliança entre uma elite laica cansada e um Islão com energia espiritual. O protagonista, um intelectual ateu, cede ao Islão não por convicção, mas por vazio interior. A decadência espiritual da Europa pós-cristã abre espaço para uma religiosidade mais vigorosa. O Islão oferece sentido, comunidade, disciplina -- o que muitos europeus perderam. A questão não é só demográfica, mas existencial: o Islão sobrevive ao Ocidente porque ainda acredita em algo. O multiculturalismo clássico europeu baseou-se na ideia de que diferentes culturas poderiam coexistir lado a lado num mesmo território, sem que fosse necessário exigir plena assimilação. Essa política partiu de uma boa intenção, mas não previu a persistência de valores incompatíveis com o ethos europeu (liberdade de expressão, igualdade de género, laicidade etc.).
A alternativa é o interculturalismo exigente, baseado em regras claras de convivência não negociáveis (constituição, laicidade, igualdade de direitos); Reconhecimento limitado da diversidade, sem exceções culturais para práticas regressivas (mutilação genital, véu integral, casamentos forçados); Exigência de língua, trabalho e escolarização como condição para residência estável. Exemplo: A Dinamarca revogou parcialmente o multiculturalismo e exige que os imigrantes aprendam dinamarquês, trabalhem, e que seus filhos frequentem creches públicas para socialização precoce com os valores locais. Laicidade ativa e não envergonhada. A França, mesmo com seus problemas, é um caso de resistência laica ativa. A laïcité não é neutralidade passiva, mas uma afirmação positiva do espaço público livre de símbolos religiosos ostensivos, especialmente em escolas e instituições públicas. Isso contraria tanto a cultura de honra (que exige visibilidade e controlo do feminino), quanto a cultura da culpa europeia (que teme parecer islamofóbica). A solução é a firmeza legal sem retórica xenófoba. Reeducar a opinião pública ocidental para perceber que defender os próprios valores não é racismo -- é o dever de qualquer civilização que se quer viva.
A integração real só acontece se for promovida desde a infância -- nas escolas e nos bairros, e não apenas em discursos políticos ou cursos para adultos. Isso significa currículos que transmitam valores civis europeus com firmeza, sem complexos; Identificação precoce de zonas de segregação cultural onde a lei do Estado não entra (sharia informal, pressão de clãs, criminalidade organizada); Combate à ideologia da vítima eterna -- muitos jovens muçulmanos crescem convencidos de que o Ocidente lhes deve tudo, e de que toda a crítica à sua cultura é opressiva. Não se trata de militarizar bairros ou hostilizar comunidades, mas sim de recuperar a autoridade do Estado nas zonas onde ela foi substituída por “autoridades paralelas”: clérigos, líderes de gangues ou chefes familiares. Isso exige Polícia bem treinada e presente.
É necessário romper com a linguagem anestesiante que impede o diagnóstico. Quando um político, um professor ou um jornalista se recusa a nomear o problema por medo de ser acusado de racismo, a verdade desaparece do debate público -- e o espaço é ocupado por extremistas. A coragem é dizer que há valores ocidentais inegociáveis (igualdade homem/mulher, liberdade de crítica religiosa, separação entre fé e Estado); Que nem toda cultura é equivalente -- algumas práticas são objetivamente regressivas; Que a integração é um dever mútuo -- não um direito unilateral.
A Europa está entre dois fogos. Um universalismo culpado que enfraquece a coesão cultural; Uma pressão identitária vinda de fora, que explora as fraquezas morais da sociedade de acolhimento. A resposta não pode ser o fechamento reacionário, nem a rendição multicultural. Deve ser a afirmação firme e justa de uma civilização aberta, mas não indefesa. A firmeza laica é essencial, mas precisa vir acompanhada de inclusão real (trabalho, escola, segurança). O laboratório multicultural mais permissivo do Reino Unido também falhou com a autorização de práticas comunitárias paralelas (inclusive conselhos com base na sharia). Guetização étnica e religiosa (zonas em Birmingham, Londres, Luton); Tolerância a líderes comunitários reacionários, em nome da “diversidade”; Recuo da autoridade do Estado, permitindo tribunais paralelos baseados na sharia. Lição: O multiculturalismo laissez-faire fragiliza o contrato social, pois aceita padrões morais contraditórios no mesmo território.
A Alemanha, por sua vez, teve um acolhimento massivo com resultados ambíguos. O modelo apesar de economicamente funcional, foi culturalmente tímido com o acolhimento de mais de 1 milhão de refugiados em 2015. Falhou com a negação inicial da dimensão cultural do problema -- o famoso “Wir schaffen das” (“Nós conseguimos”) de Merkel falhou em prever a resistência interna. Tolerância a zonas de baixa assimilação cultural (mesquitas ligadas à Turquia, por exemplo). Isso levou a choques frequentes com normas islâmicas sobre género, sexualidade e autoridade familiar. Lição: A integração económica é indispensável, mas não substitui a clareza moral sobre os valores da sociedade anfitriã.
A Suécia veio a revelar-se uma grande surpresa pela negativa. O paraíso dos bem intencionados virou alerta europeu. Era um país com valores humanistas fortes, generoso em acolhimento. Teve uma grande recepção a refugiados e a imigrantes do Médio Oriente. Agora tornou-se um dos países com maior número de tiroteios per capita na Europa. Os suecos meteram a cabeça na areia e não viram os problemas culturais a lavrar no dia a dia. Jornalistas e políticos evitavam ligar criminalidade a imigração. E não tardou uma explosão de gangues juvenis de origem estrangeira. As políticas de habitação desastrosas estiveram na base da criação de guetos. Ora, a ascensão da extrema-direita não se fez esperar por muito tempo. A bondade sem lucidez é combustível para o colapso da coesão social.
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