É impressionante como o lobo da ínsula nos pode atraiçoar quando somos alvo da propaganda. Façamos com que a ínsula dos nossos seguidores confunda o literal com o metafórico e já conseguimos realizar 99% do nosso trabalho de catequista, seja na religião seja na política. Não é necessário mentir com sofisticação, basta que o auditório confunda níveis de linguagem, que aceite símbolos como factos, e parábolas como comandos. A eficácia de líderes religiosos ou políticos que recorrem a narrativas simples, mas emocionalmente carregadas vem justamente dessa confusão induzida entre o simbólico e o real, o figurado e o factual.
O “catequista”, com o catecismo do medo – seja ele um padre, um ideólogo, ou um influencer – não precisa convencer racionalmente; basta-lhe que o público aceite como verdade aquilo que, num discurso mais vigilante, seria apenas metáfora. Quando mencionamos o "lobo da ínsula" e a manipulação entre o literal e o metafórico, trazemos à tona uma das engrenagens mais perigosas da propaganda. Uma engrenagem que esteve no coração do nazismo e que, infelizmente, reaparece hoje com roupagens modernas. Durante o Terceiro Reich, a desumanização dos judeus – tratá-los como ratos, parasitas, pragas – não foi apenas linguagem ofensiva. Foi uma operação semiótica deliberada, uma engenharia simbólica para deslocar os judeus da esfera do humano para a do descartável. Metáforas animais, quando aceites como verdades factuais ou "descrições naturais" da realidade, funcionam como pontes para o horror. Esses catequistas do medo manipulam arquétipos: o invasor, o parasita, o traidor interno. Transformam ansiedades legítimas (sobre identidade, segurança, cultura) em linguagem tóxica que prepara o campo para ações radicais. A violência, quando chega, já não parece extrema — parece natural.
A confusão entre o metafórico e o literal é o primeiro passo na banalização do mal. Quando se repete que alguém “infesta”, “corrói”, “contamina”, essas imagens passam a ser absorvidas pelo “lobo da ínsula”, ou seja, pela parte mais instintiva e isolada do sujeito, que busca identidade e segurança através de inimigos simbólicos. A propaganda infiltra-se nesse espaço de solidão identitária, e ali planta monstros. Hannah Arendt, ao acompanhar o julgamento de Eichmann, viu com lucidez algo ainda mais aterrador: não se tratava de um monstro sanguinário, mas de um homem banal, incapaz de pensar para além do discurso dominante, imerso num vocabulário técnico, cego à tragédia que executava. A linguagem esvaziada de reflexão, a metáfora tomada como ordem literal, é o campo fértil onde o mal se banaliza.
Hoje, esse padrão ressurge. Muçulmanos são chamados de cancro na Europa, migrantes africanos de invasores, ciganos de parasitas, e até adversários políticos são vermes ou pestes nas redes sociais. Quando estes vocábulos passam despercebidos ou são normalizados, estamos a poucos passos de novos Eichmanns: burocratas da crueldade, executores cegos de metáforas tomadas como missão. E talvez a mais inquietante verdade seja esta: o "catequista" contemporâneo não precisa sequer de púlpito. Basta-lhe um algoritmo que alimente a ínsula de cada um com versões personalizadas da realidade. E assim, sem que se perceba, a confusão entre o literal e o metafórico transforma-se em campo de extermínio, às vezes simbólico, outras vezes real.
Nos Estados Unidos os "Invasores" estão hoje na fronteira sul. Políticos influentes e apresentadores como Tucker Carlson (antes na Fox News) têm repetido a narrativa de que os imigrantes latino-americanos estão “invadindo” os EUA. Palavras como invasão, infestação, dominação demográfica transformam fluxos migratórios em atos de guerra.
Isso levou ao massacre de El Paso em 2019, quando o atirador publicou um manifesto declarando que queria “parar a invasão hispânica do Texas”. Aqui, a metáfora de guerra foi literal, e o resultado foi sangue. O “lobo da ínsula” do atirador – alimentado por anos de propaganda – julgou estar a cumprir uma missão patriótica. O governo de Viktor Orbán promoveu durante anos uma teoria da conspiração onde George Soros (judeu, liberal, bilionário) seria o arquiteto de um plano para “islamizar” a Europa através da migração. Um Outdoor em Budapeste dizia: "Não deixemos Soros rir por último". Aqui o judeu não é chamado literalmente de rato, mas é o arquiteto oculto da decadência, uma imagem que ecoa os Protocolos dos Sábios de Sião. Este discurso fez renascer uma retórica antissemita “modernizada”, onde o antissemita nega sê-lo porque fala de “globalistas” e “elites culturais”. A metáfora é atualizada, mas o veneno é o mesmo.
Nos últimos anos, líderes políticos e influenciadores no Brasil, particularmente no tempo da presidência de Bolsonaro, recorreram frequentemente à linguagem de purificação, combate ao inimigo interno, guerra cultural, e à associação da esquerda com vermes, criminosos, sanguessugas. As falas de cunho militarista ou religioso usavam um vocabulário que naturalizava o extermínio simbólico, senão físico. Éric Zemmour, em França, comentador e político da extrema-direita francesa, impulsionou o mito do "grand remplacement”. Uma suposta substituição dos europeus brancos por muçulmanos. Ao referir-se a essa substituição como inevitável e orquestrada, ele cria a ideia de um cerco, de uma guerra invisível. Isso legitima medidas de exclusão, repatriação em massa e ataques verbais (e físicos) contra muçulmanos, mesmo que muitos deles sejam cidadãos franceses há gerações.
Sem comentários:
Enviar um comentário