sexta-feira, 4 de julho de 2025
Restauremos a consciência crítica da linguagem
A primeira defesa é a alfabetização semântica. Ensinar e reaprender que as palavras têm história, intenção e efeitos. Quando alguém diz “eles infestam o país”, é preciso perguntar: quem são “eles”? De onde vem a palavra “infestar”? Que imagem isso provoca? A linguagem não é neutra, ela molda o imaginário. Discursos políticos, religiosos ou jornalísticos precisam ser lidos com dupla consciência: o que está a ser dito, e o que está a ser feito por meio das palavras.
Hannah Arendt não era apenas uma filósofa, era uma leitora exímia das palavras políticas. A sua denúncia da "linguagem automatizada" de Eichmann é um aviso para todos nós: quem repete sem pensar está sempre a um passo da cumplicidade. É preciso educar o “lobo da ínsula” -- o sujeito interior. A ínsula é o espaço íntimo onde cada um forma os seus julgamentos. Quando essa ilha se torna um bunker fechado, alimentado apenas por ressentimentos ou algoritmos, torna-se perigosa. A escola, a literatura, o teatro, o cinema, o diálogo filosófico: todos são meios para educar o juízo interior.
O fanatismo alimenta-se de certezas. A democracia vive da ambiguidade, da negociação, da hesitação. O debate público precisa reabilitar a dúvida, o contraditório e o desacordo produtivo. A metáfora, quando bem compreendida, abre à interpretação, e não ao dogma. O problema não é usá-la, mas tomá-la como descrição absoluta do real. As artes, sobretudo a poesia e o teatro, são espaços privilegiados para mostrar que há mais mundos do que o nosso, mais versões da verdade do que a nossa narrativa interior.
Um líder que fala de “limpeza social” ou “vermes da sociedade” deve ser confrontado diretamente: “Está a sugerir extermínio? Deportação? Quais são os limites da sua metáfora?” O jornalismo ético tem aqui um papel central: não apenas reportar, mas interrogar as palavras. Muitos se tornam presas fáceis da propaganda porque estão sós, ressentidos ou invisibilizados. Antes de combater ideologias, é preciso escutar pessoas. O combate ao radicalismo não é apenas uma guerra de ideias. É também uma disputa por atenção, acolhimento e pertença. Um jovem que encontra sentido numa comunidade extremista talvez esteja a gritar por lugar, por importância. A resposta política e ética à propaganda não pode ser apenas censura ou indignação. Tem de ser também substituição: dar outros sentidos, outras metáforas, outras pertenças.
Portanto, vimos a ínsula ao serviço do ódio. Mas o peculiar processamento literal de metáforas nos nossos cérebros pode também oferecer ao pacifista uma ferramenta bastante eficiente. Aquilo que vimos como tragicamente perigoso, o processamento literal de metáforas, pode, com igual força, ser convertido numa ferramenta de paz, compaixão e lucidez ética. A mesma ínsula que, mal orientada, é pasto para o fanatismo, pode tornar-se horta de humanidade, se for cultivada com o verbo justo. A nossa mente, especialmente no seu centro emotivo e simbólico, não distingue bem entre o real e o figurado. Isso é uma vulnerabilidade… mas também uma oportunidade. O pacifista pode usar metáforas não para iludir, mas para reconfigurar. Por exemplo, quando se diz: "construamos pontes, não muros", o cérebro não precisa de ver uma ponte literal, ele sente a imagem, o gesto ético. Quando Mandela dizia: "O perdão liberta a alma", isso não é uma tese, é uma metáfora que o corpo inteiro entende como cura. Jesus, Buda, Gandhi e mesmo figuras laicas como Luther King ou Vaclav Havel usaram metáforas de luz, caminho, fermento, água -- imagens simples que, tomadas a sério pelo coração, conduzem a ações reais de reconciliação.
Estudos em neurociência mostram que metáforas ativam redes sensoriais e emocionais, não apenas áreas lógicas. Logo, dizer “a paz é uma semente” não é apenas poético. Para o cérebro, isso implica: cuidado diário, paciência, crescimento orgânico, esperança de colheita. A linguagem pacífica, se bem construída, é ação preparatória. Ela torna o corpo e o espírito aptos a reagir com calma onde haveria raiva. Uma advertência: o pacifista não pode ser ingénuo. O bom uso da metáfora não pode ser inofensivo no mau sentido. Ela tem de ser também desafiadora, precisa e memorável, ou será engolida pela retórica agressiva dominante. O pacifista precisa de um vocabulário à altura da sua causa, sem cair no jargão moralista ou autoajuda banal. Por exemplo, pela paz na Palestina, um pedido de desculpa aos palestinianos por parte de Israel, pelo que foi a expulsão em 1948; e o fim do antissemitismo e antissionismo da outra parte - faria muito mais do que qualquer ação securitária. Não há blindagem nem cúpula de ferro que substitua a força simbólica e política de um pedido de desculpa autêntico, nem drone que valha mais do que o reconhecimento do sofrimento mútuo. A paz duradoura é sempre precedida por um ato de desarmamento linguístico e moral.
Imagina Israel pedir desculpas pela Nakba? Imagina o que aconteceria se, num gesto inesperado, a liderança israelita, ou até um grande movimento cívico de israelitas dissesse: “Reconhecemos a dor dos palestinianos expulsos de suas casas em 1948. A Nakba é uma ferida real. Embora o nosso Estado tenha nascido da necessidade e do trauma, reconhecemos que isso causou outro trauma. Pedimos desculpa. Não porque somos fracos, mas porque queremos ser fortes o suficiente para viver juntos.” Isso criaria uma rutura no ciclo da humilhação. Abriria espaço para os palestinianos reconhecerem, sem medo, o direito à existência de Israel. Mas só quem se sente reconhecido pode, enfim, reconhecer o outro.
Do lado palestiniano (e também de certos setores árabes e europeus), o fim do antissemitismo e do antissionismo total seria um gesto de igual coragem: “Reconhecemos que os judeus têm direito a um lar seguro. Não negamos a existência de Israel, queremos coexistir com ela. A nossa luta não é contra os judeus, mas contra a ocupação. Não queremos destruir, queremos viver.” Esse tipo de declaração tem um poder que nenhum tanque ou míssil possui. Porque é dirigida à ínsula do outro, não à sua trincheira. Ações securitárias, cercas, checkpoints e drones nunca curam. No máximo, congelam o conflito por um tempo. Até que volte com mais raiva. Só o gesto simbólico reconstrói as fundações invisíveis do tecido social. O pedido de desculpa reconstrói a dignidade de quem foi oprimido. A renúncia ao ódio restitui a humanidade de quem foi oponente. O reconhecimento mútuo traz uma nova gramática à política: em vez de "segurança", "convivência"; em vez de "confronto", "história partilhada".
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