domingo, 6 de julho de 2025

Os neurónios-espelho


Na questão dos neurónios-espelho, pergunta-se se somos compassivos para com o outro, ou para nós mesmos. "No que estavas a pensar quando te atiraste ao rio para salvar a criança? "... "Eu não estava a pensar, quando dei por mim já me tinha atirado". De qualquer forma, hoje, os especialistas dizem que se sobrevalorizou demais os neurónios-espelho. Temos aqui várias camadas: neurociência, ética, psicologia evolutiva, e até filosofia moral. Vamos por partes. Os neurónios-espelho o que são e porque fascinaram tanto?

Descobertos nos anos 1990 por Giacomo Rizzolatti e colegas, os neurónios-espelho foram inicialmente observados em macacos, disparando tanto quando o animal executava uma ação como quando observava outro a fazê-la. Em humanos, acredita-se que estejam ligados a processos como: imitação; aprendizagem por observação; empatia (ou seja, a capacidade de sentir com o outro). Durante algum tempo, houve um entusiasmo quase messiânico com os neurónios-espelho como se fossem a chave da empatia, da linguagem, da arte, da cultura, e até da moralidade. Hoje em dia, os especialistas reconhecem que a importância dos neurónios-espelho foi sobrestimada. A evidência empírica direta em humanos é escassa porque não podemos enfiar elétrodos nos cérebros como nos macacos.

Há empatia e moralidade mesmo em pessoas com alterações nas áreas ligadas ao sistema espelho (ex.: autismo, psicopatia), o que mostra que o sistema espelho não explica tudo. Ou seja: não são os "neurónios da empatia" nem os "neurónios do altruísmo". No máximo, facilitam certos comportamentos sociais, mas não os determinam.

Alguém que se atira instintivamente ao rio para salvar uma criança mostra o que muitos chamariam de “impulso moral automático”. A pessoa não racionaliza, apenas age. Mas então por que age? Pela criança? Pelo choque de imaginar-se no lugar da criança? Por um impulso aprendido na cultura? Por não suportar a ideia de si mesmo a não agir? Estas questões foram tratadas, por exemplo, por David Hume (empatia e sentimentos morais), Emmanuel Levinas (a alteridade como fundamento da ética), e mais recentemente por neurocientistas morais como António Damásio (o papel da emoção na decisão moral). Na verdade, muitos autores sugerem que a empatia começa no eu, ou seja, sentimos pelo outro aquilo que imaginamos que nós próprios sentiríamos. Isto levanta uma dúvida ética: será a compaixão verdadeira, ou uma forma de egocentrismo projetado?

Portanto: A ação instintiva do tipo "saltei sem pensar" não precisa de neurónios-espelho para acontecer. Pode resultar de uma combinação de memória emocional, valores internalizados, evolução biológica (proteger crias da espécie), e sim, talvez também um sistema espelho que ativa de forma rudimentar. A ideia de que somos compassivos com o outro ou conosco é uma falsa dicotomia. Talvez o que nos move seja a incapacidade de dissociar o sofrimento do outro da possibilidade do nosso próprio sofrimento. Podemos estar a agir tanto por compaixão como por autoidentificação involuntária. E talvez isso baste para que o bem seja feito, mesmo sem a mediação racional ou a glória dos neurónios-espelho.

Joshua Greene é uma das vozes mais influentes da chamada neuroética contemporânea. Filósofo e psicólogo experimental em Harvard, Greene estuda como fazemos julgamentos morais e como o cérebro lida com dilemas éticos, combinando neuroimagem, psicologia moral e teoria filosófica. Na sua obra mais conhecida, "Moral Tribes: Emotion, Reason, and the Gap Between Us and Them", Greene propõe que há dois sistemas de processamento moral no cérebro humano: o "sistema automático" (emocional, rápido, intuitivo) que evoluiu para lidar com dilemas sociais de pequena escala dentro da tribo. É aquele que nos faz "saltar ao rio" sem pensar. Está ligado a áreas cerebrais como a amígdala e o córtex cingulado anterior. Responde bem a situações com rostos, sofrimento visível, proximidade emocional.

O "sistema não automático, pensado" (racional, deliberativo, que mede as consequências) evoluiu mais tarde, com a linguagem, cultura e instituições. Entra em ação quando temos tempo para ponderar prós e contras, calcular consequências. Está associado ao córtex pré-frontal dorsolateral. É o que usamos, por exemplo, para decidir entre salvar uma criança ou cinco num dilema de experiência de pensamento. Greene argumenta que, no mundo moderno, com tribos que se cruzam, culturas que se chocam, e desafios globais -- o sistema automático já não chega. Precisamos da razão, da análise imparcial. Precisamos de um "utilitarismo pragmático". Greene não rejeita os mecanismos empáticos, mas é crítico quanto à sua limitação estrutural.

Os nossos cérebros foram moldados para empatia seletiva. Sentimos mais facilmente por quem se parece conosco, por quem está perto, por quem é da nossa "tribo". A empatia automática é irracional: choramos com a dor de uma criança num vídeo viral e ignoramos mil crianças num campo de refugiados sem imagens. A empatia é como um holofote: ilumina intensamente um pequeno círculo, mas deixa tudo à volta na penumbra.

Para Greene, os neurónios-espelho e os sistemas empáticos são parte desse holofote (úteis, mas injustos se usados como única base moral). Se sou compassivo com o outro ou comigo mesmo, Greene diria: O sistema automático não distingue bem. O sofrimento alheio ativado no nosso cérebro é sentido como nosso (aí entra a ideia de "neurónios-espelho"). Mas isso não é suficiente para uma ética global. Para sermos verdadeiramente morais num mundo interconectado, precisamos de sair de nós mesmos com esforço deliberado. Saímos da empatia instintiva para praticar a justiça racional. Greene propõe que só com razão moral deliberativa, acima da intuição, conseguimos lidar com dilemas éticos de larga escala. Ele não despreza a empatia, mas quer complementá-la com algo mais justo: um utilitarismo reflexivo e consciente.

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