quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Whataboutism e o Espelho Moral Que Nos Falta


O termo whataboutism – muito usado no discurso político e ético contemporâneo – descreve a tentativa de desviar a atenção de uma crítica moral válida ao apontar uma falha alheia ou paralela: "O que fiz foi errado? Mas e o que o outro fez? E a vez em que vocês..." Esse mecanismo é uma forma de evasão moral, que normalmente atua como: autodefesa emocional (proteger o ego); desvio de responsabilidade (reduzir dissonância cognitiva); relativismo ético oportunista (comparação com algo "pior" para minimizar a culpa).

O julgamento moral humano é profundamente assimétrico. Somos, por natureza, mais indulgentes com os nossos erros do que com os dos outros. Essa inclinação cognitiva / emocional está na base de um fenómeno muito conhecido no discurso público contemporâneo: whataboutism. Trata-se de uma estratégia de desvio que tenta neutralizar uma crítica moral apontando uma falha alheia, geralmente sem qualquer relação direta com o assunto original.

Na filosofia de Platão, a alma justa é aquela em que a razão domina o desejo e a coragem. O whataboutism surge como um sintoma da alma desordenada: preferimos justificar-nos emocionalmente a reconhecer a verdade racional. O mito da caverna é emblemático: não vemos a realidade moral como ela é, mas apenas as sombras confortáveis da nossa autoimagem. O autoengano é, portanto, uma forma de ignorância ativa. Segundo Kant, a moralidade está ancorada no imperativo categórico: agir segundo máximas que se possam tornar lei universal. O whataboutism contradiz esse princípio, pois ninguém aceitaria que a própria estratégia fosse usada contra si. Ao justificar os nossos atos com base nos erros alheios, mostramos que não estamos a agir por dever, mas por interesse. Quebramos assim o princípio da autonomia moral e transformamos a ética em conveniência.

Jonathan Haidt demonstra que os nossos julgamentos morais são, em larga medida, intuitivos e emocionais. A razão funciona mais como advogada dos nossos desejos do que como juíza imparcial. O whataboutism é uma manifestação disso: protege o grupo, o ego ou a identidade. O julgamento imparcial cede ao impulso tribal de defender os nossos, mesmo quando isso implica justificar o injustificável. A psicologia cognitiva explica que somos particularmente maus a reconhecer os nossos próprios vieses. O viés do ponto cego faz com que vejamos as distorções cognitivas dos outros com clareza, mas ignoremos as nossas. Acrescente-se a heurística da justificação motivada, e temos um cérebro que fabrica argumentos para proteger a autoestima, e não para buscar a verdade. O whataboutism é, portanto, uma resposta emocional racionalizada à posteriori.

O whataboutism é apenas uma das formas dessa assimetria. Ele distorce o diálogo, destrói a confiança e impossibilita a evolução moral coletiva. O verdadeiro progresso ético exige o cultivo de um "espelho moral universal": a capacidade de julgar os nossos atos com o mesmo rigor que usamos para julgar os dos outros. Trata-se de um ideal difícil, mas talvez o mais urgente para um tempo de fragmentação moral e polarização emocional. Como dizia Montaigne: "Cada homem carrega a forma inteira da condição humana". Reconhecer essa verdade é o primeiro passo para escapar à captura do whataboutism e entrar no reino da maturidade moral. Quando perante uma determinada violação moral, o nosso juízo difere se for cometido por nós. Os circuitos cerebrais diferem, e nós temos tendência para a irracionalidade das falácias. 

Estudos em neurociência mostram que quando avaliamos erros dos outros, ativamos mais as áreas cognitivas de julgamento moral -- córtex pré-frontal dorsolateral. Quando avaliamos os nossos próprios erros, ativamos mais áreas emocionais e de autojustificação -- córtex orbitofrontal e medial (envolvido na regulação emocional). Esse desalinhamento entre razão e emoção leva a uma autoindulgência sistemática, que pode gerar falácias. A falácia tu quoque (“tu também”) tenta deslegitimar um argumento apontando a hipocrisia do interlocutor, em vez de abordar o conteúdo do argumento.

Assim, quando estamos em causa, distorcemos a evidência e o julgamento para proteger a nossa autoimagem. Isso explica a razão por que o whataboutism parece, emocionalmente, um “argumento legítimo” mesmo sendo logicamente inválido. Conclusão: temos falta de um“espelho moral”. A tradição filosófica, a neurociência e a psicologia convergem: a nossa moralidade é sistematicamente assimétrica. Julgamos a alma dos outros com a balança da justiça e a nossa com a almofada da emoção.

Sem comentários:

Enviar um comentário