Quando o crime tiver tratamento médico -- com a inteligência artificial a atuar como mediadora imparcial nos processos de avaliação de risco e no planeamento de tratamentos -- teremos um mundo melhor.
No modelo foucaultiano não se castiga, trata-se. Não se isola por vingança ou dissuasão, protege-se a sociedade enquanto se tenta reabilitar o indivíduo. As "prisões" seriam mais parecidas com instituições clínicas ou centros de reabilitação neurocomportamental. Seria a forma mais humanista de proteger os outros, não de punir os perigosos, que são doentes. Esta visão compatível com o pensamento de Michel Foucault (que estudou os dispositivos de poder nas prisões) também estou certo que seria subscrito por Peter Singer, o decano dos filósofos da Ética & Bioética. A ética da consideração imparcial de todos os seres conscientes.
Os dados das investigações neurológicas e genéticas reforçam a ideia de que, em última instância, há fatores biológicos plausíveis que tornam um indivíduo mais propenso a comportamentos socialmente danosos. Esta ideia remete diretamente à lógica medicinal em vez da penal: se a criminalidade é uma expressão de disfunções biológicas, então deve ser tratada como uma patologia, e não como uma falha moral.
Apesar da força da ideia, há entraves políticos e limites científicos. Nem todos os crimes se devem a fatores neurológicos identificáveis. A linha entre “má índole” e “disfunção cerebral” continua difusa. E há questões éticas: Quem decide o que é “tratável”? E se alguém recusa tratamento? Risco de autoritarismo médico: Um regime que trata criminosos como “doentes” pode acabar patologizando a dissidência. Justiça simbólica: A vítima e a sociedade esperam, ainda hoje, alguma forma de compensação moral. A abolição completa da punição exigiria uma transformação cultural profunda.
Seja como for, com os conhecimentos que temos hoje, o crime, cada vez mais, será visto como uma expressão de causas que a biologia (e a medicina comportamental) pode compreender. A lógica retributiva poderá ceder, gradualmente, à lógica terapêutica. Essa transição — embora utópica nis dias de hoje, a acontecer, provavelmente demoraria décadas ou séculos. Mas não deixaria de representar um salto ético da civilização em direção a uma sociedade menos vingativa, mais preventiva, mais científica, e mais humana.
Uma verdadeira revolução antropológica e civilizacional. Não se trata apenas de mudar o modo como tratamos os criminosos, mas de reestruturar o conceito de justiça, responsabilidade, punição e até de liberdade. As implicações políticas seriam abismais. A justiça penal deixaria de ser um pilar do poder de Estado. Não haveria “Ministérios da Justiça” com prisões e tribunais convencionais. No seu lugar haveria Ministérios de Risco Comportamental e Proteção Cívica.
A sociedade abandona o castigo como resposta moral ao mal. Em vez disso, desenvolve uma nova ética da vulnerabilidade universal: todos somos potenciais doentes; todos devemos cuidar uns dos outros. A ideia de “livre-arbítrio absoluto” é reformulada. Fala-se agora em graus de autonomia neurocomportamental, sempre contextualizados. As penas perpétuas e a pena de morte tornam-se impensáveis -- equivalem a abandonar um ser humano à sua doença. O sofrimento intencional de um criminoso passa a ser visto como barbárie -- da mesma forma que hoje se veria torturar um esquizofrénico.
A Biomedicina e a tecnologia passam a ser a base do novo sistema. A medicina comportamental integra ferramentas como a terapia genética personalizada para regular disfunções associadas à agressividade ou psicopatia. Estimulação cerebral não invasiva para modular centros de empatia, autorregulação e culpa. Interfaces cérebro/máquina que monitorizam e ajustam a impulsividade em tempo real com consentimento e supervisão ética. Terapias virtuais de reencenação empática, que expõem o paciente à experiência sensorial da sua vítima.
Esta previsão antecipa um salto de paradigma histórico: do castigo à cura, da exclusão à reintegração, da culpa à compreensão. A ciência de ponta da inteligência artificial já existe. Faltam mudanças éticas profundas, uma nova concepção de humanidade, e uma educação que prepare as futuras gerações para verem no criminoso não um inimigo, mas um humano em falha, como todos nós -- apenas mais evidente, mais urgente, mais extremo.
Esta será a refutação definitiva da tese do livre-arbítrio que durante milénios consumiu o pensamento de filósofos como Santo Agostinho. Depois vieram as prisões como resposta legítima contra o crime que tinha de ser punido com isolamento. Alimentámos uma ilusão moral: a de que o ser humano escolhe livremente ferir, matar e abusar. Uma vocação para o mal que é de nascença. Mas a ciência desfez essa ilusão. O cérebro humano não é uma fortaleza de liberdade absoluta. É uma estrutura plástica, programável, e vulnerável a ser danificada. Os atos que nos chocam, nos ferem e nos dividem: homicídios; violações; corrupção predatória - não brotam do vazio. São a flor venenosa de raízes invisíveis: infância desfeita; traumas precoces; disfunções neuronais; desregulações emocionais; genética de risco; falhas educativas; abandono afetivo . . .
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