Há pouco tempo foi
noticiado o caso de Jo Cameron, uma escocesa, já com 71 anos de idade, que não
sentia qualquer tipo de dor. É curioso que também não sabe o que é ter medo, ou
ansiedade. Casos como este são extremamente raros.
Trouxe este caso
não para falar dos seus aspetos clínicos, mas para abordar a questão do
contributo da fenomenologia da senciência para o conhecimento de determinado
tipo de realidade que dificilmente seria conhecida pela ciência se não fosse
sentida da forma como é sentida. Por conseguinte, o que define o que é a dor
enquanto entidade ontológica, não é o seu processo fisiológico, mas a sua
superveniência sintomática.
Imaginemos que os
neurocientistas, depois lhe examinarem o cérebro com o último grito da
tecnologia, registavam os sinais neurológicos que classicamente se
correlacionam com a dor, e diziam a Jo Cameron que afinal ela sentia dor, mas
não a verbalizava. Ora, seria inapropriado os neurocientistas dizerem que ela
tinha dores, alegando que não se encontrava nenhuma anomalia ao nível da sua
fisiologia neurológica. Mas na realidade Jo Cameron desconhece a fenomenologia daquilo
a que as outras pessoas chamam dor.
O que confere
ontologia ao fenómeno ‘dor’ é ser sentida como tal quando a referimos nos
termos da nossa linguagem coloquial, e não a presença de um estado cerebral com
a qual se possa correlacionar. Apesar de as sensações, ou imagens mentais
internas, serem propriedades mentais categorizadas de uma maneira diferente dos
processos físicos e fisiológicas com os quais se correlacionam, não implica que
tenhamos de nos comprometer com o dualismo clássico. Não faria sentido dizer
que quando falamos das nossas dores estamos a falar acerca de processos que
ocorrem nos nossos cérebros. As afirmações acerca de sensações e imagens
mentais não são redutíveis a afirmações acerca de processos cerebrais. As
operações exigidas para verificar afirmações acerca da consciência e afirmações
acerca de processos cerebrais são fundamentalmente diferentes.
No
campo da fenomenologia em ‘primeira pessoa’, há evidentemente uma independência
lógica de expressões, e uma menos clara independência ontológica de entidades.
Os termos ‘mente’ e ‘cérebro’ são claramente termos com significados diferentes.
Mas o fenómeno mental, em bom rigor, não deve ser separado do cérebro, na
medida em que sem cérebro não pode haver mente. Mas há diferenças na forma de
abordar o cérebro para explicar um determinado fenómeno mental e o conhecimento
do mesmo fenómeno mental por parte da pessoa que o sente ou conhece. Isto
implica para o mesmo acontecimento dois conjuntos de observações. As operações
exigidas para verificar afirmações acerca da consciência, e as afirmações
acerca dos processos cerebrais observados pelos neurocientistas.
As
afirmações acerca de dores e sobre a sua aparência, o seu caráter, o seu local,
a sua intensidade são afirmações que se referem a eventos e processos que são
em certo sentido privados ou internos ao indivíduo de quem são predicados. A
questão que alguns filósofos levantam é que pensar-se assim não se evita o
dualismo. Mas a aceitação da fenomenologia na primeira pessoa, e ao mesmo tempo
dizer que a consciência é um processo que ocorre no cérebro, não implica
dualismo.
Reconhecemos
as coisas no nosso ambiente pela sua aparência (som, cheiro, sabor,
textura), e podemos descrever por palavras as suas propriedades fenoménicas.
Mas aqui há um aspeto importante a esclarecer: a aprendizagem do seu
reconhecimento fenomenológico é precedida pela aprendizagem das suas
descrições. Na verdade,
é só depois de termos aprendido a descrever as coisas no nosso ambiente que
podemos aprender a descrever a consciência que temos delas. Não descrevemos
a nossa experiência consciente em termos de propriedades fenoménicas.
A dor não é um estado cerebral, no sentido de um estado físico-químico do
cérebro (ou mesmo de todo o sistema nervoso), mas um tipo inteiramente
diferente de estado. A dor, ou o estado de estar com dores, é um estado
funcional de todo o organismo.
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