sexta-feira, 12 de julho de 2019

Jo Cameron - A mulher que não sente a dor



Há pouco tempo foi noticiado o caso de Jo Cameron, uma escocesa, já com 71 anos de idade, que não sentia qualquer tipo de dor. É curioso que também não sabe o que é ter medo, ou ansiedade. Casos como este são extremamente raros.

Trouxe este caso não para falar dos seus aspetos clínicos, mas para abordar a questão do contributo da fenomenologia da senciência para o conhecimento de determinado tipo de realidade que dificilmente seria conhecida pela ciência se não fosse sentida da forma como é sentida. Por conseguinte, o que define o que é a dor enquanto entidade ontológica, não é o seu processo fisiológico, mas a sua superveniência sintomática.

Imaginemos que os neurocientistas, depois lhe examinarem o cérebro com o último grito da tecnologia, registavam os sinais neurológicos que classicamente se correlacionam com a dor, e diziam a Jo Cameron que afinal ela sentia dor, mas não a verbalizava. Ora, seria inapropriado os neurocientistas dizerem que ela tinha dores, alegando que não se encontrava nenhuma anomalia ao nível da sua fisiologia neurológica. Mas na realidade Jo Cameron desconhece a fenomenologia daquilo a que as outras pessoas chamam dor.

O que confere ontologia ao fenómeno ‘dor’ é ser sentida como tal quando a referimos nos termos da nossa linguagem coloquial, e não a presença de um estado cerebral com a qual se possa correlacionar. Apesar de as sensações, ou imagens mentais internas, serem propriedades mentais categorizadas de uma maneira diferente dos processos físicos e fisiológicas com os quais se correlacionam, não implica que tenhamos de nos comprometer com o dualismo clássico. Não faria sentido dizer que quando falamos das nossas dores estamos a falar acerca de processos que ocorrem nos nossos cérebros. As afirmações acerca de sensações e imagens mentais não são redutíveis a afirmações acerca de processos cerebrais. As operações exigidas para verificar afirmações acerca da consciência e afirmações acerca de processos cerebrais são fundamentalmente diferentes.

No campo da fenomenologia em ‘primeira pessoa’, há evidentemente uma independência lógica de expressões, e uma menos clara independência ontológica de entidades. Os termos ‘mente’ e ‘cérebro’ são claramente termos com significados diferentes. Mas o fenómeno mental, em bom rigor, não deve ser separado do cérebro, na medida em que sem cérebro não pode haver mente. Mas há diferenças na forma de abordar o cérebro para explicar um determinado fenómeno mental e o conhecimento do mesmo fenómeno mental por parte da pessoa que o sente ou conhece. Isto implica para o mesmo acontecimento dois conjuntos de observações. As operações exigidas para verificar afirmações acerca da consciência, e as afirmações acerca dos processos cerebrais observados pelos neurocientistas.

As afirmações acerca de dores e sobre a sua aparência, o seu caráter, o seu local, a sua intensidade são afirmações que se referem a eventos e processos que são em certo sentido privados ou internos ao indivíduo de quem são predicados. A questão que alguns filósofos levantam é que pensar-se assim não se evita o dualismo. Mas a aceitação da fenomenologia na primeira pessoa, e ao mesmo tempo dizer que a consciência é um processo que ocorre no cérebro, não implica dualismo. 

Reconhecemos as coisas no nosso ambiente pela sua aparência (som, cheiro, sabor, textura), e podemos descrever por palavras as suas propriedades fenoménicas. Mas aqui há um aspeto importante a esclarecer: a aprendizagem do seu reconhecimento fenomenológico é precedida pela aprendizagem das suas descrições. Na verdade, é só depois de termos aprendido a descrever as coisas no nosso ambiente que podemos aprender a descrever a consciência que temos delas. Não descrevemos a nossa experiência consciente em termos de propriedades fenoménicas. A dor não é um estado cerebral, no sentido de um estado físico-químico do cérebro (ou mesmo de todo o sistema nervoso), mas um tipo inteiramente diferente de estado. A dor, ou o estado de estar com dores, é um estado funcional de todo o organismo.

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