terça-feira, 23 de julho de 2019

Ora, as coisas podem sempre piorar



Nicholas Humphrey, Professor do Centro de Filosofia das Ciências Sociais e Naturais da London School of Economics, diz que o melhor ainda está para vir. Isto era ele a dizer em 2007:
“Se eu tivesse vivido no ano 1007 e me perguntassem aquilo que eu ambicionava para os meus descendentes no milénio seguinte, poderia ter imaginado muitas possibilidades maravilhosas, mas não teria imaginado sequer uma única coisa das que aconteceram. Porque não poderia. Não vou cometer esse erro, de me querer fazer passar por uma pessoa de1007 quando sou uma pessoa de 2007. Por isso, deixem-me dizer desde já que em 2007 desejo e espero que o melhor ainda esteja para vir. Que as maiores obras de arte, que o mundo já viu, sejam criadas por seres humanos não muito distantes de nós. Obras de uma força estética e moral ainda inimagináveis. E, lembremo-nos, não será necessário a modificação genética, a hibridização informática, os melhoramentos tecnológicos dos cérebros ou outra coisa qualquer. Basta que continuemos a ser quem somos”.
As máquinas acabarão por desaparecer, e, sobretudo, os computadores digitais hão de acabar por desaparecer. A crescente interação dos seres terrestres em comunicação através da telepatia fará surgir uma mente de Gaia verdadeira e sábia. E então tomaremos consciência de outras mentes mais elevadas no nosso cosmos. Isto é Rudy Rucker a sonhar, um matemático e cientista dos computadores. Pioneiro de ciberpunk, romancista e autor de “Matematicians in Love”.

Ora, as coisas podem sempre piorar. Que aconteceria se abandonássemos uma das idealizações das leis da física ainda em vigor, as leis filiadas no platonismo?

Físicos que trabalham em testes e aplicações da mecânica quântica têm algumas reservas: “as leis da natureza, que descobrimos, não são “coisas” que existam já prontas a serem descobertas fora das nossas cabeças. É claro que ao metermo-nos por este caminho de questionar as “coisas” estamos a meter-nos na pura metafísica. E a maioria dos físicos não têm tempo para se preocuparem com questões filosóficas. Limitam-se a sistematizar as regularidades que encontram na natureza, que não têm de ser necessariamente verdades transcendentes e imutáveis.

Faz parte da nossa linguagem chamar ao que acontece: “coisas”. As coisas que estão a acontecer não são coisas como pedras ou como árvores. Os incêndios na floresta, por exemplo, são coisas que acontecem e que apoquentam muita gente. É empregue num sentido muito mais lato do que quando começamos a enumerar em sentido restrito. Neste sentido significa o que está ao alcance da vista, ao alcance da mão. Ao passo que em sentido lato significa qualquer assunto, qualquer coisa que aconteça. Acontecimentos, eventos, o que se passa no mundo. Kant debruçou-se sobre esta questão, ou que é que em que ele não se debruçou? Assim, distinguiu a “coisa em si” da “coisa para nós”, sendo esta, evidentemente, o fenómeno, a aparência, o que nos afeta. Portanto, “as coisas para nós” seriam as coisas através da experiência, como pedras, árvores ou animais. Ao passo que “a coisa em si” era algo que não nos afetava, ou que não nos era acessível.

Mas Kant hesitou, ao dizer se o número, por exemplo o número cinco, era uma coisa. Pelo menos, de certeza, não podia ser uma coisa em sentido restrito, porque não se podia ver, agarrar ou ouvir. E à medida que Kant ia descascando esta cebola, topou que não podia escapar à questão do espaço e do tempo onde pairavam as coisas em sentido restrito. Pois não há outra maneira de dizer quando as coisas estão no espaço e no tempo. Não há como ter outra impressão se não que espaço e tempo são exterior à “coisa”. Mas onde e como este domínio de acolhimento das coisas existe propriamente, e o que é uma “coisa”, afinal, continua em disputa a melhor resposta. O que se pode dizer sem ser rejeitado é que a “coisa” é uma propriedade resultante da nossa relação com o mundo através da experiência. E a experiência é uma coisa natural. E o que é natural não deixa de ser compreendido por si mesmo.

A “verdade” de tudo isto que se disse da “coisa” apenas tem lugar ao nível da “proposição”, ou do enunciado para tradições filosóficas do quadrante kantiano. Mas quanto a tradições filosóficas podemos recuar mais ao tempo de Platão e Aristóteles para dizer que já nessa altura a coisa era o suporte de propriedades. Já nesse tempo se havia chegado à essência da proposição. E a “verdade” era a conformidade entre a nossa perceção e as coisas. Mas tais ideias evoluíram já no tempo dos Estoicos, e continuaram a modificar-se pela escolástica medieval dentro, até aparecerem as ideias que acabamos de perscrutar, as de Kant, nos tempos do idealismo alemão. Mas foram Platão e Aristóteles que pré-indicaram o caminho que ainda hoje percorremos.

Hoje, a maior parte dos cientistas da Inteligência Artificial, digamos aqueles cuja formação é da física e das ciências da computação, pensam no universo como um computador finito. Mas quem pensa assim mostra que as leis da física são leis idealizadas, e por conseguinte, uma ficção. As leis platónicas podem ser tratadas como aproximações úteis, mas não são a “realidade”. A sua precisão infinita é uma idealização, que, regra geral, é inofensiva, mas nem sempre. Por vezes essa idealização irá induzir-nos em erro, especialmente quando começamos a discutir se a consciência já estaria presente no início do universo.

Assim, podemos dizer que a matemática e a física, bem como a natureza, emergiram como uma única “coisa”. Um elo perfeito entre reinos que nós separamos para conveniência compreensiva: entidades e relações matemáticas que são o cúmulo da perfeição; e o mundo do espaço e do tempo, bem como dos objetos físicos, já não tão perfeitos. Ora, é uma impossibilidade juntar perfeição com imperfeição. Das duas uma: ou a matemática afinal não é assim tão perfeita, como disse Platão, sobretudo nos primeiros momentos a seguir ao big bang, e então já não haveria nenhum conflito com a emergência da vida e da mente; Ou então esqueçamos, e joguemos uma partidinha de qualquer jogo, não precisa ser gamão como aprazia David Hume, porque as leis físicas continuarão a ser um mistério. Se se rejeitar o platonismo, então temos de aceitar que a mente humana labora por sua conta e risco, girando numa permanente pescadinha de rabo na boca: o universo teria de ser tal como é para que existisse seres inteligentes como nós; e o universo é tal como nós dizemos, porque somos seres inteligentes. Esse é um imperativo cósmico, para que se possa explicar a emergência da vida e da mente.

É o princípio teleológico a funcionar. As leis básicas da física, mais as condições iniciais, já fixam aquilo que os sistemas físicos fazem, e que pura e simplesmente já não há espaço para que um princípio teleológico adicional possa operar. A teleologia é, por definição, uma forma de antecipar um estado futuro qualquer (neste caso a vida) e causar a emergência desse estado no seu devido tempo. Mas este princípio teleológico é contrário ao conceito standard de causalidade na ciência, ainda que haja alguns teóricos que digam que a mecânica quântica pode permitir uma fora subtil de teleologia. Como se tivesse havido um projeto, um desenho feito na forja, milhares de milhões de anos antes de a vida surgir num planeta azul insignificante na periferia de uma galáxia? Como é isso possível, o universo ter sido constrangido, desde logo à partida, a acomodar-se de forma a evoluir em direção à vida e à mente? Ou então é possível que haja mais vida para além do planeta Terra sem o nosso conhecimento. E sem o nosso conhecimento tudo é possível.

Seja como for, enquanto se mantiver em vigor o princípio monocausal da ciência, cuja matriz tradicional remonta a Descartes, esta teleologia dirigida para um fim certo é considerada anticientífica. Esta ideia deixa os cientistas nervosos, porque é uma forma indireta de fazer entrar novamente Deus pela porta traseira. Por isso devíamos libertar-nos desta armadilha monocausal. Ao tentarmos perceber os processos biológicos em geral, e em particular os processos cerebrais e a forma como controlam o trabalho mental, faria mais sentido a multicausalidade como princípio orientador. Por exemplo, não faz muito sentido explicar o comportamento humano apenas segundo a base genética. É a combinação de informação genética e ambiental que dá forma ao comportamento animal, e por maioria de razão ao comportamento humano.

Termino como comecei: “as coisas podem sempre piorar”.

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