segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A biosfera


A biosfera em evolução está a fazer algo que não somos capazes de antecipar. Faltam-nos as categorias. O mesmo se aplica à evolução tecnológica. 
O atual paradigma da nossa ciência confronta-se com uma limitação do conhecimento que não tinha reconhecido antes.

As leis fundamentais da física são simétricas em relação ao tempo, isto é, não lida com a seta do tempo do passado para o futuro. Mas sempre sentimos o tempo andar de trás para frente. e não da frente para trás. Até Darwin disse que há uma evolução na biosfera em função do tempo. Nesta evolução há uma seta do tempo implícita, entre passado e futuro. Mas no tempo de Darwin não tinha diretamente a ver com a segunda lei da termodinâmica. Foi a variação por seleção natural ao longo do tempo que fez com que uma alga, ou uma bactéria, tivesse chegado a um homo sapiens. A ideia de Darwin era que parte de um organismo que não tinha nenhum significado seletivo num ambiente normal, podia ter alguma utilidade num ambiente estranho, e então era selecionado. É assim que surgem todas as adaptações principais, e eventualmente a maior parte das adaptações menores. Foi assim que surgiu o olho, ou o ouvido, ou as asas, o que se quiser mencionar.

Faltam-nos conceitos prévios para determinar quais poderão ser todas as preadaptações possíveis; nem podemos determinar quais poderão ser todos os ambientes possíveis. No entanto esta imprevisibilidade não é nada que possa atrapalhar a evolução. As preadaptações darwinianas ocorrem a toda a hora. A biosfera parece, pois, estar a fazer algo que não somos capazes de antever. Não por causa do indeterminismo quântico, ou do comportamento dinâmico caótico, mas porque nos faltam os conceitos prévios. Em linguagem técnica, isso significa que o espaço das possibilidades relevantes da biosfera – o seu espaço de fase – não pode ser pré-determinado. É a criatividade da biosfera que atua de uma forma que está vedada à nossa perceção. Na esfera física, em geral, é possível pré-determinar o conjunto de todas as possibilidades, isto é, o espaço de fase. Mas na biosfera, pelo menos até agora, não fomos capazes de o determinar.

À pergunta "o que é a vida?" – a resposta é que não sabemos dizer. Conhecemos algumas peças soltas da maquinaria molecular, algumas partes dos circuitos metabólicos, os circuitos das redes genéticas, os meios da biossíntese das membranas, mas escapa-nos aquilo que faz de uma célula independente, como uma bactéria, ser um ser vivo. O essencial permanece misterioso. O tema da vida entronca num programa mais vasto que tem a ver com o caos e a teoria da complexidade. A pergunta que se deve fazer é: “o que é um agente autónomo?” Os organismos são ao mesmo tempo agentes autónomos e sistemas físicos, capazes de se autorreproduzir e capaz de realizar, pelo menos, um ciclo termodinâmico de trabalho.

A primeira questão consiste em examinar mais detalhadamente o conceito de “trabalho”. Para um físico, o trabalho é simplesmente a força que atua ao longo de uma distância. Mas em qualquer caso particular de trabalho, a força é aplicada de forma “organizada”, de modo a alcançar trabalho. O trabalho é uma “coisa” – a saber: a libertação condicionada de energia. Parece ser necessário trabalho para gerar restrições. E necessárias restrições para realizar trabalho. A célula realiza trabalho termodinâmico para construir moléculas lipídicas a partir de ácidos gordos e de outros blocos elementares. Os lípidos podem depois formar uma estrutura de baixa energia – uma camada bilipídica que constitui uma “bolha” oca designada lipossoma. De facto, as membranas celulares não são mais do que uma camada bilipídica que forma uma bola fechada. A própria membrana pode agora ser usada pela célula para alterar as restrições.

A célula realiza trabalho que faz a ponte entre a libertação organizada de energia num certo ponto e a construção de restrições e a libertação organizada de energia noutros pontos, culminando no terminar do processo, através do qual a célula constrói uma cópia aproximada de si própria. Esta organização de processos é levada a cabo por qualquer célula em divisão e, no entanto, é impressionante que não disponhamos de qualquer linguagem – refiro-me a linguagem matemática – capaz de descrever o terminar do processo que se propaga à medida que uma célula gera duas, quatro células, uma colónia e, no limite, uma biosfera. Esta organização dos processos que se auto-propagam está contida no conceito de agente autónomo. A biosfera cria padrões interligados em propagação de trabalho organizado. Uma floresta tropical, que nasceu sem a necessidade de qualquer gestor central organizador, é uma autocriação em crescimento rápido de processos interligados. A biosfera é capaz de realizar algo que não pode ser predeterminado. A biosfera poderá alterar, de forma persistente, o seu “espaço de fase”.

Pouco antes de morrer, em novembro de 1954 com 53 anos, Enrico Fermi – físico italiano naturalizado americano, que se destacou pelo seu trabalho sobre o desenvolvimento do primeiro reator nuclear, a primeira reação em cadeia autossustentada – foi a Los Alamos para ver se conseguia fazer um teste ao novo MANIAC, o primeiro supercomputador do mundo. Fermi parecia uma criança com um brinquedo ao qual não era capaz de resistir. Fermi pediu à máquina para simular os milhares de vibrações de uma cadeia elástica constituída por 32 partículas. Fermi já sabia que as ligações reais se comportam de forma não-linear, quando as vibrações tomam grandes amplitudes, e que ninguém sabia o que acontecia nesse caso. Ninguém sabia resolver as equações de um sistema não-linear com tantas partículas. O que eles esperavam era que o sistema degenerasse num estado de aleatoriedade. Essa era a previsão da termodinâmica. Mas o computador disse que não. Fermi ficou deliciado com este fenómeno. Infelizmente faleceu antes de ver publicados os resultados. A não-linearidade podia ser uma fonte surpreendente de ordem dando o caos. Por essa altura a física girava em volta da eletrodinâmica quântica.

Fermi era um especialista em mecânica estatística e sabia muito bem que esta funcionava na perfeição para sistemas em equilíbrio termodinâmico. Mas os fenómenos de não-equilíbrio, como era o caso dos sistemas vivosconstituíam um caso à parte. Só perto da viragem do milénio é que se fizeram avanços notáveis na esfera do caos e da não-linearidade. A sincronização de redes imensas de osciladores biológicos era manifestamente reminiscente de uma transição de fase: as redes neuronais artificiais de John Hopfield; o modelo das redes genéticas de Stuart Kauffman; ou as pilhas de areia auto-organizadas de Per Bak – foram todos elucidados pela fusão da mecânica estatística com a dinâmica não-linear. O caos significa que um sistema governado por regras deterministas pode, ainda assim, comportar-se de modo aleatório e aparentemente imprevisível. O caos apareceu em toda a parte, nas três últimas décadas do século XX: desde as flutuações de população em ecossistemas; nas arritmias cardíacas; e até no pingar irregular de uma torneira. Os modelos destas situações simuladas em computador são claramente especulativos, mas oferecem pistas intrigantes, como é o caso do impacto das simulações na evolução darwiniana sobre a seleção natural.

biosfera da Terra está completamente condicionada pelas condições iniciais de há 3,5 mil milhões de anos na Terra. Assim, no tema da vida, a primeira barreira a vencer consiste em caracterizar a conectividade das redes complexas que então se formaram 2,5 mil milhões de anos após a explosão que deu origem ao sistema solar. É essencial vencer essa barreira, se queremos chegar algum dia a perceber como é que o cérebro calcula, ou por que razão as células se tornam cancerosas. Estamos a lidar com milhões de variáveis em interação. 

Poincaré mostrou que não são necessárias fórmulas algébricas. Desenhando os diagramas certos, é possível perceber muitas das características-chave de um sistema não-linear. Ainda assim, somos incapazes de ver como é que as soluções se comportam no “espaço de estados” definido por Poincaré. Em particular, somos incapazes de visualizar os atractores – o núcleo da dinâmica de longo prazo – porque o espaço de estados tem dimensão infinita. Não percebemos o comportamento estatístico a longo prazo dos sistemas complexos, porque eles se encontram longe do equilíbrio. E como também não somos capazes de visualizar os atractores, não sabemos o que fazer. A consequência simples de tudo isto é que, para se conhecer a função dos órgãos de um organismo, temos não só de conhecer o organismo inteiro, mas também a sua integração no seu ecossistema. Existe algo de inalienável de sentido holístico nos agentes autónomos.

Hoje, a ciência já domina com grande desenvoltura o problema da inteligência do nosso cérebro, depois de ter criado os computadores, e agora a inteligência artificial. Mas ainda domina mal um problema ainda mais geral da vida que é o do desenvolvimento morfológico: a forma tão diversa, e tão sui generis, que as espécies de animais tomam conforme os sítios onde vivem. Como é que as instruções do ADN são capazes de transformar algo tão simples quanto um óvulo fertilizado em algo tão maravilhosamente complexo quanto um recém-nascido. Ao fim e ao cabo o genoma sozinho não chega para construir um ser vivo. É preciso toda uma cascata de acontecimentos de uma complexidade astronómica. Ocasionalmente os demónios são libertados, o ambiente é diferente daquele que o gene estava à espera, e o sistema desalinha-se.

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