quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Neurogénese: o cérebro não é de mármore



Depois de James Watson e Francis Crick, e quase um século depois de Darwin, o cérebro era uma máquina governada geneticamente. Estava a despontar a era dos computadores e da robótica. E a comunidade científica mantinha o dogma de que depois de nascermos o nosso cérebro não produzia novos neurónios. Esta teoria sustentava que as células do cérebro – ao contrário de todas as outras células do nosso corpo – não se dividiam. E este princípio era fundamental no campo da neurologia. Até ao início dos anos de 1980, esta tese era teórica, ninguém havia realizado até aí nenhum estudo sério. Foi então que Pasko Rakic, da Universidade de Yale, meteu mãos à obra, em doze macacos rhesus, e concluiu no fim: “todos os neurónios do cérebro do macaco são produzidos durante a vida pré-Natal”. Mais uma vez as experiências de Rakic não foram verificadas por outras entidades independentes, tal era o prestígio deste investigador. Mas em ciência nunca há nada definitivo. É essa a sua maior virtude. E foi isso o que aconteceu com a teoria do cérebro fixo de Rakic, acabou por ser demonstrado que estava enganado.

Em 1989, Elisabeth Gould, da Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, num estudo da morte de células do hipocampo, provocadas pela síndrome de stress pós-traumático, verificou que o cérebro se regenerava a si mesmo. E a surpresa ainda foi maior quanto Gould, depois de uma exaustiva revisão bibliográfica, se deparou com um trabalho de Joseph Altman, do MIT, de 1962, que já havia demonstrado em ratos adultos e gatos a formação de novos neurónios. Mas, como muitas vezes acontece em ciência quando há dogmas, os resultados foram ridicularizados, e depois ignorados. Esta é a outra face da medalha da ciência, menos virtuosa. 



Resultado de imagem para Elizabeth Gould brain

Elisabeth Gould  (foto de Denise Applewhite)

Foi necessária mais uma década para que Michael Kaplan, da Universidade do Novo México, usasse um microscópio eletrónico para imaginar neurónios a gerar novos neurónios. Entretanto Elisabeth Gould descobriu outro trabalho, este em pássaros, de autoria de Fernando Nottebhom. O cérebro dos pássaros mostrou que a neurogénese era necessária para que os pássaros cantassem. Nottebhom estudou os pássaros no seu habitat natural. Numa gaiola isso dificilmente aconteceria. Nos tentilhões e nos canários, a neurogénese, tinha um propósito evolutivo real. Mais uma vez estes resultados foram marginalizados. Uma contradição a um dogma científico leva tempo, e encarniçamento, até que seja admitido como um facto científico pela ciência dita “normal”. Foi essa a principal mensagem de Thomas Kuhn no seu Structure of Scientific Revolutions. 

Foi o encarniçamento de Elisabeth Gould que a levou a ir por um outro caminho diferente, a fim de investigar a neurogénese. Foi um trabalho muito cansativo, mas no fim revelou-se compensador. Os dados de Gould alteraram o paradigma. Tinham passado mais de trinta anos desde que Altman vislumbrara pela primeira vez novos neurónios. A neurogénese passou então a serfinalmente, um facto científico, e a fazer parte da ciência dita "normal". Não é fácil ver novos neurónios radiativos, sobretudo quando não se espera ver. É preciso procura-los para os ver. Acresce que primatas de laboratório têm tudo para reprimir a neurogénese. Uma jaula monótona cria um cérebro monótono. A constatação de que as condições típicas de um laboratório são debilitantes para animais, e dão origem a dados falsos, foi uma das descobertas casuais no campo da neurogénese. Gould continuou as suas pesquisas, agora para mostrar que a dimensão da neurogénese é, em si, coordenada pela envolvente externa, e não apenas pelos genes. 


Já que nós éramos apenas esculturas elaboradas de proteínas, os biólogos presumiram que éramos a soma do nosso ADN. Somos máquinas de sobrevivência, mas para os genes, como declarou Richard Dawkins, em The Selfish Gene ( O Gene Egoísta), o seu primeiro livro publicado em 1976, em que ele apresenta uma teoria que procura explicar a evolução das espécies na perspectiva do gene e não do organismo, ou da espécie. Para Dawkins, nós somos veículos, programados cegamente, para preservar as moléculas egoístas conhecidas por genes. 

O Projeto do Genoma Humano (PGH), foi iniciado em 1990 com grande otimismo. Mas a natureza escreve direito por linhas tortas. O primeiro facto alarmante que o PGH pôs a descoberto foi a vertiginosa dimensão do nosso genoma. Tínhamos mais ADN do que o necessário para codificar as 100.000 proteínas diferentes do nosso corpo. Mais de 95% do genoma humano é constituído por aquilo a que os cientistas chamam intrões. Quando o PGH ficou concluído em abril de 2003, a biologia já não conseguia sequer definir o que era um gene. A adorável simplicidade de Dawkins caía por terra sob as complicações da nossa realidade genética devido aos efeitos epigenéticos. O código genético exigia contexto. Apesar de sermos tão diferentes de um chimpanzé, partilhamos com ele  98,7% do nosso genoma; e 42% com um insecto. Os biólogos foram forçados a concentrar a sua biologia molecular no modo como os nossos genes interagem com o mundo real.

Se o nosso cérebro fosse apenas programado geneticamente, então teríamos um problema, porque o cérebro do rato contém aproximadamente o mesmo número de genes que o cérebro humano. Concluiu-se que há pouca correlação entre o tamanho do genoma e a complexidade do cérebro. Paradoxalmente, há muitas espécies marinhas que têm genomas muito maiores do que o genoma humano. Apesar de os genes serem responsáveis pela arquitetura do cérebro, os neurónios são bem moldáveis para se adaptarem às experiências vividas pelo indivíduo. O sistema nervoso é praticamente idêntico ao sistema imunitário, que tem de adaptar constantemente a vida às variações do meio externo. A mente e a imunidade são distinguidas pela sua maleabilidade. Por exemplo, supunha-se que o QI era basicamente estável ao longo da vida. Mas estudos realizados em crianças adotadas, verificou-se que crianças que à partida tinham um QI baixo, pouco tempo depois de se integrarem em famílias da classe média alta, os seus QI's subiram num período relativamente curto. Portanto, até caracterísitcas mentais com um forte vínculo genético, são incrivelmente sensíveis à mudança, em determinados contextos do meio ambiente.

Sem comentários:

Enviar um comentário