terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Não acreditar numa divindade em pessoa: Borges e Espinosa




Como a Ética de Espinosa nos remete continuamente para proposições e axiomas, Jorge Luís Borges dedicou-lhe dois poemas, para lhe retirar os andaimes, o aparato geométrico, como Borges chamou aos axiomas e definições. Borges gosta mais de Espinosa, do que de Descartes, apesar de este ter sido uma espécie de mestre de Espinosa. Espinosa com a fórmula: “Deus-ou-Natureza”, chega a essa conclusão sem exigir de nós uma mitologia, uma ficção. Podemos aceitar a equivalência, ainda que lhe possamos chamar panteísta: "Todas as coisas estão cheias de divindade". Por ter sido excomungado, alguns afirmam que, por isso, Espinosa só poderia ser ateu. Ele era um judeu nascido em Amesterdão em 1632, mas descendente de judeus portugueses que haviam emigrado para Amesterdão, inquietados com a intolerância da Igreja Católica em relação aos judeus, e da implacável Inquisição. A Inquisição havia sido fundada em Portugal em 1536. Por conseguinte, não podia ser cristão. Como foi excomungado pela sinagoga de Amesterdão, logo, não lhe restaria outra coisa senão ser ateu. Mas Borges diz que isso não é bem assim:“Liberto da metáfora e do mito / lavra um árduo cristal: o infinito / Mapa do que é: suas estrelas." Espinosa polia lentes e, ao mesmo tempo, polia esse labirinto cristalino da sua filosofia. 


Baruch Spinoza, 1665. Pintura de autor desconhecido.

Para Espinosa, a substância não possui causa fora de si, ela é causa de si mesma, ou seja, causa sui. Ela é singular, a ponto de não poder ser concebida por outra coisa que não ela mesma. Por ser causa de si, a substância é totalmente independente, livre de qualquer outra coisa, pois sua existência basta-se em si mesma. Ou seja, a substância, para que o entendimento possa formar o seu conceito, não precisa do conceito de outra coisa. A substância é absolutamente infinita, pois se não o fosse, precisaria ser limitada por outra substância da mesma natureza.

Pela proposição VI da Parte I daÉtica, Espinosa afirma: "Uma substância não pode ser produzida por outra substância". Portanto, não existe nada que limite a substância, sendo ela, então, infinita. Da mesma forma, a substância é indivisível, pois, de contrário, ao ser dividida: ou conservaria a natureza da substância primeira; ou não. Se conservasse, então uma substância formaria outra, o que é impossível de acordo com a proposição VI; se não conservasse, então a substância primeira perderia sua natureza, logo, deixaria de existir, o que é impossível pela proposição 7, a saber: "à natureza de uma substância, pertence o existir". Sendo da sua natureza - a substância não poder ser dividida - ela é única e infinita. Chamemos-lhe Deus ou Natureza, a substância é indivisível e infinita.

Apesar de Espinosa chamar à substância Deus-ou-Natureza, é um Deus radicalmente diferente do Deus judaico-cristão, pois Deus-ou-Natureza não tem vontade nem finalidade. A substância não pode ser um Ser sem existir. Se pudesse Ser sem existir, haveria uma divisão, e a substância seria limitada por outra substância, o que, para Espinosa, é absurdo.
Em nós há propósitos, e há ética e estética, mas no Universo não faz sentido um Ser individual com um propósito. Consequentemente, o Deus de Espinoza não pode ser um alvo de preces. De resto, é melhor não pedir nada. Porque, mesmo pedido justiça, é já pedir muito, é pedir demasiado. Basta dar uma vista de olhos, para sabermos que no Universo não reina a justiça. 

Borges, em relação à Verdade e à Ética, é kantiano, é categórico. Aceita que a Verdade é só uma; e a consequência é múltipla. Por isso recusa-se a que a Ética tenha um vínculo de dependência da consequência. Tudo isso nos é totalmente, ou completamente, inacessível. Por isso é mais seguro não lhe chamar Deus - diz Borges -  porque se lhe chamamos Deus já estamos a individualizar. E a individualidade é incompatível com a divindade, com o transcendente, que ele admite que existe. Agora, a Trindade, como diz a doutrina, essa acha-a inconcebível. 


A consequência do ato de Colombo achar que devia chegar à Índia pelo lado oeste da Península Ibérica, foi uma coisa boa ou uma coisa má? Depende! Porque as consequências foram tantas que nós perdemos no emaranhado consequencialista. Portanto, julgar um ato pela sua consequência, Borges acha que é absurdo, logo, imoral. Pensar numa perspetiva consequencialista é pensar no imediato, como se o futuro não existisse. Pensar apenas no que é melhor para nós no curto prazo, até pode ser bom para nós, algo que nos é vantajoso, mas desastroso para as futuras gerações. Essa forma de pensar, apenas nas consequências de curto prazo, encerra uma ética imoral.

Falar de realidade quotidiana pode ser perigoso, porque não sabemos se o Universo pertence ao género realista ou idealista. O amor no humano é inevitável, o que não significa que teria que ser necessário. Pode ser apenas uma contingência. Acaso? Necessidade? Eis a questão!

O nosso passado é a nossa memória, não interessa se é verdadeira ou falsa. Invoca aquela memória que nos acontece de repente, como quando inspiramos um dado cheiro, ou um dado trecho musical, e todo um passado já vivido se ilumina de novo, sem que a nossa vontade intervenha nisso, como uma coisa vinda do nada. 


O outro mundo é uma bela invenção humana. A maior parte das pessoas que acredita na existência de algum tipo de Deus também acredita numa vida após a morte. Para aqueles que acreditam numa vida após a morte, a morte não é o fim de tudo. É poética, a noção de outro mundo para além deste mundo. No que o poeta escreve há sempre algo que parece remeter-nos a um mais além. Mas seja como for, a linguagem é muito pobre comparada com a complexidade das coisas. E então comparada com a nossa consciência nem vale a pena falar. É absurdo supor que todos os matizes da consciência humana possam caber num "sistema mecânico de grunhidos". 

O medo da morte é muito comum. E a crença em Deus, e numa vida após a morte, pode ser um consolo para aqueles cujas vidas são desagradáveis ou penosas. Contudo, a crença numa vida após a morte não passa de um wishful thinking - a expressão em língua inglesa para designar aquilo que podíamos chamar "falácia da esperança" - acreditar numa coisa só porque se deseja que seja verdadeira.

Bom, para este medo, não há como uma vida bem examinada. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões que tem sido o trabalho persistente de filósofos como um Espinosa ou um Epicuro. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz com que algumas ações sejam moralmente boas e outras moralmente más? O que é a arte? e assim por diante.
Mas será que o Deus descrito pelos teístas existe de facto? Poderemos demonstrar que esse Deus existe? Ao longo da história da filosofia, paredes meias com a teologia, muitos argumentos foram tecidos para demonstrar a existência de Deus. Não vou entrar agora nesse caminho. Vou antes apelar a Epicuro para serenar os ânimos: mesmo que a morte seja o fim de tudo não temos nada a recear. É mil vezes preferível à imortalidade. O medo da morte surge ao imaginarmos erradamente que estaremos cá depois de morrermos para lamentar a nossa própria perda. Porque se pensarmos melhor, verificamos que, enquanto vivos, não nos preocupamos com a eternidade da nossa não-existência antes de termos nascido. Porque haveríamos, pois, de nos preocuparmos minimamente com a nossa não-existência depois de morrermos? Logo, o receio da morte é irracional. O que não deixa de ser racional é o medo pelo que vamos ter de passar no processo que conduz à morte, e o sofrimento que geralmente o acompanha. Mas conhecemos casos de pessoas que, já em provecta idade, se deitam à noite para dormir, bem dispostos, mas já não acordam no dia seguinte. Caso não morrêssemos, as nossas vidas deixariam de ter o valor que têm.

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