sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A ciência da subtileza


Hoje podemos colocar-nos num aparelho de Imagem de Ressonância Magnética Nuclear, ou colocar um capacete com mais de 250 sondas de eletroencefalografia para tentar captar os nossos estados mentais através das zonas ativas. E já começam a aparecer sistemas de imagiologia cerebral mais leves, portáteis e discretos. Mas a realidade ainda está longe de satisfazer os nossos anseios de conhecer a nossa mente pelos métodos científicos tradicionais. As questões sobre aquilo que significa ser inteligente, e aquilo que significa ter uma boa educação, não estão no centro da atual investigação científica. A inteligência artificial ocupa hoje as prioridades da ciência de topo, a tempo inteiro.

Há uma outra tecnologia-chave na validação das complexidades da consciência humana baseada na cartografia dos padrões de expressão dos genes. Cada célula do cérebro te um conjunto completo de genes, mas apenas alguns deles se exprimem num dado momento. Esta expressão traduz-se pela transcrição em ARN e seguidamente em proteínas. Além disso, áreas diferentes do cérebro apresentam padrões diferentes de expressão dos genes, e estes padrões mudam com o tempo, não apenas através do desenvolvimento desde o embrião até ao adulto, mas também através das situações que ocorrem dia após dia, mês após mês. Assim, o mapa de expressão dos nossos genes no cérebro altera-se conforme as situações por que passamos e vivemos: seja aquando do nascimento de um filho, ou numa tese de doutoramento, ou no funeral de um familiar ou amigo. Quase todo o estado mental que dure mais do que umas poucas horas pode implicar mudanças na expressão dos genes. 


Hoje é possível dar conta de efeitos genéticos no comportamento das pessoas através do acesso ao genoma da pessoa. São diversas as combinações genéticas. Agora, desde o mapeamento do genoma humano, deu-se um salto colossal na aplicação da genética, quer na medicina curativa, quer na medicina forense, e até na paleoantropologia. É o caso de Ötzitambém conhecido como “The Iceman”, ou “L’Homme des glaces” encontrado nos Alpes orientais em 1991, na fronteira entre a Áustria e a Itália. Uma múmia de um homem que por acidente ficou congelado há 5.300 anos. As 57 tatuagens dispersas por várias partes do corpo, mas sobretudo na região dorsal, não deixa de ser um pormenor assinalável. Entre as múltiplas curiosidades deste corpo humano, a múmia mais antiga alguma vez encontrada, para além da historiografia das migrações dos povos da Europa na Idade do Cobre, é o manancial de estudos genéticos de grande importância que podem ser realizados. Pode-se especular como afinal as tatuagens e os piercing, uma fantasia muito em voga nos tempos que correm, acompanham os humanos desde tempos muito antigos. 


Mas há aqui uma advertência: não está tudo nos genes. A variação genética é capaz de explicar apenas cerca de metade da variação da personalidade de um indivíduo para outro. Finalmente, os desenvolvimentalistas perceberam a relação entre personalidade e contexto. Há uma disparidade entre os ambientes modernos e os ambientes que foram responsáveis pela moldagem dos genes humanos.

Os introspecionistas do século XIX ao focarem-se sobre si próprios descreviam um mundo interior muito rico, mas esqueciam-se do resto, que objetivamente era muito. Daí terem entrado em cena os behavioristas no século XX. Estes, por sua vez, ao focarem-se no comportamento externo das pessoas, para fazer o contraditório aos introspecionistas, descreveram uma natureza humana quase de pernas para o ar, porque consideravam o interior do cérebro como se fosse uma caixa negra, impenetrável. E assim, esqueceram-se de si próprios. Agora, os psicólogos dispõem de meios que permitem apresentar as assinaturas neurais e genéticas das manifestações mais efémeras e mais ambivalentes da consciência humana. Ao mesmo tempo, a ciência cognitiva ia fazendo o seu caminho, ao fomentar um diálogo profícuo entre as múltiplas disciplinas que passaram a interessar-se pela mente humana: filósofos, psicólogos, neurocientistas, antropólogos, linguistas, engenheiros informáticos especialistas em inteligência artificial, e até físicos da mecânica quântica. Deixou de fazer sentido preservar aquela ideia do sábio polifacetado tocador de vários instrumentos ao mesmo tempo. Aquela ideia de uma pessoa bem instruída que era capaz de discutir com erudição um certo número de tópicos de história, de filosofia e de literatura. O que fazia sentido agora era a multidisciplinaridade no estudo do nosso último reduto: o cérebro.

À medida que as máquinas se vão tornando cada vez mais inteligentes,; à medida que as redes digitais se tornam cada vez mais capazes de nos darem as respostas sobre aquilo que mais nos interessa;  menos interesse irão ter aqueles “sábios” alegadamente repositórios de conhecimentos enciclopédicos, porque as máquinas passaram a ser muito melhores que os humanos. A Escola, onde o professor era a pessoa que sabia  mais do que o aluno, e tanto mais quanto mais erudito fosse, passou à história, deixou de ser o "Magister dixit", a autoridade em matéria de ensino. A Escola não será mais o lugar onde se veem os alunos sentados em fila muito atentos ao professor e a memorizar o que ele diz. A Escola deixou de ser o lugar de aquisição de conhecimentos dados por respostas tidas como soberanas, para passar a ser o lugar onde se aprende a questionar. Agora o que vai importar é que o aluno aprenda a saber fazer as perguntas certas. Porque as respostas estarão acessíveis na rede e dadas instantaneamente apenas com um clique de rato ou um toque digital ou vocal na tela virtual. 


A investigação em neurociências percorreu um longo caminho no desvelo do modo como certos aspetos da mente - a perceção, a memória e as emoções - são mediados através do cérebro. Muito deste trabalho implicou estudos em organismos não humanos, particularmente em ratos e macacos. Se bem que esta abordagem seja adequada para colocar questões sobre as funções cerebrais humanas, uma vez que os humanos partilham muita coisa com outras criaturas, a verdade é que ainda fica um grande vazio na nossa compreensão dos aspetos do cérebro humano que são únicos. Daí que a investigação que passou a ser realizada em humanos com lesões cerebrais tenha ajudado a preencher certas lacunas deixadas em aberto pela investigação noutros animais. Mas os estudos em indivíduos com lesões cerebrais, revelando a forma como o cérebro reage à função perdida, deixava ainda por explicar o funcionamento do cérebro nas suas condições normais, e no ambiente natural da vida quotidiana. Um dos aspetos prende-se com a linguagem, sem a qual o pensamento humano seria muito pobre. E é uma função que não pode ser estudada diretamente em nenhuma outra espécie que não humana. Estudos de ressonância magnética funcional têm desempenhado um papel muito importante no esclarecimento da forma como funciona a memória de trabalho verbal no cérebro humano.

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