segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Para além do bem e do mal


O relativismo moral é a ideia de os valores morais terem mais um vínculo social do que serem absolutos e universais. Trata-se de uma perspetiva meta-ética acerca da natureza dos juízos morais.
Esta tem sido ultimamente a perspetiva que dá suporte ao argumento de que não devemos interferir em certas sociedades com práticas morais diferentes das nossas, uma vez que não podemos ser neutros ou imparciais, armados apenas com os nossos juízos morais. Esta perspetiva tem sido muito adotada no seio de antropólogos que passaram algum tempo convivendo com sociedades muito distantes das nossas sociedades ocidentais. A esta imposição dos nossos valores morais a essas sociedades rotuladas por nós como selvagens, é usual dar-se o nome de relativismo normativo.

Matar é sempre moralmente errado. É por isso que muita gente é contra a pena de morte, e não porque é um mandato da lista dos Dez Mandamentos. Isto é assim, mesmo perante casos como Hitler – em que, se os Aliados tivessem podido mandar executar Hitler, como se de uma pena de morte se tratasse, ao abrigo do Tribunal Penal Internacional e dos Direitos do Homem, por ter cometido crimes contra a Humanidade, significaria salvar a vida de milhões de pessoas. Isto para muita gente também é um facto, se Hitler não tivesse chegado onde chegou, ou se nunca tivesse nascido, não teria havido o Holocausto – onde vários milhões de pessoas inocentes foram exterminadas de uma forma organizada e sistemática. 


Incorre-se numa falácia quando se argumenta que, se Deus não existisse tudo seria permitido, inclusivamente matar o próximo. Dostoievsky foi uma dessas pessoas a afirmar isso. No entanto, há pelo menos três objeções principais a qualquer teoria ética baseada unicamente na vontade de Deus. Em primeiro lugar não é indiscutível a existência de Deus. Pelo menos, se nos colocarmos na posição mais cómoda, a do agnóstico, que ao mesmo tempo parece ser a mais sensata: "pode ser que exista, mas também pode ser que não exista, não sabemos nem nunca chegaremos a saber". Em segundo lugar, ainda que possa ser que exista, ficamos na mesma, porque não sabemos qual é a vontade de Deus. Deus podia concordar e permitir que Hitler fosse executado, se tivéssemos podido fazê-lo. Ainda hoje, se contarmos os Estados em que a pena de morte é justa, ou seja, é permitida por lei e tem sido praticada, em termos populacionais ainda estão em maioria. Nos Estados Unidos da América a pena de morte é oficialmente permitida em 30 dos 50 estados, bem como pelo governo federal. Depois temos países como: China, Índia, Nigéria, Arábia Saudita, Irão, Iraque, Bangladeche, Vietname, Botsuana, Sudão, Somália, Iémen, Japão, Taiwan, Coreia do Norte, Indonésia – há mais, mas já chega, porque só aqui reunimos países onde uma população de 4,181 biliões é atingida pela pena de morte, numa população mundial de 7,7 biliões.

Corremos sempre o risco de desfocarmos a realidade quando nos limitamos aos números. Mas se classificarmos a população mundial pela religião temos: 2,18 biliões de cristãos; 1,6 biliões de muçulmanos; 1,2 biliões de hinduístas; 0,7 biliões de budistas; 1 bilião de pessoas sem religião; e 1,02 biliões de outras religiões.

Focando-me agora no mundo dos cristãos, que mais coisa menos coisa corresponde ao mundo ocidental, quando fazemos perguntas a um cristão, mais de nível filosófico, é frequente sermos remetidos para a Bíblia: “leia a Bíblia”. Mas a Bíblia está aberta a várias interpretações, muitas vezes conflituosas. Muitos seguem a Bíblia à letra. Mas quando lhes perguntamos se acreditam que o mundo foi criado em sete dias como diz o livro do Génesis, como seria ridículo de mais, respondem que se trata de uma metáfora. Mas a seguir estragam a pintura toda quando reafirmam vincadamente que acreditam que o mundo não tem mais de sete mil anos, porque este cálculo decorre da leitura da Bíblia.

Se a retidão moral é ditada por Deus, isto parece tornar a moral, de alguma forma, arbitrária. Deus podia, se quisesse, não necessariamente mandar matar, mas prescrever ser tão digno matar como não matar. E então se estaria em causa matar Hitler, Deus até acharia que era um ato digno de louvor. É claro que na prática, a moral cristã é muito mais complexa que isso dos Dez Mandamentos, mesmo sem ter de chegar a Immanuel Kant. É que, entretanto, depois de Moisés veio Jesus, dizer-nos para amarmos o próximo como a nós mesmos.

Immanuel Kant estava interessado na questão de saber o que é uma ação moral. Para ele era óbvio que uma ação moral teria de ser executada por sentido do dever e não apenas como resultado de uma inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de benefício para o seu autor. Portanto, em última instância, se eu agir apenas em função dos meus sentimentos e não em função de um sentido do dever, não terei agido moralmente. É o caso dos mecenas filantrópicos, ou dos que fazem donativos publicitados nas redes mediáticas, ou para ficarem bem na fotografia social, ou no fito de um qualquer benefício pessoal insondável do tipo: “hoje és tu, um dia poderei ser eu a precisar”.

Assim, para Kant, do ponto de vista da moral, é claro, a motivação de uma ação era muito mais importante do que a própria ação e as suas consequências. Se era benéfico para o recetor do nosso ato, isso não era suficiente para ser louvado como um bem moral absoluto, porque para Kant o que interessava para ser louvado moralmente era saber a verdadeira intenção que estava por trás do ato. Se o Samaritano agiu em função do seu interesse próprio, que tinha a ver com a expectativa de receber uma recompensa pelo seu incómodo, ou mesmo apenas uma medalha de reconhecimento público, então neste caso não se verificou nenhum bem moral, porque a motivação moral não foi baseada pura e simplesmente no sentido do dever.

Conhecemos muita gente, e não apenas os filósofos utilitaristas, que discorda de Kant. O facto de alguém sentir ou não uma emoção como a compaixão, por exemplo, quando faz uma boa ação em benefício dos outros, é irrelevante para a nossa avaliação quanto ao bem moral, se a intenção do praticante foi por compaixão ou se foi em função do sentido de dever. O que interessa é a própria ação. Uma razão pela qual Kant se concentrou tanto nas motivações das ações, em vez de se concentrar nas suas consequências, foi o facto de acreditar que todas as pessoas podiam ser morais. E a crítica ao utilitarismo, que avalia a ação moral pela consequência, resulta do facto de nem sempre sermos bem-sucedidos na ação cuja intensão é guiada pelo dever moral. E assim, não seríamos injustos no reconhecimento do mérito moral do praticante da ação, pese embora ter corrido mal.  Kant pensa que nós podemos controlar a inteção, temos poder sobre a intenção, mas já não temos poder em controlar os resultados das ações. Nem sempre resulta sermos bem-sucedidos no nosso empenhamento em salvar uma pessoa de morrer afogada. E nem por isso a ação deixa de ser moralmente louvada. Da mesma maneira, Kant acha que em relação às reações emocionais não temos qualquer controlo como temos sobre a vontade. E por isso sentimentos como a compaixão não pode ser aceite como essencial para o juízo moral. Se queremos uma moral acessível a todos os seres humanos conscientes, então, pensava Kant, a moral terá de apoiar-se na vontade e, sobretudo, no nosso sentido do dever.

No vocabulário kantiano, que é de uma idiossincrasia assombrosa, encontramos o termo “máxima”. A máxima é o princípio geral subjacente à ação, que Kant compara a uma lei da natureza. Assim, por exemplo a máxima do Bom Samaritano é esta: “ajuda sempre os que precisam porque é esse o teu dever”. Este é o imperativo categórico, segundo o qual nós temos deveres não negociáveis, são absolutos e incondicionais – "deves sempre dizer a verdade”; ou “nunca deves matar ninguém”. Estes deveres são inabaláveis, sejam quais forem as consequências que daí advenham. Ele distinguia os deveres categóricos dos deveres hipotéticos. Um dever hipotético é um dever como “se queres ser respeitado, deves dizer a verdade”; ou “se não queres ir para a prisão, não deves matar ninguém".
Uma outra característica do dever moral é a sua suscetibilidade à universalização. Podemos facilmente universalizar a máxima: "nunca tortures crianças". É certamente possível e desejável que todos obedeçam a esta ordem, apesar de poderem não o fazer. É claramente uma resposta consonante com as intuições da maior parte das pessoas acerca da retidão.

Uma das críticas que se tem feito à moral de Kant, é que dá pouca ajuda às pessoas que tentam decidir o que devem fazer. Por exemplo, a teoria de Kant não consegue dar facilmente conta dos conflitos entre deveres. Uma outra brecha na teoria de Kant é a negligência face às consequências da ação, como por exemplo alguém causar várias mortes por negligência, mas apesar disso, o que importa foi a intenção ter sido boa, isto é, contrária ao resultado final.

O utilitarismo é a teoria mais bem conseguida em defesa do consequencialismo. É o princípio da maior felicidade de todos que está em causa. Para um utilitarista, a boa ação pode ser calculada em quaisquer circunstâncias, basta examinar as consequências que eram expectáveis no decurso de uma ação possível, e o que aconteceu no resultado final. É uma verdade incontroversa que pessoas de diferentes sociedades têm costumes diferentes e diferentes ideias acerca do bem e do mal morais. Não há consenso mundial sobre a questão de saber que ações são moralmente boas e moralmente más, apesar de existir uma coincidência considerável sobre esta matéria. Se fizermos uma reportagem geográfica e histórica sobre o moralmente correto em diferentes lugares do mundo e em diferentes tempos históricos, pode ser tentador pensar que a moral é relativa. Assim, a escravatura é moralmente má neste tempo, mas já foi moralmente boa noutros tempos e lugares.

Uma questão que se costuma colocar aos utilitaristas é  como se avalia o prazer? Como se comparam os prazeres físicos e os prazeres psíquicos em relação ao sexo e à alimentação, por exemplo, questões que também estão ligados a imperativos da natureza para a sobrevivência e perpetuação da espécie. Ou o prazer nos outros animais?

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