quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Em paz, quando se está a chegar ao fim


Tal como muitas pessoas, já perdi alguns familiares e amigos por causa de cancro. Alguns familiares e amigos que tiveram cancro, de momento estão bem, sem recidiva. E alguns amigos com recidiva ainda a lutar contra ele. Um deles, que já não está entre nós, teve um glioblastoma. Quis saber o prognóstico. O neurocirurgião mostrou-lhe as últimas estatísticas mundiais da sobrevida a um glioblastoma, que era de seis meses em média. Mas quando faleceu passado cinco anos, não foi do glioblastoma, mas de outro cancro, agora no pulmão. O glioblastoma cedeu à cirurgia, mais quimioterapia, mais radioterapia. 


Há artigos científicos que dizem: “Para o glioblastoma de grau IV, em caso de recidiva, a taxa de sobrevivência após dezoito meses é de zero”. Ora, para quem está nesta situação, ouvir alguém ler-nos isto em voz alta custa muito ouvir. Ao sair da clínica, a mulher do meu amigo com um glioblastoma, longe da presença dele, sem ele ouvir, perguntou ao médico: “Senhor doutor, com que posso contar?” O médico: “Na fase em que as coisas estão, aconselho-a a considerar cada dia como um presente, e a não pensar em mais nada”. Um outro fulano, com um glioblastoma de grau IV, já passaram doze anos, o que representa um verdadeiro recorde. Submeteu-se a um tratamento convencional no início (cirugia+quimioterapia+radioterpia+meditação), e desde então o tumor não voltou, não recidivou. Mas ele atribui a sua excecionalidade ao facto de ter ido viver para a serra do Gerês, num isolamento quase de eremita místico. Garante que é a calma que o protege, e uns passeios, tanto a pé como de barco numa albufeira de barragem.  Quando o tumor cerebral apareceu, ao tomar consciência de que o fim estaria próximo, e ao fazer a retrospetiva da sua vida, apesar de recordar com satisfação as inesquecíveis peripécias que a sua profissão lhe proporcionou, e o quão adorou exercer a sua profissão, com a mesma equanimidade decidiu vir-se embora e deixar a profissão. Sendo ele dado ao gosto pelas provações extremas, achou que devia desafiar a biologia, sabendo que caberia a ele a última palavra. Foi-lhe dito que era de grau IV, mas não perguntou quantos graus havia. Só na fase final dos tratamentos, quando os resultados dos exames de controlo se revelaram espectaculares, perguntou ao médico: “afinal quantos graus há?” O médico respondeu que havia quatro. Ele havia decidido mudar radicalmente de vida. Como é evidente, nem toda a gente tem a possibilidade de poder fazer o mesmo.

Quando somos atingidos por uma doença grave, como um cancro, a perspetiva que temos da nossa vida é que temos com ela um contrato a termo, embora incerto. A tal espada de Dâmocles que fica  a pairar por cima das nossas cabeças.Voltam os medos infantis, que podem ser irracionais, porventura primitivos, mas emergem do fundo do nosso inconsciente, que tem muita força. Sentimo-nos rodeados por sombras estranhas, ruídos inquietantes que assumem formas surpreendentes. Por conseguinte, uma das tarefas mais urgentes consiste em encontrar e conservar uma certa acalmia, sem a qual podemos acabar por soçobrar por descontrolo da nossa homeostasia. Hoje em dia há muitas propostas ou receitas para resistirmos ao infortúnio. Jon Kabat-Zinn, é um exemplo: Professor Emérito de Medicina e diretor fundador da Clínica de Redução do Stress e do Centro de Atenção Plena em Medicina, na Escola Médica da Universidade de Massachusetts, que se interessou pelo budismo zen  para ajudar os doentes a lidar melhor com a sua doença, apesar de terem plena consciência do potencial grau de fatalidade. 




A plena consciência é um conceito corrente no budismo. Mas Kabat-Zinn expurgou-o de referências religiosas. Tal como a ensina, é uma concentração em si mesmo e na respiração. Não tem nada a ver com insuflação de egos, ou reforço de autoestimas. O objetivo consiste em obter o máximo de presença em si na dimensão física, pela atenção dedicada à respiração, desconcentrando-se nos pensamentos, até eles quase desaparecerem. O resultado é um estado deveras repousante onde precisamente, nos encontramos durante alguns momentos libertos da tirania do “Eu”. Apesar de a postura convencional ser a mais aconselhada, posição de lótus ou pose de ioga, este tipo de meditação pode também ser praticada na posição deitada, sobretudo para aqueles doentes que estão fisicamente impedidos de se sentarem nessa posição. A meditação poderá ser uma coisa demasiado abstrata para quem nunca a experimentou. Mas quem já praticou “mindfulness”, o termo dessa meditação em inglês, é equânime em afirmar que em vez de ocupar tempo, faz com que o tempo sobre.

Há uma noção de stress positivo e stress negativo. O primeiro é benéfico, tanto para o corpo como para o espírito, asseguram alguns especialistas. Há estudos que mostram que períodos breves de stress positivo podem reforçar o sistema imunitário. É sabido que o sentimento de impotência enfraquece o sistema imunitário e provoca inflamação. E a não resignação, que desperta a vontade de lutar contra a doença - o equivalente do conatus de Espinosa - provoca um certo estado de stress, mas é um stress que é positivo, porque é otimista. 
Conatus é a expressão latina para esforço, impulso, inclinação, tendência ou cometimento. É um termo usado em filosofia para se referir a uma inclinação inata de uma coisa para continuar a existir e se aprimorar. É a combinação harmoniosa da mente e do corpo, que Espinosa e outros filósofos do seu tempo deram importantes contribuições para a sua compreensão. O conatus pode ser o instintivo "desejo de viver" de organismos vivos. Frequentemente, o conceito é associado como a força vital da natureza. Mas tem de ser doseado com moderação, porque pode tornar-se um vício. E como qualquer vício, transforma-se num stress negativo, que é responsável por uma série de problemas: hipertensão; acidentes cardiovasculares; diabetes… é o problema dos workaholics, cujo excesso de trabalho é muito tóxico. É claro que é a questão mais difícil de resolver, quando se trata deste tipo de pessoas, que geralmente por serem assim: trabalho, trabalho, trabalho ... comprometem também a sua relação conjugal. Dizem eles: “é mais fácil transformar-me num veganista do que parar de trabalhar" (Veganismo é a prática de abster-se do uso de produtos de origem animal, procurando excluir, na medida do possível, o uso de qualquer produto de origem animal, seja na alimentação ou vestuário. Um seguidor desta prática é conhecido como vegano).

De um modo geral as pessoas dizem que têm medo de sofrer, não têm medo de morrer. Morrer em sofrimento é que é aterrador. O que as pessoas têm medo é de ficarem paralisadas, ficarem com os músculos torácicos bloqueados e não conseguirem respirar. É a tão conhecida falta de ar. E as pessoas têm medo de morrer sozinhos, sem que ninguém se aperceba, sem uma despedida. Termos a possibilidade de preparar a nossa partida é, na realidade, um grande privilégio. Mas quem anda na estrada sabe que um acidente pode ocorrer a qualquer um, e quando é violento, ceifa a vida instantaneamente. A privação da despedida de quem parte não é dramática nestas circunstâncias, é dramática para quem fica, os familiares e amigos.

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