sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Os Caretos de Podence



Os Caretos de Podence foram oficialmente reconhecidos como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A decisão foi tomada em 12 de dezembro passado, em Bogotá, capital da Colômbia.

Em toda a região de Trás-os-Montes há Caretos, mas os de Podence distinguem-se dos restantes pelo chocalho, daí o nome da festa ser “Entrudo Chocalheiro”. É nos chocalhos que se concentra a acção, com as ruidosas manifestações dos Caretos a atraírem durante quatro dias à aldeia de Podence, com cerca de 180 habitantes, milhares de curiosos portugueses e estrangeiros. Durante os dias de festa, grupos de caretos percorrem a aldeia horas a fio para cima e para baixo, à prura de mulheres. São geralmente rapazes solteiros. Correm e gritam quando vislumbram mulheres desprevenidas, mas também há muitos encontros consensuais. O Carnaval em Podence, de resto, sinal dos tempos, é um palco onde os papéis muitas vezes tendem a inverter-se, no sentido de serem as mulheres quem cada vez mais procura os caretos.

A cultura transmontana é fértil em tradições mítico-religiosas, uma boa parte com origem nos povos asturianos, mas em boa verdade desconhece-se a origem e o sentido destas tradições. É possível que sejam tão remotas quanto o início da agricultura, na passagem do Paleolítico para o Neolítico. Mas porque é que em Podence as “raparigas são chocalhadas quando o Diabo anda à solta”, pouco se sabe. Os caretos têm a ver com os ritos iniciáticos de passagem da adolescência para a vida adulta, onde são integradas reminiscências de ritos guerreiros esotéricos, e ritos de ligação do mundo dos humanos ao mundo invisível dos deuses e dos antepassados. Para a mentalidade arcaico-solar, o guerreiro é, sobretudo, o símbolo da energia espiritual, que coloca o CAOS na Ordem do Mundo. Aquele que se supera a si próprio nesta passagem iniciática da adolescência, e enfrenta com êxito os ‘estados alterados de consciência’, é o propiciador da fertilidade dos campos, da saúde do gado e da boa sorte. A máscara, com o seu simbolismo e poder mágico inerentes, constitui um aspeto fundamental deste rito. A máscara é o símbolo da passagem de um estado de consciência para outro, que facilita ao jovem o romper da sua persona de adolescente e o subsequente renascer para a vida adulta.

Entre os rituais cíclicos muito antigos, que algumas aldeias portuguesas ainda preservam, os mais importantes são os festejos em louvor à Mãe-Natureza. Mas estes realizam-se no verão, ligados à época das colheitas. São 
as festividade mais significativas em todo o lado. Outros ritos, como estes dos caretos que se celebram no solstício de Inverno, representam mais um papel anunciador de um novo ano de colheitas que há de vir. Podence faz parte do “reino maravilhoso” tão amado por Miguel Torga. Muita gente ainda vai lá assistir para ficar atónita e esmagada pelas pedras que se silenciam para a música - tocada por instrumentos rústicos ali inventados há muitos séculos - se fazer ouvir em comunhão com o fogo dos cepos, e a água das fontes santas, num horizonte de amplas serranias e vales profundos. É uma experiência de raros estados de consciência modificados.

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