sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Filosofia – Matemática – Ciência


Filosofarmos, ao contrário do que muita gente pensa, é a abrirmo-nos à discussão calma e cuidadosa. Um filósofo apresenta uma teoria. Os outros estudam cuidadosamente os seus argumentos, para ver se são cogentes; vão pensar e explorar teorias alternativas. Discutir ideias nestes termos é o que em filosofia se chama argumentar. Que exige abertura crítica, rigor e cuidado, e tanto quanto possível sem falácias. Isso não significa que no dia-a-dia existam filósofos que se recusam a discutir as suas ideias. E pensam que descobriram a pólvora. Mas isso acontece tanto com filósofos como com cientistas. É a ilusão mais humana que podemos ter. Mas o sistema em si mantém-se saudável desde que, institucionalmente, persista a liberdade e a possibilidade de discussão aberta, sem tabus.

Ao contrário do que se passa quando se faz ciência, aqui não se pretende o alcance de resultados. Mas na ciência dita fundamental, como por exemplo na física teórica, também não há garantia de resultados, e é argumentável que é precisamente nas fronteiras da ciência que está a verdadeira ciência, e não na ciência dita aplicada ou empírica. Era aliás por ter consciência desta diferença que Einstein, um físico teórico, defendia que ter uma formação filosófica era muito importante para um cientista teórico. Para todos os efeitos Einstein tinha um cérebro eminentemente matemático, que por ser assim tinha de ser de um rigor absoluto. Aliás é o rigor que existe no cérebro dos compositores musicais do calibre de um Mozart ou um Beethoven. Mas o rigor da sintaxe musical erudita é de um género diferente do rigor da química, que por sua vez é de um género diferente do rigor da matemática. O rigor geralmente possível em filosofia moral, por exemplo, é diferente do rigor possível em metafísica ou teoria do conhecimento.

Na família dos filósofos analíticos, como por exemplo um Frege ou um Bertrand Russel, tentou-se a procura sistemática e a formalização do raciocínio lógico usado na matemática. Historicamente, foi precisamente o facto de a filosofia platónica, que apresentava como lema: “só se admite a entrada a quem souber geometria”, uma espécie de herança pitagórica, que levou estes lógicos ao desenvolvimento da lógica formal, a que hoje chamamos clássica, mas que acabou por alterar radicalmente a face da matemática, dando-lhe um rigor e precisão que anteriormente só a geometria tinha.

A lógica booleana é apenas um pequeno fragmento da lógica formal. Mas hoje o que assistimos é a um grande desenvolvimento da lógica informal, que é bastante mais vasta do que a formal. Por outro lado, mesmo a lógica formal clássica ultrapassa em muito a lógica boolena, pois esta é meramente proposicional e verofuncional. A lógica modal proposicional, por exemplo, não é verofuncional. E acresce que muitas lógicas formais não clássicas não aceitam alguns aspetos da lógica booleana. Além disso é enganador dizer que a lógica booleana é matemática — é mais o inverso: uma parte da matemática pode ser reduzida à lógica.

A ciência empírica produz resultados porque lida com um certo domínio de problemas, para os quais há geralmente (mas nem sempre) soluções empíricas e matemáticas; a filosofia lida com problemas para os quais não há tais soluções. Concluir que por isso tais problemas são falsos problemas é falacioso porque tal conclusão é em si filosófica. A filosofia é incómoda porque não fazendo coisas é inevitável. Qualquer argumento que procure recusar a filosofia é em si intrinsecamente filosófico. A filosofia é mesmo este espinho incómodo que não nos garante resultados à partida. Sem a ousadia da filosofia, que aparentemente passa o tempo a fazer aparentemente perguntas idiotas sobre problemas aparentemente insolúveis, não haveria progresso científico. A filosofia é muito irritante para quem quer respostas pão-pão, queijo-queijo.

As ideias dos filósofos, do passado e do presente, são importantes num sentido diferente em que as ideias dos cientistas do passado são importantes. No caso da ciência, cada investigador contribuiu um pouco para a construção do que temos hoje: a ciência apresenta resultados em grande parte cumulativos. Mas a filosofia não apresenta resultados cumulativos — não sabemos hoje se há livre-arbítrio, por exemplo, como sabemos hoje qual é a composição da atmosfera de Marte. Mas são importantes porque exploram possibilidades que em qualquer caso têm de ser exploradas e porque ninguém sabe se alguma dessas teorias terá aspetos verdadeiros. Isto significa que as investigações de um filósofo do passado podem ter um interesse atual, e não meramente histórico: isto é, podemos querer discutir essas investigações como possibilidades vivas, teorias em aberto, e não como meras contribuições acabadas (definitivamente verdadeiras ou falsas) para a compreensão atual das coisas.

Muita gente confunde um filósofo com um historiador da filosofia. O historiador da filosofia não tem por missão discutir se a teoria de um determinado filósofo é plausível ou não. A sua missão é explicar cuidadosamente essa teoria, como se articula, como se relaciona com as outras teorias desse filósofo, e que tipo de influências tal teoria sofreu de outras ideias comuns no seu tempo, ou das leituras que esse filósofo fez, e que influência tal teoria teve mais tarde nos filósofos posteriores. Um filósofo faz outra coisa: discute essa teoria para saber se é plausível ou não e porquê, se deve ser rejeitada ou modificada e porquê, que argumentos a sustentam e que argumentos não podem sustentá-la. Agora, se um filósofo também faz história da filosofia, isso já é outra coisa.

Ora, um filósofo vive sistematicamente nas fronteiras da ciência, onde não há resultados nem receitas que garantam resultados. A filosofia é investigação de coisas que não sabemos sequer se existem, ou se algum dia viremos a conhecer. Esta própria posição é filosófica, meta-filosófica se quiserem, e está longe de ser consensual entre os filósofos. A filosofia é esta insistência em pensar e discutir cuidadosa e abertamente, sem nos fecharmos no subjetivismo cego, nas perspetivas pessoais e incomensuráveis.

Na realidade, parte importante dos problemas encarados como filosóficos foram realmente resolvidos. Ao serem resolvidos deixaram de fazer parte do for filosófico para passarem a fazer parte do foro científico. Contudo, se tivéssemos começado por desistir de tentar, se tivéssemos começado por rejeitar tais problemas por não termos métodos científicos para os resolver, nunca teríamos descoberto tais métodos. Descobrimos métodos científicos para resolver problemas porque primeiro estudámos esses problemas antes de serem científicos.

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