quarta-feira, 31 de julho de 2019

O fim dos Impérios



Henrique Raposo, colunista do Expresso, alinhado com a direita conservadora, escreve há dias, a dado passo na sua crónica habitual, o seguinte:
Há cem anos, o fim dos impérios, sobretudo do grande Império Austro Húngaro, foi “a” tragédia. Grandes espaços conservadores e cosmopolitas como o Império de Viena deram lugar a nações tribalistas, pequenas, inseguras e, por isso, agressivas. Agora, a roda da História deu a volta. A corrosão dos nossos “impérios” é o tema do futuro próximo: a república americana está num processo de fragmentação que faz lembrar as décadas pré-1861, e a confederação europeia, UE, está a ser consumida pelas tribos nacionais, tal como o grande e cosmopolita império Habsburgo. Parar este processo é vital para a paz que conhecemos desde 45. Isto não é um pormenor no estuque ou pintura, é o pilar. O fim dos impérios foi a causa da I e da II Guerra. Antes de 1914, os nacionalismos corroeram os impérios, criando a I Guerra; depois de 1918, a I Guerra e a imbecilidade de W. Wilson determinaram a fragmentação dos impérios e a própria validade do termo “império”, abrindo assim espaço para o apocalipse.
Muito bem. Em 1900, na maioria dos países da Europa Ocidental, a social-democracia era um movimento aceite dentro do Estado, que agia num determinado quadro constitucional, o que, em diferentes graus, dava oportunidade aos partidos socialistas de espalharem as suas ideias e de influírem no desenvolvimento político, social e económico dos respetivos países. Mas no que respeita a liberdades constitucionais e políticas Espanha e Rússia mantiveram-se à margem das linhas gerais do desenvolvimento europeu. O caso da Espanha tem interesse porque foi ali que a tradição anarquista lançou raízes mais fundas e exerceu mais larga influência, ao passo que na Rússia a história dos movimentos revolucionários anteriores à Primeira Guerra levou à Revolução de 1917 e ao subsequente desenvolvimento do comunismo.

A Espanha com a monarquia Bourbon estava ingovernável desde o fracasso da República proclamada a seguir à revolução de 1868. Entretanto a década de 1870 trouxe para Espanha as ideias de Bakunine, o que acabou por dividir o movimento da classe trabalhadora espanhola em contraponto com a ortodoxia marxista das secções espanholas da Internacional. A Espanha foi realmente o único país da Europa onde as ideias de Bakunine lançaram raízes profundas e continuaram a dominar um vasto e importante setor da classe trabalhadora. O movimento anarquista, por seu lado, conseguia unir os trabalhadores industriais mais adiantados e o proletariado rural mais recuado numa crença comum, a de que só uma transformação radical e total da sociedade poderia resolver os seus problemas e melhorar a sua situação. E então na Andaluzia, mercê do singular fanatismo anticlerical que vinha desde os tempos da Inquisição, a violência anarquista foi bem recebida por parte dos trabalhadores rurais andaluzes que estavam condenados a morrer de fome por maus anos agrícolas.

E a situação ainda se agravou em 1898 com a derrota face aos Estados Unidos que culminou com a perda das colónias das Antilhas e do Pacífico. A Catalunha, região mais avançada e mais industrializada, lutava pela autonomia. Por isso era fácil dar ouvidos à exigência anarquista. E no País Basco uma classe de camponeses fortemente conservadora agarrava-se às suas esperanças de que os direitos tradicionais daquelas províncias viessem a ser restabelecidas.

Já na Rússia, a década de 1890 foi difícil para os adeptos socialistas mercê de uma polícia secreta eficiente e vigilante. Até que um dia o socialismo marxista atingiu o jovem Lenine. Vladimir Ilitch Uljanov, que adotou na clandestinidade pseudónimo Lenine quando o seu irmão mais velho foi executado por ter tomado parte numa conspiração para assassinar o czar Alexandre III. Não tardou a ver-se metido e complicações com as autoridades, e após um período de exílio na Sibéria, deixou a Rússia em 1900. Voltou alguns meses a seguir à Revolução de 1905, e depois finalmente em ombros, em abril de 1917.

Lenine criou a sua reputação como polemista através dos seus ataques àqueles membros dos partidos socialistas que acreditavam que os seus esforços deveriam concentrar-se na obtenção de vantagens práticas imediatas para as classes trabalhadoras. Mas Lenine foi bem-sucedido em cindir o Partido Social-Democrata russo em dois: mencheviques e bolcheviques. Os mencheviques representavam a social-democracia ortodoxa. Ao passo que os bolcheviques, os preferidos de Lenine, estavam decididos a utilizar qualquer meio revolucionário para transformarem imediatamente a revolução burguesa numa revolução proletária.

Recorde-se a desastrosa derrota dos russos em 1905 no Extremo Oriente com os Japoneses. Esta situação provocou uma agitação proletária nas cidades, que veio acordar os sociais-democratas para o debate parlamentar. O movimento socialista europeu acompanhava o que se estava a passar na Rússia com grande atenção, dado que a Revolução Russa de 1905 tinha sido a mais violenta explosão revolucionária desde a Comuna de Paris em 1871. Rosa Luxemburgo – uma filósofa e economista marxista polaco-alemã, que se tornou mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia da Polónia, ao Partido Social-Democrata da Alemanha e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha – estando na Alemanha, regressa apressadamente à sua Polónia natal para aí se lançar na atividade revolucionária e, bem assim, numa controvérsia sobre se a revolução nacional da Polónia, para se tornar independente da Rússia, deveria ter prioridade sobre a revolução social.

Desde 1870 que se estava a criar um movimento socialista internacional que parecia oferecer a possibilidade de uma sociedade inteiramente nova. Embora nenhuma teoria geral explique por si só cada caso específico da expansão imperialista, os grupos económicos de pressão influíram consideravelmente na decisão dos governos europeus de se lançarem na expansão colonial.

A acrescentar às novas aquisições coloniais da última parte do século XIX, havia ainda na posse de muitos países europeus os territórios ultramarinos adquiridos em séculos anteriores. Era o caso de Portugal, império outrora grandioso, mas que agora se estava a apagar lenta e progressivamente. Portugal, um país que na Europa era pequeno de mais para competir com outros impérios, conservava territórios extensos de mais em África, tanto na África Ocidental como Oriental, ao ponto de se ter metido numa guerra diplomática com a sua grande aliada Inglaterra, por causa do tão polémico “mapa cor de rosa”. No entanto a Alemanha também estava à espreita, porque tinha esperança de vir a adquirir bons nacos de terra como pagamento de dívidas contraídas na década de 1890, e que não estava em condições de pagar porque o descalabro financeiro era de tal forma grande que o mais certo era que se viesse a afundar.

Por outro lado, a Espanha aqui ao lado também não podia ajudar, pois apesar de manter ainda uma boa parte de Marrocos, perdia a maior parte do que restava do seu colossal império: Cuba tornava-se independente, e as Filipinas passavam a ficar sob administração americana.

Restava a Grã-Bretanha, a única que tinha conseguido manter a maior parte do império adquirido em épocas anteriores. A Inglaterra era, de facto, um grande império na última parte do século XIX: Canadá, Austrália, Nova Zelândia … uma vez que a Índia era um império dentro de outro império, variado e densamente povoado, cujos habitantes, que ao contrário dos outros países com população maioritária europeia, diferiam uns dos outros na religião, na língua e nas tradições culturais, e diferiam mais ainda dos seus dirigentes britânicos.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

O abismo entre a mente consciente e o universo físico

Este tema tem a ver com o hiato impossível de transpor entre o discurso fisicalista e o discurso mentalista acerca do problema mente/corpo. Saber tudo sobre o cérebro e sobre a natureza física do universo não é suficiente para saber tudo a respeito da mente consciente: dizem os mentalistas. 
Enquanto que qualquer pessoa percebe o que um especialista quer dizer com o termo “fisicalista”, já com o termo “mentalista” a confusão instala-se. Por mim diria que o conceito de mentalista cobre aquela noção de que há uma fenomenologia na experiência da vida quotidiana comum a todos os humanos, e que intuitivamente todos sabemos do que se está a falar quando alguém pergunta como se passa, por exemplo, do cheiro a sardinhas assadas numa noite de São João, para a anatomia do nosso corpo que dá conta disso, do nariz ao cérebro. 
O hiato intransponível entre o conhecimento da mente e o conhecimento do corpo, que para além de vários tipos de impossibilidades, conforme a matriz filosófica dos investigadores, comporta o problema da incomensurabilidade, versão Thomas Khun, é a peça de resistência que ainda se coloca a todas as especialidades, sem exceção, que ambicionam um dia saber tudo o que há para saber acerca da mente e da consciência. É demasiado evidente para necessitar de prova que os eflúvios de um corpo odorífero nada têm de semelhante à sensação de cheiro. 
A consciência é como se fosse uma espécie de transparência fenoménica. A consciência acompanha sempre o pensamento, e faculta-nos o conhecimento do que fazemos quando vemos, ouvimos, saboreamos e assim por aí fora quando são afetados todos os nossos sentidos da senciência. E cada um de nós (o sujeito) sabe a importância que a consciência desempenha na identidade pessoal, e no sentido do eu (self). O sujeito é a melhor autoridade sobre o que se passa dentro de si – sensações, sentimentos, pensamentos.
O problema dos conteúdos da consciência fenoménica já havia sido formulado por Locke na teoria das qualidades primárias e secundárias dos corpos. Há uma incomensurabilidade de termos entre a subjetividade fenoménica de primeira pessoa e a objetividade de terceira pessoa para a descrição de um dado evento, experiência ou situação percetiva. Do ponto de vista do sujeito é a experiência que ocupa a consciência com a totalidade dos conjuntos fenoménicos que atuam num dado fragmento do espaço-tempo. A coabitação dos diferentes conteúdos fenoménicos dentro da mesma experiência consciente permite uma estratégia de diminuição da alteridade radical entre experiência e mundo físico, pois na nossa mente os qualia nunca podem ser falsos, pois as cores, ou os odores, são perceptos de coisas tal como existem. 
Mesmo que a ciência já tivesse alcançado todo o conhecimento a respeito dos qualia, ainda assim não chegaria para dar conta da sensação subjetiva tal como é. Muitos pensam que nunca possuiremos uma ciência total a este respeito, que explique como surgem os conteúdos fenoménicos do mundo. O aumento do conhecimento da estrutura física dos órgãos do nosso corpo não implica um aumento correspondente do conhecimento do modo como e por que razão existem experiências subjetivas associadas a esses órgãos. 
Até aqui tenho-me limitado a enfrentar apenas o problema mente-corpo. Mas há um outro problema que tenho evitado, porque adensa ainda mais as nossas dificuldades conceptuais e de linguagem e que é o problema apresentado por alguns autores, poucos, como o problema mente-mente. É claro que, para simplificar, vou referir apenas a relação que existe, ou não existe, entre a mente consciente e a mente inconsciente. Prende-se com o facto de haver ou não haver zombies, e com os aspetos estritamente lógicos das leis físicas que gerem o cérebro no sentido das operações de cálculo matemático, que são incapazes de dar conta da existência fenomenal da consciência. 

quinta-feira, 25 de julho de 2019

O Autismo por Simon Baron-Cohen


Desde os anos 90 que a incidência de autismo tem vindo a aumentar em todo o mundo, atingindo atualmente cerca de 60 em cada 10.000 crianças. Desconhece-se, no entanto, a razão para este facto. 
Segundo Simon Baron-Cohen, psicólogo do Centro de Pesquisas sobre o Autismo da Universidade de Cambridge, apesar de constatar o aumento do autismo em todo o lado, sem que ninguém encontre uma explicação, ele admite que isso também poderá dever-se à maior perceção dessa realidade por parte das pessoas em geral, um maior reconhecimento e uma maior latitude da categoria de diagnóstico, abrangendo casos menos graves, como a síndrome de Asperger. Até agora não se conseguiu provar, ou deixar de provar, que este aumento possa refletir outros fatores, como uma mudança genética e uma mudança de ambiente (por exemplo de natureza hormonal). 
Baron-Cohen é daqueles cientistas que se considera um otimista quanto ao futuro destes casos, uma vez que considera que nunca houve melhor altura para sofrer de autismo. Há uma conjugação notável entre a mente autista e a era digital. Tal como os computadores, que funcionam com uma extrema precisão, assim é o cérebro autista. Assim como os computadores, o cérebro autista segue regras. Portanto, o cérebro autista só se interessa por dados que sejam previsíveis, e sigam regras. Passe a expressão da falácia mereológica: não é o cérebro que se interessa ou deixa de interessar, mas sim o ser humano no seu todo bio/psíquico/sociológico/cultural. O mundo inerentemente imprevisível e ambíguo das pessoas e das emoções afugenta quem sofre de autismo. 
Assim, uma criança autista na frente de um computador e um rato na mão, uma série rápida de cliques com o rato transmite-lhe uma segurança confortável, porque os resultados gerados são sempre de uma precisão infalível, quando repetida gera sempre o mesmo resultado. E isso é de confiança, acalma a pessoa autista. Para uma criança autista os computadores são muito intuitivos do que o comportamento das pessoas reais, que é o contrário do que está disposto pela natureza para uma criança dita normal. Ao contrário de uma criança não autista, para uma criança autista as pessoas não são nada intuitivas. 
Uma criança autista pode passar por grandes dificuldades no período de socialização e no percurso da sua aprendizagem escolar. Mas chegada à idade adulta, não terá grandes dificuldades em arranjar uma profissão no cada vez mais alargado nicho digital. E neste nicho, elas serão sempre melhores que as outras. 

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Susan Blackmore

Susan Blackmore é uma psicóloga muito conhecida no campo das pesquisas sobre os estados alterados de consciência, nomeadamente as experiências fora do corpo e as experiências de quase morte. Ela afirma que as sensações e visões são perfeitamente explicáveis e podem ser vivenciadas também por pessoas que não passam pela situação limite de paragem cardíaca em unidades de cuidados intensivos hospitalares correrendo o risco de morrer. Qualquer coisa que provoque uma sensação de desinibição no cérebro, como drogas, por exemplo, pode causar uma visão ou uma sensação parecida com aquela experimentada pelas pessoas que passaram pela situação de ressuscitação médica por paragem cardiorrespiratória. Ela acredita que, no caso dessas pessoas, as sensações são o último impulso do cérebro para ajudar a enfrentar o trauma da morte.



Consciência – O último grande mistério da ciência – um tópico que os cientistas do século XX negligenciaram nas suas pesquisas acerca da mente e do cérebro, mas depois da viragem do milénio passou a ocupar a maior parte dos trabalhos na área da neurociência, bem como na área da psicologia e da filosofia. Existe uma teoria que explica a essência da consciência? Ou a própria consciência é apenas uma ilusão? Este livro inovador, reúne todas as principais teorias dos estudos da consciência, desde aqueles baseados em neurociência para aqueles baseados na teoria quântica ou filosofia oriental.
O livro examina tópicos tais como experiências subjetivas que surgem de processos cerebrais objetivos, a neurociência básica da consciência, estados alterados de consciência, experiências fora do corpo e perto da morte e os efeitos de drogas, sonhos e meditação. Ela também explora a natureza do self, a possibilidade de consciência artificial em robôs e a questão de saber se os animais são conscientes. A nova edição foi totalmente revista para incluir os últimos desenvolvimentos em neurociência pela utilização das mais recentes tecnologias de captação de imagem funcional do cérebro. Assim como a hipótese de se gerar consciência artificial em robótica.

Como uma jovem estudante impressionável, Susan Blackmore teve uma experiência intensa, dramática e transformadora, parecendo deixar seu corpo e viajar pelo mundo. Sem nenhuma explicação racional para a sua experiência fora do corpo, ela se voltou para a projeção astral e para o paranormal, mas logo se desesperou em encontrar respostas. Décadas mais tarde, um neurocirurgião suíço descobriu acidentalmente o local no cérebro que pode induzir experiência fora do corpo. E tudo mudou. Esse ponto crucial numa determinada área do cérebro, quando perturbado, a nossa experiência do self também é afetada. Blackmore, tendo já como ponto de partida a sua vocação na área da psicologia, passou então a dedicar-se a este tipo de pesquisas para desvendar o que havia acontecido com ela. E assim entrou por uma longa busca em sítios onde a ortodoxia habitualmente não entrava, a busca de respostas em remotas tradições religiosas ligadas à espiritualidade, como o caso da meditação e outras práticas orientais.
Segundo afirma Blackmore, qualquer um pode ter uma experiência fora do corpo. Na verdade, estima-se uma incidência de 15% na população em geral. Já para não falar dos que experimentam a paralisia do sono, o sonho lúcido e a sensação arrepiante de uma presença invisível. 
Com o advento da estimulação cerebral, da ressonância magnética funcional e da realidade virtual, todos esses fenómenos estão a começar a fazer sentido. Há muito tempo relegada às próprias fronteiras da pesquisa, a nova ciência das experiências fora do corpo está agora a contribuir para nossa compreensão da consciência e dos nossos próprios sentidos do eu.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Ora, as coisas podem sempre piorar



Nicholas Humphrey, Professor do Centro de Filosofia das Ciências Sociais e Naturais da London School of Economics, diz que o melhor ainda está para vir. Isto era ele a dizer em 2007:
“Se eu tivesse vivido no ano 1007 e me perguntassem aquilo que eu ambicionava para os meus descendentes no milénio seguinte, poderia ter imaginado muitas possibilidades maravilhosas, mas não teria imaginado sequer uma única coisa das que aconteceram. Porque não poderia. Não vou cometer esse erro, de me querer fazer passar por uma pessoa de1007 quando sou uma pessoa de 2007. Por isso, deixem-me dizer desde já que em 2007 desejo e espero que o melhor ainda esteja para vir. Que as maiores obras de arte, que o mundo já viu, sejam criadas por seres humanos não muito distantes de nós. Obras de uma força estética e moral ainda inimagináveis. E, lembremo-nos, não será necessário a modificação genética, a hibridização informática, os melhoramentos tecnológicos dos cérebros ou outra coisa qualquer. Basta que continuemos a ser quem somos”.
As máquinas acabarão por desaparecer, e, sobretudo, os computadores digitais hão de acabar por desaparecer. A crescente interação dos seres terrestres em comunicação através da telepatia fará surgir uma mente de Gaia verdadeira e sábia. E então tomaremos consciência de outras mentes mais elevadas no nosso cosmos. Isto é Rudy Rucker a sonhar, um matemático e cientista dos computadores. Pioneiro de ciberpunk, romancista e autor de “Matematicians in Love”.

Ora, as coisas podem sempre piorar. Que aconteceria se abandonássemos uma das idealizações das leis da física ainda em vigor, as leis filiadas no platonismo?

Físicos que trabalham em testes e aplicações da mecânica quântica têm algumas reservas: “as leis da natureza, que descobrimos, não são “coisas” que existam já prontas a serem descobertas fora das nossas cabeças. É claro que ao metermo-nos por este caminho de questionar as “coisas” estamos a meter-nos na pura metafísica. E a maioria dos físicos não têm tempo para se preocuparem com questões filosóficas. Limitam-se a sistematizar as regularidades que encontram na natureza, que não têm de ser necessariamente verdades transcendentes e imutáveis.

Faz parte da nossa linguagem chamar ao que acontece: “coisas”. As coisas que estão a acontecer não são coisas como pedras ou como árvores. Os incêndios na floresta, por exemplo, são coisas que acontecem e que apoquentam muita gente. É empregue num sentido muito mais lato do que quando começamos a enumerar em sentido restrito. Neste sentido significa o que está ao alcance da vista, ao alcance da mão. Ao passo que em sentido lato significa qualquer assunto, qualquer coisa que aconteça. Acontecimentos, eventos, o que se passa no mundo. Kant debruçou-se sobre esta questão, ou que é que em que ele não se debruçou? Assim, distinguiu a “coisa em si” da “coisa para nós”, sendo esta, evidentemente, o fenómeno, a aparência, o que nos afeta. Portanto, “as coisas para nós” seriam as coisas através da experiência, como pedras, árvores ou animais. Ao passo que “a coisa em si” era algo que não nos afetava, ou que não nos era acessível.

Mas Kant hesitou, ao dizer se o número, por exemplo o número cinco, era uma coisa. Pelo menos, de certeza, não podia ser uma coisa em sentido restrito, porque não se podia ver, agarrar ou ouvir. E à medida que Kant ia descascando esta cebola, topou que não podia escapar à questão do espaço e do tempo onde pairavam as coisas em sentido restrito. Pois não há outra maneira de dizer quando as coisas estão no espaço e no tempo. Não há como ter outra impressão se não que espaço e tempo são exterior à “coisa”. Mas onde e como este domínio de acolhimento das coisas existe propriamente, e o que é uma “coisa”, afinal, continua em disputa a melhor resposta. O que se pode dizer sem ser rejeitado é que a “coisa” é uma propriedade resultante da nossa relação com o mundo através da experiência. E a experiência é uma coisa natural. E o que é natural não deixa de ser compreendido por si mesmo.

A “verdade” de tudo isto que se disse da “coisa” apenas tem lugar ao nível da “proposição”, ou do enunciado para tradições filosóficas do quadrante kantiano. Mas quanto a tradições filosóficas podemos recuar mais ao tempo de Platão e Aristóteles para dizer que já nessa altura a coisa era o suporte de propriedades. Já nesse tempo se havia chegado à essência da proposição. E a “verdade” era a conformidade entre a nossa perceção e as coisas. Mas tais ideias evoluíram já no tempo dos Estoicos, e continuaram a modificar-se pela escolástica medieval dentro, até aparecerem as ideias que acabamos de perscrutar, as de Kant, nos tempos do idealismo alemão. Mas foram Platão e Aristóteles que pré-indicaram o caminho que ainda hoje percorremos.

Hoje, a maior parte dos cientistas da Inteligência Artificial, digamos aqueles cuja formação é da física e das ciências da computação, pensam no universo como um computador finito. Mas quem pensa assim mostra que as leis da física são leis idealizadas, e por conseguinte, uma ficção. As leis platónicas podem ser tratadas como aproximações úteis, mas não são a “realidade”. A sua precisão infinita é uma idealização, que, regra geral, é inofensiva, mas nem sempre. Por vezes essa idealização irá induzir-nos em erro, especialmente quando começamos a discutir se a consciência já estaria presente no início do universo.

Assim, podemos dizer que a matemática e a física, bem como a natureza, emergiram como uma única “coisa”. Um elo perfeito entre reinos que nós separamos para conveniência compreensiva: entidades e relações matemáticas que são o cúmulo da perfeição; e o mundo do espaço e do tempo, bem como dos objetos físicos, já não tão perfeitos. Ora, é uma impossibilidade juntar perfeição com imperfeição. Das duas uma: ou a matemática afinal não é assim tão perfeita, como disse Platão, sobretudo nos primeiros momentos a seguir ao big bang, e então já não haveria nenhum conflito com a emergência da vida e da mente; Ou então esqueçamos, e joguemos uma partidinha de qualquer jogo, não precisa ser gamão como aprazia David Hume, porque as leis físicas continuarão a ser um mistério. Se se rejeitar o platonismo, então temos de aceitar que a mente humana labora por sua conta e risco, girando numa permanente pescadinha de rabo na boca: o universo teria de ser tal como é para que existisse seres inteligentes como nós; e o universo é tal como nós dizemos, porque somos seres inteligentes. Esse é um imperativo cósmico, para que se possa explicar a emergência da vida e da mente.

É o princípio teleológico a funcionar. As leis básicas da física, mais as condições iniciais, já fixam aquilo que os sistemas físicos fazem, e que pura e simplesmente já não há espaço para que um princípio teleológico adicional possa operar. A teleologia é, por definição, uma forma de antecipar um estado futuro qualquer (neste caso a vida) e causar a emergência desse estado no seu devido tempo. Mas este princípio teleológico é contrário ao conceito standard de causalidade na ciência, ainda que haja alguns teóricos que digam que a mecânica quântica pode permitir uma fora subtil de teleologia. Como se tivesse havido um projeto, um desenho feito na forja, milhares de milhões de anos antes de a vida surgir num planeta azul insignificante na periferia de uma galáxia? Como é isso possível, o universo ter sido constrangido, desde logo à partida, a acomodar-se de forma a evoluir em direção à vida e à mente? Ou então é possível que haja mais vida para além do planeta Terra sem o nosso conhecimento. E sem o nosso conhecimento tudo é possível.

Seja como for, enquanto se mantiver em vigor o princípio monocausal da ciência, cuja matriz tradicional remonta a Descartes, esta teleologia dirigida para um fim certo é considerada anticientífica. Esta ideia deixa os cientistas nervosos, porque é uma forma indireta de fazer entrar novamente Deus pela porta traseira. Por isso devíamos libertar-nos desta armadilha monocausal. Ao tentarmos perceber os processos biológicos em geral, e em particular os processos cerebrais e a forma como controlam o trabalho mental, faria mais sentido a multicausalidade como princípio orientador. Por exemplo, não faz muito sentido explicar o comportamento humano apenas segundo a base genética. É a combinação de informação genética e ambiental que dá forma ao comportamento animal, e por maioria de razão ao comportamento humano.

Termino como comecei: “as coisas podem sempre piorar”.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

A maioria dos “cientistas velhos do Restelo” são otimistas


Otimistas em relação a quê? Bem, em relação a muita coisa, mas agora interessa-me verificar em relação ao aquecimento global. Por exemplo, Steven Pinker, professor em Harvard, aquando da sua vinda a Lisboa para participar numa conferência organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, subordinada ao tema – Ética, Valores e Política – deu uma entrevista ao Jornal Público onde se afirma claramente otimista em relação ao estado das coisas no mundo, considerando um grande exagero catastrofista o tipo de notícias que hoje em dia circulam nos órgãos de comunicação social :


John Brockman, editor e coordenador das edições “Edge”, ainda não vai há muito tempo que perguntou a cem cientistas do mainstream, os mais otimistas, se acreditavam que o mundo continuava a ir no sentido de para melhor. E todos responderam nos seus curtos textos que estavam otimistas quanto a isso. Em resumo, progresso da humanidade era alicerçado, em grande medida, nas perspetivas e propostas dos cientistas e pensadores mais otimistas.

Nu mundo refém de previsões apocalípticas, como as mudanças climáticas e o terrorismo global, foram afirmativos quanto a um futuro luminoso: dentro de um século o homem poderá habitar outros planetas; brevemente será encontrada a cura completa do cancro; os que estão a nascer agora chegarão em média aos 120 anos de idade; e ainda neste século será possível à ciência oferecer a imortalidade para quem a quiser; os recursos naturais do planeta vão continuar a ser inesgotáveis; dentro de algumas gerações serão inventadas máquinas que se reproduzirão a partir da energia solar; o terrorismo e as guerras irão extinguir-se.

Enquanto atividade e enquanto estado de espírito, a ciência é fundamentalmente otimista. A ciência descobre o modo como as coisas funcionam e graças a isso pode fazê-las funcionar melhor. A maior parte das suas notícias e descobertas são benéficas, graças ao aprofundamento constante do conhecimento e a ferramentas e técnicas cada vez mais eficientes e poderosas.

Sabemos da história da ciência que os cientistas a cada passo são forçados a abandonar algumas das verdades que até um dado momento eram dadas como seguras. Não é fácil, mesmo à luz de teorias e dados objetivos, abandonar aquilo que antes parecia indubitavelmente verdadeiro. Por isso devíamos ter em mente que a ciência vale pelo seu cariz metodológico, e não ontológico. O que é essencial é o processo de construir teorias explicativas rigorosas, testá-las com experiências cuidadosas, e rever as teorias à luz dos novos dados. Uma ontologia que nasce através do método científico poderá mais tarde ser aniquilada por esse mesmo método. É nisto que assenta a força inovadora da ciência.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Os universos possíveis e o fim anunciado do antropocentrismo



Ainda me lembro de há 50 anos ver na TV a preto-e-branco as imagens, transmitidas pela RTP e assistidas pela voz de José Mensurado, de Neil Armstrong pisar a superfície lunar pela primeira vez, proferindo a famosa frase que José Mensurado traduziu: “Um pequeno passo para o homem, mas um gigantesco passo para a humanidade”. A alunagem do módulo lunar Eagle deu-se às 20:17 UTC (Universal Time Coordinated) e seis horas depois, já no dia 21 de julho, Armstrong dá os primeiros passos na superfície da lua, seguido por Aldrin vinte minutos depois.

Nas tertúlias que temos tido, muitas vezes chegamos ao momento crucial de querer saber o que existia antes do big bang. E geralmente acabamos por levar para casa duas ideias: A ideia simples de que o universo não teve princípio nem terá fim. Sempre existiu. O big bang não passa de um episódio dentro de um universo que sempre existiu; e a ideia de que pura e simplesmente não se sabe nem podemos saber. As temperaturas dos primeiros instantes eram tão elevadas que as leis da física tal como as conhecemos hoje não se aplicam a essas condições de energia tão elevadas.

Para facilitar a nossa compreensão os físicos descrevem a evolução do universo desde o big bang, por eras. Assim, a era em que estamos agora, desde há cerca de algumas centenas de milhões de anos, é a era da energia escura. A densidade da energia escura, seja qual for a sua origem, passou a dominar a densidade da energia da matéria. A expansão de forma acelerada do universo é uma consequência disso. A era de Planck (1) é a primeira. Depois seguem-se por ordem temporal a era da grande unificação (2), a era hadrónica (3), a era leptónica (4), a era da radiação (5), a era da matéria (6) e finalmente a era da energia escura (7), a atual.

1. Do suposto início dos tempos – era de Planck – até aos 10-44 segundos, período em que as temperaturas eram da ordem de 1032 K, não há qualquer partícula, nem é possível atribuir ainda qualquer significado ao conceito de espaço-tempo. [Ao contrário dos gaus Celsius, Kelvin não é um "grau", nem deveria ser escrito com o símbolo de grau. O nome correto da unidade é Kelvin, com o símbolo K. Suas unidades são kelvins e se expressam com um único K. Assim, 0º Celsius equivale a 273,16 K. E 100º Celsius valem 373,16 K. Por conseguinte o 0 Kelvin equivale a -273,16º Celsius.] 
2. Depois da era de Planck até 10-35 segundos após o big bang, temos a era da grande unificação, com temperaturas da ordem dos 1028 K, em que surgem em grande profusão as partículas elementares em equilíbrio com a radiação. Supostamente ocorreu nesta fase o processo inflacionário, que resolveu os problemas das condições iniciais. 
3. Na era hadrónica, que terá acontecido entre 10-9 e 10-5 segundos após o big bang, com temperaturas a 1012 K, predominam os processos mediados pela interação nuclear forte, estando livres as partículas constituintes dos hadrões e dos mesões. 
4. A era leptónica vem a seguir e cessa por uma altura em que o universo já tinha alguns minutos de vida. As temperaturas rondam os 109 K. 
5. A era da radiação, que se inicia com a aniquilação dos eletrões e dos positrões, dura até cerca de 400.000 anos após o big bang, terminando com uma temperatura de 103 K. Surgem os primeiros átomos e o universo torna-se transparente com o desacoplamento entre a matéria e a radiação. É desta radiação que temos a radiação cósmica de fundo. 
 6. Na era da matéria a densidade de energia das partículas elementares passa a dominar a da radiação e a dos neutrinos. E só nesta fase é que começam a formar-se as galáxias, mais ou menos decorridos 2 mil milhões de anos desde o big bang. E as primeiras estrelas decorridos 4 mil milhões de anos após o big bang. E o sistema solar só surge passados 9 mil milhões de anos após o big bang. As primeiras estruturas com atributos de vida na Terra surgem 11 mil milhões de anos após o big bang. 
7. Portanto, sendo a idade do universo estimada em 13.800 milhões de anos (números redondos), a era da energia escura, já referida acima como a era atual, surge só depois de terem passado cerca de 13 mil milhões de anos. 

Entretanto a teoria das supercordas trouxe novas ideias para o problema da origem, o que não dececionou as mentes mais exigentes, dada a sua originalidade. Para melhor entendermos este facto depositam-se grandes esperanças na teoria das cordas quânticas, dado que esta teoria tem sido pródiga em descobertas surpreendentes. Como por exemplo, lá está, o big bang não ter sido a origem dos tempos.

Assim, a teoria cosmológica das branas assume que o universo visível está situado numa brana tri-dimensional que se move dentro de um espaço com maior número de dimensões. Nossa brana pode ser uma de uma série de incontáveis outras branas movendo-se através dessas dimensões adicionais. Este cenário dá suporte ao modelo ecpirótico proposto em 2001. O modelo ecpirótico do universo é uma alternativa ao paradigma da inflação cósmica. O modelo ecpirótico é um precursor e parte do modelo cíclico. Toda a história desde o big bang não é mais do que um breve episódio no infinito do tempo. Esse cenário sugere que o universo visível estava vazio e em contração no passado distante. Em certo momento nossa brana colidiu com uma outra brana paralela “escondida” o que provocou a mudança de um universo em contração para um universo em expansão. Radiação e matéria aquecida foram criadas no ato da colisão originando o big bang, que então a partir daí é o que já se sabia, é o nosso universo. Existem, todavia, problemas no cenário ecpirótico. Entre eles não é sabido o que efetivamente acontece quando duas branas colidem. Além disso, o cenário ecpirótico usa algumas ideias essenciais da teoria das cordas, principalmente as multi-dimensões. O termo ecpirótico é originado da palavra ekpyrosis da filosofia dos estoicos, a "destruição ou conflito pelo fogo" que representa o ciclo eterno e recorrente da destruição e renascimento.

Mas nenhuma teoria científica pode esquivar-se ao escrutínio da verificação da sua consistência matemática e das suas consequências experimentais. Há ainda muito trabalho a ser desenvolvido. Não podemos ter certezas sobre a verdade do modelo do big bang e, strictu sensu, temos de dizer o mesmo acerca de todas as teorias científicas.

Seja como for, os modelos explicativos vigentes acerca da origem, têm a virtude de poderem ser refutados em qualquer momento por novos factos observacionais. Não me cansando de repetir para lembrar, as teorias são instrumentos, guias para a observação e para a experimentação. Ao estado provisório das hipóteses, das conjeturas e métodos dedutivos, e com mais parcimónia métodos indutivos, os cientistas contrapõem a estabilidade e a robustez do método científico. Este é o verdadeiro pilar da atividade científica.

Não há dúvida que a complexidade dos processos e a diversidade fenomenológica do mundo transcendem qualquer teorização concebível. O pluralismo é mais virtuoso que o monismo em ciência. Mas a generalização de certos conceitos para além do seu domínio de validade pode dar origem a perigosas perversões.

Uma das mais profundas implicações culturais derivadas da procura humana em saber: “de onde viemos e para onde vamos”, é a inevitável conclusão de que seria um absurdo se nós, humanos, fôssemos os únicos no universo, e ainda por cima um universo tão vasto e de um gigantismo tal que é maior do que a nossa imaginação. Este princípio da mediania, segundo o qual não somos seres por aí além, tão especiais como gostamos de ser, é de uma evidência lapidar. De facto, o antropocentrismo, e as teorias do universo antrópico, têm sido a base das ideologias mais perversas na história humana. O de todas as civilizações terem suposto, no tempo que lhes calhou passar pelo tempo histórico, por um lado serem o centro de toda a verdade, e por outro possuírem o dom da eternidade. Nunca nenhuma civilização tratou de providenciar pelo inventário da sua própria extinção.

No ano de 1600 Giordano Bruno foi condenado à morte, acusado de heresia. Havia sido preso em 1592, formalmente julgado pela Santa Madre Igreja, e finalmente queimado vivo no Mercado das Flores, em Roma. Havia escrito o livro “De l’infinito universo e mundi”. E havia dito que o livro “De Revolutiobus Orbium Coelestium” de Nikolaus Copernicus estava certo quando colocava a Terra em pé de igualdade com os outros planetas, afirmando que o universo era infinito e que as estrelas era sóis.

No conjunto dos universos possíveis; na descoberta de inúmeros planetas extrassolares com características possivelmente idênticas às do planeta Terra; a evidência da presença de bactérias num meteorito proveniente de Marte; e a evidência de existência de água em Marte – tudo isso nos leva a crer que a vida seja uma das propriedades emergentes do cosmos, uma das suas inevitabilidades.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Jason Padgett: um caso adquirido da ‘síndrome do sábio’ = Savant



Jason Padgett é hoje um matemático famoso por via da sua passagem a Savant, que emergiu após uma lesão cerebral que sofreu depois de ter sido barbaramente agredido por dois bêbados num bar. Antes disso era um pacato vendedor de móveis na cidade de Tacoma. O Savant, originariamente cunhado na língua francesa para referir o portador da síndrome do idiota prodígio, um distúrbio psíquico com o qual a pessoa possui uma grande habilidade intelectual aliada a um déficit de inteligência. Tais habilidades são sempre ligadas a uma memória extraordinária, porém com pouca compreensão do que está sendo descrito. Encontrada em mais ou menos uma em cada 10 pessoas com autismo e em, aproximadamente, uma em cada 2 mil com danos cerebrais ou atraso mental, a síndrome do sábio é citada na literatura científica desde 1789, quando Benjamim Rush, o pai da psiquiatria americana, descreveu a incrível habilidade de calcular de Thomas Fuller, que de matemática sabia pouco mais do que contar.

Ora, a singularidade de Jason Padgett é ter sido uma pessoa dita normal até sofrer aquela lesão cerebral, que uns dias depois se deparou com a visualização de objetos matemáticos complexos e com a capacidade de desenvolver conceitos intuitivos do âmbito da física teórica. No dia seguinte ao trauma cerebral, quando acordou, só conseguia ver complicadas fórmulas matemáticas. Para onde quer que olhasse, ele compreendia matematicamente os fenómenos à sua volta. Então, quando lhe foi solicitada a escrita das fórmulas no papel, em vez de escrever fórmulas desenhou estruturas fractais. Padget desenvolveu uma capacidade de desenhos matemáticos surpreendentes. Ele começou a desenhar círculos feitos de triângulos sobrepostos, o que o ajudou a entender o conceito de pi (a razão do perímetro da circunferência e o seu diâmetro. Desde então, mercê das suas sinestesias que misturam os sentidos visuais com os matemáticos, passou a ilustrar complexas formas geométricas que vê ao seu redor misturando-as com fórmulas matemáticas.

Foi então, que um dia, um físico ao conhecê-lo a fazer esses desenhos num shopping, convidou-o a prosseguir a formação matemática na sua universidade. Entretanto os neurologistas também se mostraram interessados em estudar o seu cérebro. Verificaram que uma parte tinha ficado danificada para sempre. Para compensar essa parte danificada, o cérebro ocupou-a com neurónios vindos das partes adjacentes. O rearranjo e a ativação dessas partes resultaram num feito de génio, neste caso de índole matemática.

Em 2014, foi lançado o livro de memórias “Struck by Genius: How a Brain Injury Made Me a Mathematical Marvel” em que Jason conta a sua história. Segundo informações da revista americana "The Hollywood Reporter", este livro iria receber uma adaptação cinematográfica.

O raciocínio analítico em ciência moderna e pós-moderna, e os limites da razão

Não podemos ter certezas sobre a veracidade do Big-bang, nem do modelo teórico padrão da mecânica quântica. E temos de o dizer em relação a todas as teorias científicas. A complexidade dos processos, e a diversidade fenomenológica do mundo, transcendem qualquer teorização concebível. As teorias não passam de instrumentos guias para a observação e para a experimentação.

É um facto que a razão instrumental que possuímos, para deslindar as cambiantes manifestações da natureza, dando-lhe ordem e simetrias num mosaico aparentemente caótico de fenómenos e realidades, é dos bens mais preciosos que devemos estimar. Mas tem os seus limites. Por exemplo, alguma vez chegará à verdade acerca do universo? Temos o modelo do Big-bang, mas devemos duvidar se corresponde verdadeiramente ao início de tudo.

Seja como for, não podemos esquivar-nos de mergulhar nos meandros da lógica e de todos os instrumentos conceptuais que tivermos ao nosso alcance para continuar este caminho da procura da verdade. Mas não podemos deixar de defender que há verdades, ainda que as nossas limitações epistemológicas em relação à verdade sejam enormes. Uma coisa é a verdade. Outra coisa é a nossa possibilidade de alcançá-la. Por isso, devemos manter uma grande dose de ceticismo em relação a afirmações definitivas acerca da verdade, o melhor antídoto contra o dogmatismo. O dogmatismo é o maior inimigo do pensamento científico.

Foi sobretudo nas ciências da natureza física e química, que a viragem do qualitativo para o quantitativo, na época da Renascença, teve maior impacto. Passou-se de uma apreensão de totalidades para uma apreensão de estruturas mais elementares.

Ora, é através dos sentidos comuns do visível e do palpável, digamos assim, que os fenómenos da natureza impressionam mais qualitativamente. Mas as ciências físicas procuraram estabelecer leis explicativas. E para isso foi preciso penetrar no invisível, no intangível para além da aparência. E isso apenas podia ser deduzido por meio do raciocínio analítico, em que a língua franca deste raciocínio é a matemática.

Não há qualquer dúvida de que os cientistas estão sujeitos, como todas as comunidades humanas, às influências culturais e a regras educativas condicionadas pelas autoridades académicas em cada momento histórico de cada sociedade. Apesar disso, a ciência em geral, aplicada à vida prática por via da tecnologia, ultrapassa sempre as denominadas “torres de marfim académicas”, contribuindo assim para novas descobertas e novos avanços.

Naturalmente, o fazer científico não pode constituir uma ameaça à dignidade humana e à integridade do planeta no seu equilíbrio ecológico. Por isso não faz sentido a ideia de um determinismo dogmático, acrítico, na história do progresso humano. Os seres humanos estão certamente sujeitos às leis da física como qualquer outro ente, mas obviamente, mercê da sua liberdade dentro da margem de manobra que o suposto livre-arbítrio lhe confere, têm o dever de fomentar a sua dignificação.

Mas o seu comportamento não se esgota aí. É, pois, importante o pluralismo teórico como salvaguarda contra o pensamento dogmático no fazer científico. A dimensão histórica das ideias e comportamentos é uma componente essencial da humanidade.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Os vírus são seres vivos?




Por estranho que possa parecer, não há entendimento quanto aos critérios definidores de vida. E um dos exemplos é a discussão que ainda se prende quanto aos vírus serem ou não seres vivos. Mas se os vírus não são entidades vivas, então o que são? Quem define seres vivos como sistemas complexos dinâmicos, que incorporam nutrientes e energia do ambiente para síntese das suas macromoléculas, e, por conseguinte, possuidores de metabolismo próprio, não aceita que vírus sejam seres vivos. Os vírus para se produzirem precisam de parasitar uma célula viva de um outro organismo vivo, e não morto, dado que não têm qualquer atividade metabólica fora da célula hospedeira viva, que para se replicarem precisam dela.

Mas parece um paradoxo que os mesmos cientistas, aqueles que não concordam que os vírus mereçam o estatuto de seres vivos, considerem, por outro lado, que os vírus são sistemas cognitivos. E então como é que vírus, não sendo seres vivos, são entes cognitivos? É que os vírus são formados por ácido nucleico, que é essencial à codificação de informação necessária à reprodução. E codificação de informação tem a ver com cognição. Existem dois tipos de ácidos nucleicos: ADN e ARN. E há vírus só de ARN e vírus só de ADN.

Os vírus são parte de linhagens contínuas, reproduzem-se e evoluem em resposta ao ambiente, através de variabilidade e seleção, como qualquer ser vivo. Uma outra curiosidade é o facto de os vírus não serem cultiváveis in vitro, ou seja, não se desenvolvem em meio de cultura contendo os nutrientes fundamentais à vida. Eles se multiplicam somente em tecidos ou células vivas, logo, os vírus não têm qualquer atividade metabólica quando fora da célula hospedeira. Portanto, sem as células nas quais se replicam, os vírus não existiriam.

Muitos, porém, não concordam com esta perspetiva, e argumentam que, uma vez que os vírus são capazes de reproduzir-se, são organismos vivos; eles dependem da maquinaria metabólica da célula hospedeira, mas até aí todos os seres vivos dependem de interações com outros seres vivos. Assim como plasmídeos e outros elementos genéticos, os vírus se aproveitam da maquinaria celular para se multiplicar. No entanto, diferentemente destes elementos genéticos, os vírus possuem uma forma extracelular por meio da qual o material genético viral é transmitido de um hospedeiro a outro. Em função da existência deste estágio independente das células no ciclo biológico viral, algumas pessoas consideram os vírus como "organismos vivos" ou "formas de vida". Outros ainda levam em consideração a presença maciça de vírus em todos os reinos do mundo natural, sua origem — aparentemente tão antiga como a própria vida —, sua importância na história natural de todos os outros organismos, etc. Conforme já mencionado, diferentes conceitos a respeito do que vem a ser vida formam o cerne dessa discussão.

A origem dos vírus não é totalmente clara, e provavelmente, esta seja tão complexa quanto a origem da vida. Os vírus podem ser derivados de componentes de células de seus próprios hospedeiros que se tornaram autônomos, comportando-se como genes que passaram a existir independentemente da célula. Algumas regiões do genoma de certos vírus assemelham-se a sequências de genes celulares que codificam proteínas funcionais. Esta hipótese é apontada como a mais provável para explicar a origem dos vírus.

Quando os vírus se reproduzem no interior de uma célula, o material genético viral pode sofrer mutações, originando uma grande diversidade genética a partir de um único tipo de vírus. Vírus de RNA, que dependem das enzimas RNA polimerase ou transcriptase reversa para se replicar. Estes apresentam taxas de mutação mais elevadas, quando comparados com os vírus de DNA. Isto ocorre porque tais enzimas não são capazes de corrigir os erros provocados no decorrer da replicação. Vírus de DNA, que usam a maquinaria enzimática celular, apresentam taxas reduzidas de mutações genéticas, pois utilizam enzimas celulares que possuem a habilidade de reparar os erros gerados durante a síntese de DNA. A fidelidade e a frequência dos processos de replicação, as taxas de ocorrência de coinfecções, o modo de transmissão, o tamanho e a estrutura das populações (virais e de hospedeiros) são fatores que influenciam a geração da variabilidade genética viral.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

A Consciência por David Chalmers


Não existe nada mais imediato do que a experiência consciente, mas ao mesmo tempo não existe nada tão difícil de explicar. David Chalmers, um filósofo australiano notabilizado pelos seus estudos na filosofia da mente, ousa teorizar acerca da consciência em contracorrente com a maioria dos filósofos e cientistas que mais se têm dedicado ao assunto, nomeadamente da inteligência artificial e da neurociência.

Chalmers toma a noção de experiência consciente como uma característica tão fundamental para o cosmos, como é a partícula e a onda eletromagnética para a matéria, ou o espaço e o tempo para o universo. Tal como muitas outras entidades fundamentais, a consciência não pode ser explicada em termos de algo mais simples. Apesar de concordar que é uma propriedade emergindo da estrutura física, o que está aqui em causa é a nossa dificuldade compreensiva do fenómeno em si. Se se resumisse a explicar, por exemplo, como é que um organismo está consciente quando está em vigília, então não haveria um problema filosófico da consciência. Embora os problemas empíricos sejam de difícil solução, ainda assim não caracterizam os verdadeiros problemas colocados pela consciência. Para explicar a distinção entre sono e vigília, uma explicação em termos neurofisiológicos, que dê conta da diferença de comportamento do organismo nestes dois estados, é mais do que suficiente.

Os problemas empíricos da consciência constituem apenas os aspetos funcionais da experiência consciente. Isto significa dizer que, em última análise, estes fenómenos podem vir a ser explicados cientificamente. Nada impede que algum dia eles possam vir a ser explicados, seja através de um modelo computacional, seja através da descoberta de mecanismos neurais. A grande dificuldade é o chamado problema da experiência dos qualia, o aspeto subjetivo nele envolvido. Como caracterizar a experiência consciente? O que significa ter uma imagem mental neste momento ou experimentar uma sensação corporal qualquer? O que unifica tudo isto? A experiência emerge de uma base física, mas não sabemos como acontece. Como algo físico pode dar lugar àquelas experiências internas de tristeza, alegria, ansiedade, fúria, compaixão; ou o desfrute de uma refeição com um avermelhado pôr do sol na linha do horizonte, ao som do piano de Chopin com Maria João Pires.

Há a possibilidade de influenciar a matéria através da atividade cerebral? O conceito de superveniência ajuda a desenvencilhar este problema. Uma propriedade mental de um determinado indivíduo é chamada de superveniente se é produzida por um conjunto de propriedades físicas desse mesmo indivíduo. Antes de nos debruçarmos sobre a consciência já sabíamos que as propriedades vitais dependem de uma base física. A vida é superveniente em relação à sua base física; se as propriedades físicas variarem, as propriedades biológicas também variarão. Assim, da mesma forma para a consciência, Chalmers tem sido um fervoroso crítico às explicações funcionais da consciência, por pecarem de um reducionismo que é incompatível com o conceito de superveniência.

Hoje já se fazem ferramentas robóticas para serem controladas diretamente pelo nosso cérebro. A criação de interfaces entre a atividade mental e computadores ou meios mecânicos, tais como robôs, está a dar que falar. E há cientistas que têm incidido a sua atividade na análise das capacidades cognitivas em doentes com pouca ou nenhuma evidência de terem uma mente. Doentes em coma profundo, portanto sem nenhum nível de consciência, sem qualquer resposta que evidencie a posse de consciência, os seus cérebros respondem através de computadores sofisticados, evidenciando capacidades cognitivas críticas.

Crick e Koch desenvolveram a chamada "teoria neurobiológica da consciência". Esta teoria baseia-se na descoberta de uma constância em certas oscilações neuronais que se situam entre 35-75 hertz no córtex cerebral. Crick e Koch desenvolvem a hipótese de que estas oscilações são responsáveis pela produção da consciência, na medida em que elas estão relacionadas com o estado de vigília num número grande de modalidades - visual e olfatória - bem como com a integração de informação. Os autores sugerem que no processo de integração de diferentes segmentos de informação, grupos neuronais oscilam na mesma frequência e fase numa sincronização perfeita. A integração de informação, por sua vez, possibilita a identificação de objetos fora de nós, o que seria um primeiro passo para a explicação da natureza da consciência. A objeção de Chalmers consiste em sustentar que este tipo de teoria é muito sugestivo, mas ela não nos diz nada acerca de como e porque alguns conteúdos mentais se tornam experiências conscientes. A descoberta das oscilações por Crick e Koch sugere que estas seriam os correlatos neurais da experiência. Mas o que se passa das oscilações até à geração de experiências conscientes fica por explicar.

O segundo modelo explicativo criticado por Chalmers é oriundo da psicologia cognitiva. É a teoria do espaço global da consciência, desenvolvida por Baars. De acordo com esta teoria, os conteúdos conscientes estão contidos num espaço global: uma espécie de processador central usado para mediar a comunicação com um conjunto de processadores especializados não-conscientes. Quando estes processadores especializados precisam transmitir informação para o resto do sistema, eles o fazem mandando informação para o espaço global que atua como uma espécie de quadro comunitário, acessível a todos os outros processadores. Contudo, ela não oferece uma teoria da experiência.

As tentativas por parte de teóricos fisicalistas têm sido muitas, mas até ao momento nada satisfatórias. Alguns têm apelado à teoria do caos e dinâmica não-linear. Outros sugerem que a chave está no processamento não-algorítmico. Outros apelam para futuras descobertas da neurofisiologia e outros ainda, para a mecânica quântica. A inspiração desta proposta baseia-se na ideia de que fenómenos quânticos têm características funcionais extremamente interessantes, como, por exemplo, o indeterminismo e a não-localidade. Poder-se-ia então especular que estas propriedades seriam responsáveis por certos processos cognitivos.

Ainda assim, são apenas a explicação de funções envolvidas no raciocínio matemático. Pois mesmo que falemos de processamento não-algorítmico podemos ainda questionar porque este último daria origem à experiência. Assim sendo, a teoria de processamento não-algorítmico não teria nenhuma vantagem aparente. O mesmo é afirmado por Chalmers acerca do processamento não-linear e da dinâmica do caos. Uma aplicação destas teorias pode fornecer uma explicação da dinâmica de funcionamento cognitivo, mas a questão da experiência ainda permanece inexplicada. Podemos sustentar a mesma afirmação acerca de possíveis descobertas neurofisiológicas. Qualquer processo funcional pode ser instanciado sem a participação da experiência o que mostra que a experiência ultrapassa o que pode ser derivado de qualquer teoria física.

Chalmers agarra-se ao princípio do duplo aspeto da teoria da informação. Ele toma como ponto de partida a noção de informação tal como é definida por Shannon que leva em conta o aspeto fenoménico para além do aspeto material. É o aspeto fenoménico que caracteriza o evento que damos pelo nome de experiência consciente. A irredutibilidade da dimensão subjetiva da experiência consciente decorre de esta se apresentar como um dado imediato. Tudo isto que Chalmers defende parece um regresso a Descartes. No entanto, a diferença entre a posição de Chalmers e a posição cartesiana consiste no facto de Descartes ter afirmado, categoricamente, que a vida mental não pode sobrevir no autómato. Chalmers deixa aberta esta possibilidade, ao defender a Inteligência Artificial no sentido forte. Afinal, se mantivermos o primado da primeira pessoa para fundar a nossa teoria da consciência, nada impede que um robô, que faça tudo o que um ser humano pode fazer, tenha experiências conscientes.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

A mente é ou será quântica?


Será que a inteligência artificial pode replicar ou ultrapassar a cognição humana? Ninguém sabe, mas estes acontecimentos já não parecem estar tão distantes das nossas capacidades. Mas o que importa aqui referir é a mente genial. O génio de um Einstein, ou Copérnico, ou Leonardo da Vinci. E todos aqueles génios que tiveram “momentos eureca”, que derrubaram de uma só penada vinda de um inconsciente, ou vá lá, subconsciente, toda uma mundivisão que era tida como certa e definitiva. Como acontecem essas coisas estranhas de um único foco de uma pessoa, ninguém sabe dizer. O fenómeno parece mais vasto, algo de coletivo acontece que faz despertar ideias que aceleram os feitos inovadores dos indivíduos. Provavelmente, Leonardo da Vinci só pode alcançar um novo ponto cimeiro porque, em parte, teve a boa sorte de crescer num momento e num lugar em que o património de conhecimento coletivo aumentou extraordinariamente. Digamos que a Toscana no tempo da Renascença se assemelha ao Vale do Silício da Califórnia no tempo do Digital.

Da mesma forma se poderia falar de Mainz, a cidade natal de Gutenberg. Este inventor da escrita impressa em papel estava no sítio certo para difundir a sua prensa. Vivia numa encruzilhada de dois domínios tão diferentes que dificilmente alguém os poderia juntar: a produção de vinho e a cunhagem de moeda. Mas tal aconteceu porque Gutenberg se lembrou de combinar no mesmo engenho a prensa de esmar as uvas e a capacidade de trabalhar o metal para fazer moldes. E assim surgiu a “imprensa” com as letras individuais feitas em tipos de liga metálica.

Em 2013 a Google anunciou a abertura do seu Laboratório Quântico de Inteligência Artificial em parceria com a NASA. O laboratório comprou um D-Wave Two, que funciona com 512 qubits e que pode resolver certo tipo de problemas três vezes mais depressa do que o mais rápido de todos os computadores clássicos de hoje. Em 2014 a IBM anunciou um investimento a cinco anos de três mil milhões de dólares em investigação e desenvolvimento, para levar ao fabrico de chips em grafeno e ao procedimento quântico.

Mas já na década de 1990 os físicos descobriram o teletransporte quântica, que significa passar uma quantidade minúscula de dados de um local para outro sem estes dados terem de passar através do espaço intermédio. A Agência Nacional de Segurança do Reino Unido suspendeu um protótipo dos seus projetos de encriptação por ter ficado demonstrado que era vulnerável a ataques quânticos.

Ora, os computadores quânticos podem vir a ser decisivos em esclarecer como emerge a consciência, e de uma vez por todas dar razão, ou não, a alguns autores que têm teorizado acerca da natureza quântica de determinados fenómenos mentais, como por exemplo a telepatia, bem como outros níveis de comunicação nos sistemas biológicos.

Uma abordagem prometedora é a imitação da biologia. A perspetiva mais abrangente a emergir até agora do mundo da nanotecnologia é a de que, quanto mais longe formos, mais nebulosa ficará a distinção entre a ciência da física inanimada e a vida. A natureza é afinal o maior engenheiro da escala do nanómetro. Veja-se o caso das bactérias, que tanta consumição nos têm dado, que só têm 200 nanómetros de comprimento.

Jo Cameron - A mulher que não sente a dor



Há pouco tempo foi noticiado o caso de Jo Cameron, uma escocesa, já com 71 anos de idade, que não sentia qualquer tipo de dor. É curioso que também não sabe o que é ter medo, ou ansiedade. Casos como este são extremamente raros.

Trouxe este caso não para falar dos seus aspetos clínicos, mas para abordar a questão do contributo da fenomenologia da senciência para o conhecimento de determinado tipo de realidade que dificilmente seria conhecida pela ciência se não fosse sentida da forma como é sentida. Por conseguinte, o que define o que é a dor enquanto entidade ontológica, não é o seu processo fisiológico, mas a sua superveniência sintomática.

Imaginemos que os neurocientistas, depois lhe examinarem o cérebro com o último grito da tecnologia, registavam os sinais neurológicos que classicamente se correlacionam com a dor, e diziam a Jo Cameron que afinal ela sentia dor, mas não a verbalizava. Ora, seria inapropriado os neurocientistas dizerem que ela tinha dores, alegando que não se encontrava nenhuma anomalia ao nível da sua fisiologia neurológica. Mas na realidade Jo Cameron desconhece a fenomenologia daquilo a que as outras pessoas chamam dor.

O que confere ontologia ao fenómeno ‘dor’ é ser sentida como tal quando a referimos nos termos da nossa linguagem coloquial, e não a presença de um estado cerebral com a qual se possa correlacionar. Apesar de as sensações, ou imagens mentais internas, serem propriedades mentais categorizadas de uma maneira diferente dos processos físicos e fisiológicas com os quais se correlacionam, não implica que tenhamos de nos comprometer com o dualismo clássico. Não faria sentido dizer que quando falamos das nossas dores estamos a falar acerca de processos que ocorrem nos nossos cérebros. As afirmações acerca de sensações e imagens mentais não são redutíveis a afirmações acerca de processos cerebrais. As operações exigidas para verificar afirmações acerca da consciência e afirmações acerca de processos cerebrais são fundamentalmente diferentes.

No campo da fenomenologia em ‘primeira pessoa’, há evidentemente uma independência lógica de expressões, e uma menos clara independência ontológica de entidades. Os termos ‘mente’ e ‘cérebro’ são claramente termos com significados diferentes. Mas o fenómeno mental, em bom rigor, não deve ser separado do cérebro, na medida em que sem cérebro não pode haver mente. Mas há diferenças na forma de abordar o cérebro para explicar um determinado fenómeno mental e o conhecimento do mesmo fenómeno mental por parte da pessoa que o sente ou conhece. Isto implica para o mesmo acontecimento dois conjuntos de observações. As operações exigidas para verificar afirmações acerca da consciência, e as afirmações acerca dos processos cerebrais observados pelos neurocientistas.

As afirmações acerca de dores e sobre a sua aparência, o seu caráter, o seu local, a sua intensidade são afirmações que se referem a eventos e processos que são em certo sentido privados ou internos ao indivíduo de quem são predicados. A questão que alguns filósofos levantam é que pensar-se assim não se evita o dualismo. Mas a aceitação da fenomenologia na primeira pessoa, e ao mesmo tempo dizer que a consciência é um processo que ocorre no cérebro, não implica dualismo. 

Reconhecemos as coisas no nosso ambiente pela sua aparência (som, cheiro, sabor, textura), e podemos descrever por palavras as suas propriedades fenoménicas. Mas aqui há um aspeto importante a esclarecer: a aprendizagem do seu reconhecimento fenomenológico é precedida pela aprendizagem das suas descrições. Na verdade, é só depois de termos aprendido a descrever as coisas no nosso ambiente que podemos aprender a descrever a consciência que temos delas. Não descrevemos a nossa experiência consciente em termos de propriedades fenoménicas. A dor não é um estado cerebral, no sentido de um estado físico-químico do cérebro (ou mesmo de todo o sistema nervoso), mas um tipo inteiramente diferente de estado. A dor, ou o estado de estar com dores, é um estado funcional de todo o organismo.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Discriminação racial é crime

SOS Racismo apresentou queixa no Ministério Público contra a historiadora Fátima Bonifácio. A organização considera que o texto da autora viola o artigo 240 do Código Penal que define o crime de discriminação racial.

Tenho lido interessantes artigos críticos ao lamentável texto de Fátima Bonifácio. Em todo o caso, este tema é daqueles temas que recorrentemente me fazem recuar no tempo na esperança de assim os encarar de uma perspetiva mais lúcida. Mas confesso que me acontece muitas vezes aquilo que resumiria numa metáfora: não é raro, quando recuo no ato de perspetivação, cair para trás porque tropecei nos próprios pés.

Hoje temos que “chamar à pedra” todo aquele que não admita que todos os seres humanos sejam iguais perante a lei e, que, também, têm os mesmos direitos. Dessa forma é preciso estar ciente que todo homem, por natureza, é igual. Mas, como no mundo há uma infinidade de coisas que o compõe além do homem e que a ele atraem, seus desejos podem guiá-lo para a vontade de aquisição dessas diversas coisas.

É aqui que entram em cena, primeiro Hobbes e depois Rousseau. Hobbes defendeu o estabelecimento e a efetivação do estado civil, nas mãos de um único homem ou de um único e reduzido grupo de pessoas. Assim ficaria garantida a paz e a concórdia dos homens. Jean-Jacques Rousseau, tal como Thomas Hobbes, é considerado um contratualista. Isto é, compreendem que a sociedade é uma criação racional do homem e que, portanto, houve um momento em que não existia. A esse momento chamaram “Estado de Natureza”. A natureza do homem, porém, é ponto de divergência entre eles. Um dos elementos que mais os distancia é a noção de natureza humana. Essa divergência é crucial para compreendermos os interessantes momentos que de tempos a tempos acontecem.

Do artigo 240 do Código Penal, respigo esta parte:

[…] Quem por escrito, através de qualquer meio de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género – é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. […]

Deixo aqui, também, este pequeno excerto de Hobbes:

[…] Quem quer que sustente que teria sido melhor continuarmos naquele estado, em que todas as coisas eram permitidas a todos, está a contradizer-se. Pois todo o homem, por necessidade natural, deseja aquilo que para ele é bom; e assim ninguém considera que lhe faça bem uma guerra de todos contra todos, que é a consequência necessária daquele estado. Portanto sucede que, devido ao medo uns dos outros, entendemos que convém nos livrarmos dessa condição, e conseguirmos que alguns consencientes estejam do nosso lado, para que, se tivermos de travar guerra, ela não seja contra todos, nem nos falte algum auxílio.” […]

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A teoria do cérebro fractal


Na sinopse da Amazon, pode ler-se acerca deste livro de Wai H. Tsang publicado em 2016 com o título “Quest”, que traduzo por “Busca”, o seguinte:

Este livro é sobre uma aventura mítica do século XXI e uma odisseia espiritual. Uma novela de Dan Brown da vida real onde a ciência encontra a realidade, o místico encontra o mundano e o esotérico ou o oculto é manifesto. Mais mente dobra do que o filme Matrix e tão estranho quanto qualquer Philip K. Dick tomar. Esta é uma verdadeira história da busca de um homem para entender a natureza da mente, cérebro e consciência, durante o curso do qual ele descobre a natureza do universo e do divino. É a mitologia contemporânea que envolve a busca do Santo Graal moderno da inteligência artificial, que levaria ao Santo Graal do entendimento comum que é encontrado no coração de todas as religiões mundiais, ou seja, Gnosticismo no cristianismo, Kabbalah no judaísmo, Sufismo no Islão, Tantra e Advaita Vedanta no hinduísmo, Budismo Vajrayana e Taoísmo; também o segredo por trás da Maçonaria, Rosacrucianismo, os Templários e os mistérios antigos da Grécia e do Egito.

Wai H. Tsang, um teórico da tecnologia da informação, não um neurocientista, apresenta uma excitante síntese de todas as coisas relacionadas com a mente, cujo caráter é fractal, atravessando todo o espetro da vida, desde os genes até à inteligência artificial. Estas ideias, apesar de já não serem novas, levanta sempre muita polémica nos meios científicos ditos da velha tradição cartesiana. Este livro apresenta, nada menos, uma teoria unificada de um sistema a que chamamos vida – ontogénese da evolução da vida que convoca para discussão a genómica funcional, a neurociência, a inteligência artificial e a filosofia da mente e da consciência.

Segundo a opinião de alguns físicos e cientistas da computação, há tanto imagens do cérebro que mostram a sua natureza fractal, como imagens de outras partes do corpo que mostram o mesmo tipo de natureza. Assim como o código de computador é normalmente fractal. Contudo, os modelos de rede neural de inteligência artificial simples não são fractais, mas as gigantes redes neurais inteligência artificial tendem a ser fractais. Em suma, a realidade física definitivamente exibe fractalidade quase em todo o lado.

Ora, tudo isto já não sendo uma surpresa para os físicos, no âmbito da arquitetura computacional, não significa que o fractal constitua um modelo completo para o cérebro. Aliás, seria surpresa se assim fosse, pois seria difícil acreditar que o cérebro fosse totalmente fractal. Por exemplo, não é provável que o sistema de visão possa ser uma árvore homogénea de fluxo de dados com um único algoritmo repetido para processar dados visuais. Seria difícil compreender que tudo o que acontece ao nível da fenomenologia, ou dos qualia, fosse reduzido ao fractal. Tem de haver muito mais a acontecer. A nova epistemologia, no âmbito da inteligência artificial, é baseada no modelo de rede e não de árvore. E a maioria dos neurocientistas veem redes neurais em vez de árvores. E a maioria dos modelos “bottom-up”, ou empíricos, da psicologia cognitiva, também tendem a ver as associações de ideias em torno da livre associação de redes.

Wai H. Tsang ao perguntar: o que coordena tudo isto? Uma alma? Por que faz parte do trabalho mental uma parte inconsciente, e outra, consciente? Como se vai do neurológico para o fenomenológico, ou seja, para os qualia? O que é a inteligência e porque é que alguns são uns génios tais que pouca gente terá uma inteligência tão sofisticada para os compreender? Ou seja, porque será que a inteligência varia tanto, indo da plena estupidez até à genialidade? – expõe-se às críticas dos cientistas, na medida em que resvala para uma visão mística da consciência global. Porque ele não enfatiza suficientemente a descontinuidade da hierarquia neural. Há uma consistência nas nossas operações mentais que não se encontram na explicação na teoria fractal.

Por conseguinte, é prematuro para que Tsang estenda a sua teoria à espiritualidade. Mas ainda assim, Wai H. Tsang é admirável no seu impulso para tentar dar respostas a todas aquelas perguntas, segundo o princípio de uma hierarquia neural. Ele indica a importância da recursão, também conhecida pela designação de controlo de feedback.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

A consciência em Stuart Hameroff



Hameroff depois de ter feito o estágio de Anestesiologia no Centro Médico de Tucson, Arizona, em 1973, passou toda a sua carreira na Universidade do Arizona, dedicado ao estudo da consciência, especulando que o problema da consciência poderia ser elucidado através da compreensão das operações dos microtúbulos nas células cerebrais, ao nível molecular e supramolecular. Os componentes do citoesqueleto subneuronal poderiam ser as unidades básicas de processamento, em vez dos próprios neurónios. Inicialmente preocupou-se principalmente com o processamento de informações na consciência secundária.

Entretanto, ao tomar cohecimento das hipóteses de Penrose, tratou de estabelecer com ele uma certa aproximação de ideias, apesar de ter conhecimento das críticas de filósofos e neurocientistas amplamente difundidas nos meios científicos publicados. Os dois se reuniram em 1992, e Hameroff sugeriu que os microtúbulos eram um bom local para um mecanismo quântico no cérebro. Penrose estava interessado nas características matemáticas da estrutura do microtubulo, e ao longo dos dois anos seguintes os dois colaboraram na formulação do modelo de consciência. Após esta colaboração, Penrose publicou em 1994 o seu segundo livro à volta da consciência, com o título “Sombras da mente”. Em 2014 a coerência quântica nos microtubulos foi encontrada por Anirban Bandyopadhyay.

A mecânica quântica estabelece que a matéria pode estar em mais de um estado físico ao mesmo tempo - pense, por exemplo, em uma "moeda quântica", que seria capaz de dar cara e coroa ao mesmo tempo. Esse estado "misto", chamado de estado de superposição, é bem conhecido dos físicos, e funciona muito bem em objetos pequenos, como por exemplo os eletrões. Mas sistemas físicos maiores e mais complexos - qubits, por exemplo - parecem estar em um estado físico consistente porque interagem e se "entrelaçam" com outros objetos em seu ambiente. Este entrelaçamento - há quem prefira emaranhamento - faz com que esses objetos mais complexos "decaiam" para um único estado - cara ou coroa, por exemplo. É este processo de quebra da "mágica quântica" que os físicos chamam de decoerência. A decoerência é uma espécie de ruído, ou interferência, atrapalhando as subtis inter-relações entre as partículas quânticas. Quando ela entra em cena, a partícula que estava no ponto A e no ponto B ao mesmo tempo, subitamente passa a estar no ponto A ou no ponto B.

Hameroff era o organizador principal dos encontros da consciência em Tucson. Em 1994 reuniu aproximadamente 300 pessoas interessadas em estudos de consciência, entre os quais David Chalmers, Christof Koch, Roger Penrose, Bernard Baars e Benjamin Libet. Pesquisadores de várias disciplinas juntas levou a várias sinergias úteis, resultando indiretamente, por exemplo, na formação da “Associação para o estudo científico da consciência”, e mais diretamente na criação do “Centro para estudos da consciência na Universidade do Arizona”, sendo Hameroff o diretor. O centro de estudos da consciência organiza reuniões sobre o estudo da consciência a cada dois anos, bem como patrocinando seminários sobre a teoria da consciência.

Numa entrevista Stuart Hameroff discorre sobre vários aspetos controversos sobre o lugar da consciência e o seu papel no universo:
Em relação aos relatos de experiências fora do corpo e de quase morte diz É possível que essas atividades cerebrais do fim da vida possam ser a consciência deixando o corpo, por assim dizer. Certamente, nas experiências fora do corpo, essa possibilidade é levantada. Perguntado se é possível que a consciência possa existir fora do cérebro no caso em que o cérebro parou de ser irrigado e o coração parou e assim por diante – Acho que não podemos descartar isso. Acho que é possível porque no modelo que Penrose e eu desenvolvemos, uma vez que a consciência está acontecendo, parece-nos no nível da geometria do espaço-tempo. Quando o cérebro pára de funcionar, parte dessa informação quântica pode não ser perdida, dissipada ou destruída, mas poderia persistir de alguma forma neste nível fundamental de geometria do espaço-tempo que parece não ser local, mas algo como repetição holográfica.

Eu fui entrevistado algumas vezes recentemente sobre casos de reencarnação onde a evidência era bem convincente. Não há como, por exemplo, uma criança saber detalhes sobre um piloto da Segunda Guerra Mundial que morreu 40 anos antes em todo o mundo, mas sabia coisas que eram chocantemente reveladoras. Claro que há relatos infindáveis ​​desse tipo de coisas. A consciência não se dissipa, mas permanece unida por emaranhamento. Assim, a personalidade, a consciência, a memória e a alma de um indivíduo, se quiserem, podem ser enredadas num sentido quântico e persistir como flutuações na escala de tempo do universo. Isso poderia acontecer. Eu não estou dizendo que sim. Eu não reivindico nenhuma evidência, mas é uma possibilidade. É uma possibilidade científica. Eu acho que poderia ser em algum sentido, mas eu acho que é uma possibilidade lógica e pode acontecer cientificamente. De qualquer modo, não temos as ferramentas científicas para medir a mente ou a consciência gravada nos centros de cérebro.

Perguntado se a consciência é um continuum ou é uma sequência de eventos discretos Eu acho que há muitas evidências de que a consciência é uma sequência de eventos discretos. Parece contínuo, mas como se vemos um filme ou um vídeo parece contínuo, mas na verdade é uma sequência de quadros discretos. Há muito conhecimento sobre o facto de que quando você está animado, digamos, por exemplo num acidente de automóvel, ou na queda de um avião. O mundo exterior desacelera. Michael Jordan, quando perguntado por que ele é tão bom jogador de basquete diz: "Quando estou a jogar a defesa está em câmara lenta." Isso significa que, em estados alterados, quando estamos excitados ou iluminados, o mundo exterior, em seguida, parece mais lento para nós, porque na verdade estamos indo mais rápido e tendo mais momentos conscientes por segundo. Isso significa que o mundo exterior está indo à sua taxa normal, mas parece mais lento. Isso é consistente com muita fenomenologia. Quando você meditar, isso acontece. Eu acho que quando você vai para uma frequência mais alta de momentos conscientes por segundo, o mundo lá fora parece mais lento.