terça-feira, 13 de outubro de 2020

A ambivalência da ação humana como golpe de misericórdia sobre o mundo e sobre si mesmo


Ouvi há dias contar: que uma pessoa com 94 anos de idade, quando a informaram que estava infetada com o vírus da covid-19, ela exclamou: "Bem-haja, foi um golpe de misericórdia, eu já estava a definhar há anos". Afinal, essa pessoa acabaria por morrer, pouco tempo depois, por obra e graça desse famigerado vírus.

Henrique Raposo, na sua crónica de hoje, – um colunista moderado da direita democrática que costuma contracenar no Jornal Expresso com Daniel Oliveira, colunista moderado da esquerda marxista e democrática – interroga-se até onde pode ir parar o futuro das gerações mais jovens pelo sacrifício que lhes é pedido fazer, para protegerem as pessoas dos grupos etários dos 70 aos 90, de serem infetados pelo vírus da covid-19, que em princípio lhes será fatal se contraírem a doença. 


Miguel Torga foi uma pessoa que meditou muito sobre este assunto, tendo num dos seus Contos da Montanha contado a história do "abafador". Acabar com o estado agónico de uma pessoa, já moribunda, é um "ato de misericórdia". Utilizei aqui intencionalmente várias vezes o termo "pessoa". Uma pessoa já em estado de cadáver, não deixa de continuar a ser uma pessoa. E é por isso que a profanação de um cadáver humano é crime e dá cadeia. 

Inúmeros questionamentos se levantam acerca das consequências reais e possíveis das transformações que presenciamos em todos os sentidos por via da tecnologia. Os cientistas são prolíficos em considerações acerca dos avanços da técnica em prol do bem-estar humano. Alguns chegam a falar numa rutura antropológica com a possibilidade de melhorar o corpo dos indivíduos tecnicamente através de próteses. Melhorados, não curados, mas livres de doenças que não ponham em causa o desiderato de dispor de uma vida indefinidamente longa. Qualquer vírus iria esbarrar num pulmão de silicone, num coração mecânico, num cérebro de chipes do Vale de Silício. A busca pela longevidade, apesar se ser algo que não é novo na história da humanidade, só a partir de agora pode estar acessível, para já apenas àqueles magnatas do Vale de Silício, basta eles quererem, e quem sabe, por meia dúzia de patacos daqui a cem anos ao dispor dos nossos bisnetos.

Nos dias atuais a busca por uma vida mais longa tem como principal motor o desenvolvimento tecnocientífico, seu conhecimento e cada vez maior capacidade de manipulação do corpo humano a nível molecular e genético. Contudo, o aumento da expectativa de vida de uma sociedade, tem consequências na Demografia e na Economia, e de caminho na Previdência. Vemo-nos diante de sociedades cada vez mais velhas, com mais reformados e aposentados, que trabalhadores e funcionários. Portanto, com a parcela economicamente ativa da população muito mais reduzida do que a população inativa.

Ora, como diz o povo através dos seus aforismos: a tecnologia é de tal modo prodigiosa que faz com que se vire o feitiço contra o feiticeiro. Só que o caráter do feiticeiro em vez de o fazer recuar, não! É a fuga para a frente com a reformulação do seu modo de pensar em não fazer por menos, mas fazer por mais, que consiste em fazer por vivermos mais tempo como sempre jovens, em vez de mais tempo como sempre velhos. O mercado de trabalho logo se verá.

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