sábado, 31 de outubro de 2020

O que correu mal depois da Idade de Ouro Islâmica?


Miguel Sousa Tavares, na sua crónica de hoje no Expresso, dedica a última parte ao que se está a passar em França com os atentados de inspiração islamista. Não deixando de condenar este terrorismo cobarde sem qualquer hesitação, no entanto, também não deixa de fazer as suas críticas à moda do “Je suis Charlie”. Diz Miguel Sousa Tavares:

«Mas o que o “Charlie Hebdo” faz hoje não é jornalismo nem é um exercício de liberdade de imprensa: é pura provocação gratuita e ofensa às crenças religiosas alheias: é terrorismo jornalístico. Ainda a semana passada trazia uma caricatura do primeiro-ministro turco, Erdogan, sentado numa retrete a defecar. Ora, Erdogan, é um dos tiranos europeus da actualidade, um homem decerto sinistro, que se toma pelo novo sultão otomano e que tem planos perigosos para toda a região do Oriente próximo. Fruto — mais um — da ausência de uma visão de política externa de Donald Trump, ele vem conquistando espaço e influência na região, passo a passo e com intenções que são uma ameaça à segurança da Europa e dos seus vizinhos, e a que só a França tem tido a coragem de se opor. Certamente que ele merece ser atacado e confrontado, mas não como o “Charlie Hebdo” o fez. E, pior ainda: acrescentando à caricatura uma referência ordinária ao Profeta — o que é uma obsessão do jornal. Ora, atacar o Islão desta forma é ofender gratuitamente centenas de milhões de fiéis seguidores do islamismo, cuja fé a França laica respeita, por imperativo constitucional. Mas não apenas isso: o Islão representa também uma civilização e uma cultura que fazem parte da nossa história de povos do Sul e que foi absolutamente extraordinária. Os meninos do “Charlie Hebdo”, que brincam aos jornalistas, não sabem o que fazem nem do que falam: deviam ir visitar o Alhambra, em Granada, para começarem a perceber a imbecilidade das suas caricaturas.»
A Idade de Ouro Islâmica, também conhecida como Renascimento Islâmico, decorre entre os séculos VIII e XIII, embora alguns a estendam até ao século XIV e XV. Durante esse período, não foram apenas os filósofos que brilharam, como Avicena e Averróis, mas também em muitas outras áreas da ciência, medicina, engenharia, arquitetura e diversas áreas da arte. Os filósofos, poetas, artistas, cientistas, comerciantes e artesãos muçulmanos criaram uma cultura única que influenciou as sociedades de todos os continentes. Começou fulgurantemente em meados do século VIII, com a ascensão do poder dos califas abássidas, que transferiram a capital do Império de Damasco para Bagdad.

Muitos livros da Antiguidade Clássica, que de outra forma poderiam ter sido perdidos, foram traduzidos para o árabe. Do árabe essas obras foram, posteriormente, traduzidas para o turco, persa, hebreu e latim. Durante esse período, o mundo islâmico foi beber a cultura do chamado “Mundo Clássico”, desde a China, Índia, Pérsia, Egito até à Grécia, cuja síntese depois se estendeu por todo o Norte de África e se difundiu para a Europa através do Al Andaluz. Por outro lado, as peregrinações a Meca, transformaram-na num centro de intercâmbio de ideias e mercadorias. A influência dos comerciantes muçulmanos no comércio entre a Arábia e a África e Ásia foi muito grande, fazendo com que a civilização islâmica se desenvolvesse sobre uma base mercantil, contrastando com os cristãos, indianos e chineses, que construíram as suas sociedades a partir de uma nobreza cujo poder estava fundado na posse de terras e produção agrícola. 



Al Quaraouiyine, uma universidade de Marrocos, localizada em Fez, tendo sido fundada em 859 como uma mesquita, por Fatima al-Fihri, é, para alguns, considerada a mais antiga universidade do mundo. Todavia, para outros, seria mais correto considerá-la como o equivalente dos seminários cristãos, porque foi efetivamente administrada como uma madraça até 1963, altura em que sofreu uma reorganização moderna. O ensino ainda é ministrado nos métodos tradicionais, em que os alunos se sentam em semicírculo (halga) ao redor de um xeque que os põe a ler certos textos, faz perguntas e explica pontos difíceis para eles. A universidade é frequentada por alunos de todo o Marrocos e África Ocidental muçulmana, com alguns vindo também de outros países. As mulheres foram admitidas pela primeira vez na instituição na década de 1940.

Al-Azhar é outra universidade antiga, esta localizada no Cairo, fundada em 970 pelo califado fatímida. Para além de ministrar o Alcorão e a lei Islâmica, hoje é o principal centro de literatura árabe. Nela também se estuda lógica e gramática, bem como outras disciplinas não religiosas. 




Muitos pensadores muçulmanos da Idade Média seguiam o humanismo, o racionalismo e o discurso científico na busca de conhecimento, significados e valores. Um amplo espectro de escritos islâmicos sobre a poesia amorosa, a história e a teologia filosófica mostram que o pensamento medieval islâmico estava aberto às ideias humanistas do individualismo, secularismo, ceticismo e liberalismo. A liberdade religiosa ajudou a criar redes interculturais atraindo assim intelectuais muçulmanos, cristãos e judeus - desse modo a "plantar a semente" do maior período de criatividade filosófica da Idade Média, entre o século VIII e o século XIII.

Um número significativo de instituições previamente desconhecidas na Idade Antiga, teve a sua origem no mundo medieval islâmico, sendo os exemplos mais notáveis o hospital público (que substituiu os templos de cura), a biblioteca pública, ou o observatório astronómico como instituto de investigação. A partir do século IX Hospitais médicos universitários, do mundo medieval islâmico, entregavam diplomas de medicina a estudantes de medicina islâmica que estavam qualificados para exercer medicina.

Nos tempos de Almamune, as escolas de medicina eram extremamente ativas em Bagdad. O primeiro hospital público gratuito foi aberto em Bagdad durante o califado de Harune Arraxide. Ao desenvolver este sistema, médicos e cirurgiões eram obrigados a dar aulas nas escolas de medicina, e entregavam diplomas àqueles que consideravam qualificados para exercer a medicina. O primeiro hospital no Egito foi aberto em 872, e a partir daí se espalhou por todo o Império, desde o Al-Andaluz até ao Irão.

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