terça-feira, 13 de outubro de 2020

O Universo Concentracionário



O Universo Concentracionário (1945) de David Rousset é o primeiro olhar político sobre os campos de concentração e o impacto físico e mental das condições de vida neles impostas. Desmontando lucidamente o funcionamento da máquina de extermínio e de produção de terror concebida por Hitler, David Rousset centra-se nas molas psicológicas, nos métodos de repressão e nas hierarquias estabelecidas nos campos, pondo em causa, em última instância, a transitoriedade destes locais de horror, tão duradouros como os totalitarismos que eternamente se sucedem.



Como é possível que pessoas de carne e osso cheguem a infligir tamanho sofrimento a outros seres humanos? Quando alguém ouve estes relatos, realmente dando-lhes crédito, e dando-se conta de que semelhantes coisas de facto são possíveis, então se pergunta como algo assim é possível psicologicamente. Perante o conhecimento do que aqui se passou, através de relatos na primeira pessoa, somos tentados a dividir a espécie humana em duas raças: a raça dos retos e honrados; e a raça dos vis sádicos. Ambas as "raças" estão amplamente difundidas. Insinuam-se e infiltram-se em todos os grupos; não há grupo constituído exclusivamente de pessoas direitas nem unicamente de pessoas torpes. Neste sentido não existe grupo de "raça pura", e assim também havia uns e outros sujeitos decentes no corpo da guarda.

Existem entre os guardas de um campo de concentração sádicos por excelência, no sentido estritamente clínico. E esses sádicos são depois escolhido a dedo por outros sádicos para fazerem parte de pelotões de carrascos. Mas a barbárie não fica por aqui, quando é feita a seleção negativa de carrascos e cúmplices de entre a massa dos prisioneiros para ocupar a posição de Capo. O que explica por que justamente os elementos brutais e os indivíduos egoístas conseguiam sobreviver. Além dessa seleção negativa, havia ainda no campo uma seleção positiva das pessoas sádicas.

Grande parte do corpo da guarda estava simplesmente insensibilizada por tantos anos de convivência com o sadismo cada vez maior do campo de concentração. Mas também entre o pessoal do corpo da guarda havia sabotadores que ajudavam compassivamente um ou outro prisioneiro. Um chefe de um campo dera, em segredo, consideráveis somas de dinheiro do próprio bolso para que se pudesse arranjar medicamentos para os reclusos arranjados numa farmácia próxima. Essa história ainda teve um epílogo. Após a libertação, prisioneiros judeus esconderam esse homem da SS das tropas americanas e declararam a seu comandante que o entregariam única e exclusivamente sob a condição de não se tocar num fio de cabelo sequer. O comandante das tropas americanas deu-lhes então a sua palavra de honra como oficial militar, e os prisioneiros judeus lhe apresentaram o ex-comandante do campo. O comandante das tropas reintegrou esse homem da SS em seu cargo de comandante do campo. Em contrapartida, o preposto justamente daquele campo, prisioneiro ele mesmo, foi mais brutal que todos os guardas SS do campo juntos. Batia nos prisioneiros quando, onde e como pudesse.

Daí se deduz uma coisa. Afirmar que alguém fazia parte da guarda do campo de concentração, ou que foi prisioneiro no campo não quer dizer nada. A bondade humana pode ser encontrada em todas as pessoas e ela se acha também naquele grupo que à primeira vista deveria ser sumariamente condenado. As delimitações se sobrepõem. Não podemos simplificar as coisas dizendo: "Os prisioneiros são anjos, e os guardas são demónios".

Contrariando o que de modo geral é sugerido pela vida no campo de concentração, ser guarda ou supervisor e ter uma atitude humana para com os prisioneiros sempre será de certa forma um mérito pessoal e moral. Em contrapartida, é particularmente deplorável a baixeza do prisioneiro que inflige um mal a seus próprios companheiros de dor. É claro que essa falta de caráter é mais dolorosa para os reclusos, da mesma forma como um prisioneiro que é alvo do mais insignificante gesto humano que lhe fizer um integrante da guarda fica profundamente comovido.
«Lembro-me que um dia um capataz (não-prisioneiro) furtivamente me passou um pedaço de pão. Eu sabia que ele só podia tê-lo poupado da sua merenda. O que me derrubou a ponto de derramar lágrimas não foi aquele pedaço de pão em si, e sim o afeto humano que esse homem me ofereceu naquela ocasião, a palavra e o olhar humanos que acompanharam a oferta...»
É num campo de concentração onde o pior e o melhor da natureza humana vem ao de cima. Abre-se um abismo nas profundezas extremas do ser humano. Não deveria surpreender-nos o facto de que essas profundezas punham a descoberto simplesmente a natureza humana, o ser humano como ele é - uma liga do bem e do mal. Um rasgão que perpassa toda a existência humana onde se distingue nitidamente a diferença entre o Bem e o Mal absolutos.

O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.

David Rousset (1912-1997), filósofo e autor francês, foi capturado pela Gestapo em 1943 e deportado para Buchenwald e Neuengamme. Libertado em 1945, redige poucos meses depois O Universo Concentracionário, o primeiro testemunho dos campos de concentração e do sistema que neles operava. No pós-guerra, teve um papel essencial na denúncia dos crimes cometidos pelo regime comunista na União Soviética, tendo sido ostracizado pela Esquerda francesa em 1949, por ter denunciado na imprensa a realidade dos gulags. Dedicou a sua vida à elaboração da mais precisa geografia do mundo concentracionário e é autor de Les Jours de notre mort (1947) e de Sur la guerre (1987), entre outras obras.

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