Pedras de isqueiro

Das várias estórias da minha juventude, quase anedotas, portanto muitas delas apócrifas, que eu ia ouvindo dos adultos nos cafés de bairro, houve duas que me ficaram na memória. Uma contava que no articulado da lei, como referia que não era preciso licença de isqueiro quando usado debaixo de telha, acontecia que alguns brincalhões, só para chatear a polícia, transportavam consigo um pedaço de telha comum, e quando se aproximavam do polícia diziam: “Eu não tenho licença de isqueiro. Mas como vou acender o cigarro com o isqueiro debaixo de telha, o senhor agente não me pode autuar”. E havia uma grande rizada por pessoas que iam a passar nas redondezas. A outra estória foi contada por um meu tio militar. Uma ocasião, foi visto por um polícia a acender um cigarro com isqueiro na rua, junto a um parque. Então, o que o meu tio fez foi livrar-se do isqueiro, atirando-o para o meio de um arbusto. Não teve problemas com o polícia. Mas no dia seguinte, quando voltou ao arbusto para recuperar o isqueiro, ele já tinha ido à vida. 

Ora, chegados a 2020, os fumadores que gostam de fumar na rua, porque bafejar na brisa o fumo do cigarro é muito mais saboroso, continuam a não ter paz interior, porque se depois deitarem a pirisca para a calçada portuguesa, arriscam-se a ter de pagar 25 € na melhor das hipóteses, e 250 € na pior das hipóteses.

Volto aos arquivos para completar a estória da licença de isqueiro. Eram os utilizadores de isqueiro, mais remediados, que tinham um ódio a Salazar, porque os fumadores pobres acendiam os chamados cigarros "cabeça atada" com fósforos. Em detrimento do tradicional fósforo, o isqueiro era um objeto muito apreciado pelos fumadores mais vaidosos e afetados pelo estilo. Do que se lembrou Salazar para dar um subsídio à Fosforeira Nacional? Nada mais nada menos do que uma licença para usar o isqueiro na via pública, instituída pelo Decreto-Lei 28219 de novembro de 1937. Essa licença, um pequeno papel oficial emitido pelo governo, como se vê na foto acima, custava 10 Escudos. E quem andasse com um isqueiro no bolso, ou fosse visto pela polícia a acender um cigarro com isqueiro, na via pública, era abordado pelo polícia de giro pedindo-lhe que mostrasse a licença de isqueiro. O transeunte fumador de isqueiro tinha de trazer na carteira, ou no bolso, o papelinho da licença de isqueiro, porque, caso contrário, era multado em 250 Escudos. Se este fosse funcionário público ou militar, a multa poderia ser elevada para 500 Escudos. O dinheiro recolhido das multas, tal como da venda de licenças, era repassado à Fosforeira Nacional. Sendo que, no caso das multas, 30% era destinado ao autuante. Essa percentagem poderia ser dividida com o delator, caso um desses espécimes fosse bufar ao polícia que tinha visto um fulano com isqueiro. Este decreto, indigente, apenas foi abolido em maio de 1970. Salazar já não era Presidente do Conselho desde 27 de setembro de 1968. Viria a morrer em julho de 1970. 

A pederneira é um sílex pirómaco que produz faísca pelo atrito, ou quando percutido. Foi muito utilizada pelos hominídeos desde o Paleolítico, porque era muito fácil com ela fazer fogo em qualquer clima, em qualquer altitude, até mesmo sob tempestades e neve. É possível fazer uma fogueira em qualquer lugar usando apenas uma pederneira e um pouco de vegetação seca. Existem atualmente pederneiras comercialmente disponíveis feitas de metal rico em magnésio que são muito mais conhecidas e de utilização muito mais económica, eficiente e confiável. É, portanto, considerado um equipamento de sobrevivência em acampamentos. Na Bíblia, a pederneira aparece na narrativa em que Josué fabrica a sua faca como instrumento para circuncidar os filhos de Israel.

O isqueiro foi patenteado em 1823 pelo químico alemão Johann Wolfgang Döbereiner. Os primeiros isqueiros, a serem usados como tal, eram pistolas de pederneira convertidas em isqueiro, e usavam pólvora. Estes isqueiros trabalhavam com a passagem do hidrogénio pelo isqueiro, produzindo dentro do isqueiro uma reação química sobre um catalisador de metal de platina que, por sua vez, fazia com que ele incendiasse e emitisse uma grande quantidade de calor e luz. Na década de 1950, a nafta, que era o combustível utilizado até aí, foi substituída pelo gás butano. O butano permite uma chama controlável, com a vantagem acrescida de não libertar um cheiro tão desagradável. A seguir vieram outros desenvolvimentos inovadores com os isqueiros da marca Ronson, de faísca piezoelétrica, dispensado o uso da roda de pederneira.