sexta-feira, 9 de outubro de 2020

"O que fará Portugal se os Estados Unidos caírem no fascismo?..."


É o título de uma entrevista feita por Mário Lopes para a Ípsilon a Chuck D, líder dos Public Enemy e figura maior do hip-hop:
«"O hip-hop é o termo aplicado à criatividade que emerge daqueles que são destituídos de direitos. Das suas cinzas nasceu essa criatividade, nasceu este movimento, nasceu esta capacidade de confrontar o poder com a verdade”. As palavras são de Chuck D, líder e MC dos Public Enemy. Registamo-las em entrevista com o Ípsilon, numa tarde de Outubro em Portugal, início de manhã nos Estados Unidos. O mote para a conversa foi o novo What You Gonna Do When The Grid Goes Down?, o novo álbum dos Public Enemy, disco que recebemos como inspiradíssimo regresso da banda de Fight the Power. É certo que os Public Enemy nunca foram embora, mas pela sua vitalidade, urgência, produção e composição inspirada, sentimos o 15.º álbum de originais da carreira da banda como um verdadeiro regresso. No tempo certo e com o tom perfeito para os tempos que o recebem. 

Nessa noite, seria noticiado que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contrairia a covid-19, espoletando todo um novo frenesim de informação, contra-informação e especulação, de delírio twitteiro e comentário de todos os níveis — informado e, portanto, cauteloso, mal informado e, portanto, cheio de certezas, conspirativo como é de rigor. Na entrevista, passámos rapidamente por Trump. Demorámo-nos apenas o tempo suficiente para Chuck D suspirar primeiro — “se me perguntasse nos anos 1980 se aquele tipo chegaria a Presidente dos Estados Unidos, diria para ter juízo” —, e para alertar depois: “Também terão que se preocupar em Portugal com o estado da democracia nos Estados Unidos. O que fará Portugal se os Estados Unidos caírem no fascismo, caso Donald Trump continue por mais quatro anos? Infelizmente, não é uma questão apenas americana, é uma ameaça global”. »
Fascismo Americano? Bem, a América já namorou com o fascismo antes. Nos anos 20 do século 20, um certo número de editores de jornais, nos Estados Unidos, estava impressionado com a forma como o fascismo se coordenava com o capitalismo. Dez anos depois, quando os americanos estavam a sofrer a depressão económica e conflitos laborais, alguns líderes americanos olharam para a ordem aparente que Mussolini e Hitler tinham imposto por eles próprios a nações antes caóticas e desesperadas e pensaram: "E se a abordagem do homem forte servir melhor a nação do que o coevo sistema americano desgastado". Nos anos 30 existia um apoio alarmante a Hitler na América, com a proliferação de camisas pardas ao estilo americano. Não faltavam demagogos, e até mesmo as suas próprias celebridades, como o aviador Charles Lindbergh, se deixavam fascinar pelo fascismo.

Em 1939 havia medo o genuíno de que um movimento fascista tivesse finalmente ganhado força em Nova Iorque, quando os hooligans reacionários levaram a cabo lutas de rua antissemitas tendo como modelo as ações da juventude alemã. Outros intelectuais americanos pensaram que era a altura certa para desenvolver uma mística americana fascista e começaram a fazê-lo. No entanto, foi saudável para os americanos da altura imaginar o pior que poderia acontecer se a nação americana escolhesse seguir as seduções do fascismo vindo da Europa. Ainda se estava no tempo em que o sentido das relações fluíam da Europa para a América. Mas depois do que se sabe que aconteceu, o sentido inverteu-se, ao ponto de ainda hoje Chuck D dizer que “não é uma questão americana, mas uma preocupação global”.

Mas, independentemente da escravatura e do racismo da supremacia branca que acompanhou o ideal republicano e democrático dos fundadores, que acabou por desencadear uma guerra civil (1861-1865), os primeiros Presidentes da América eram um exemplo de virtude aos olhos das elites europeias dessa época. Há um preconceito vulgar entre os europeus contra os norte-americanos, que consiste em acusá-los de uma rudeza excessiva, de uma falta de polidez e maneiras. Não seria o caso de John Quincy Adams, um inteligente e humilde americano de notáveis princípios éticos e humanos que depois de vários anos a servir na Europa como embaixador dos Estados Unidos da América, viria a ser o sexto Presidente dos Estados Unidos, de 1825 a 1829.

Em 1799, Berlim, capital da Prússia, recebia o novo embaixador dos Estados Unidos, um jovem americano de nome John Quincy Adams [1767-1848], filho de John Adams, o segundo Presidente dos Estados Unidos da América. No diário que manteve ao longo da vida, o jovem embaixador observou que a sua comitiva teve de aguardar junto às portas de Berlim o tempo suficiente para que um “gentil tenente” fosse elucidado por um dos seus soldados rasos acerca da existência desse bizarro, e para ele desconhecido país chamado “Estados Unidos da América”. Na Prússia, Frederico Guilherme III, que reinou entre 1797 e 1840, entrava nas guerras revolucionárias francesas, embora não assumido devido à Paz de Basileia de 1795. Só entrou em guerra aberta com a França em 1806, para sofrer uma grande derrota das tropas de Napoleão na batalha de Jena-Auestedt. Entretanto, John Quincy Adams já tinha passado por outros países europeus: Haia, 1794; Lisboa, 1797. E ainda esteve na Rússia de 1809 a 1814; e na Inglaterra de 1815 a 1817.

Voltando a 
Chuck D, nascido Carlton Douglas Ridenhour a 1 de agosto de 1960 em Nova Iorque, Chuck D é antigo o suficiente para ler na sua certidão de nascimento a expressão inglesa “negro”, resquício semântico da escravatura abolida no século anterior. É velho o suficiente para ter nas memórias de infância a segregação, a luta pelos direitos civis, os assassinatos de Martin Luther King e de Malcolm X. Pertence a uma geração que, criada por pais ativos nas batalhas dos afro-americanos das décadas de 1960 e 1970, absorveu o nacionalismo revolucionário dos Black Panthers, a par do Pan-Africanismo anti-colonialista, moldando-se, dessa forma, uma visão do mundo onde coexistiam o local e o global e onde o grito libertador de James Brown - “I’m black and I’m proud!” - é canalizado para a consciência histórica, com as suas ramificações no presente, do colonialismo e da escravatura.

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