segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Sonhos e Estados de Dissociação


Estudos empíricos têm demonstrado que existem certas atividades cognitivas superiores que permanecem ativas durante o sono, e que se manifestam através dos sonhos. Certos aspetos da nossa vida pessoal, como por exemplo, a tomada de certas decisões importantes, podem ocorrer depois de terem sido sonhadas durante o sono. Ou até a solução para um problema intrincado que andávamos a arrastar há algum tempo, pode ser encontrada num sonho. 
O processamento linguístico cria uma espécie de narrativa que é memorizada e depois é trazida até à vigília, podendo ser verbalizada depois de acordarmos. Estes aspetos têm-se revelado importantes para deslindar certas perplexidades que têm ocorrido no estudo da fenomenologia da consciência, demonstrando que a consciência não é um bloco monolítico, mas em vez disso uma boca de cena onde desembocam vários palcos com cenários diferentes. A fenomenologia da vigília e do sonho, ao nível do processamento cerebral, não estão assim tão separados. Há processamentos cognitivos complexos durante os sonhos. 

Já nas antigas civilizações  - Suméria, Egito, Mesopotâmia, Grécia - se recorria à interpretação simbólica dos sonhos pelo seu significado metafórico próprio. Exemplos disso eram os diagnósticos dos médicos gregos projetados para a esfera divina, ou as profecias bíblicas. Práticas do culto do sonho como comunicação com o divino também eram rotina em tribos nativo-americanas. E as civilizações orientais também fizeram os seus próprios cultos com registos narrativos dos sonhos.

O estudo dos sonhos tem gente com pergaminhos, como Freud e Jung. Freud tentou aproximar as suas teorias sobre o sono e os sonhos da neurociência. Jung avançou por outros caminhos como foi o caso do inconsciente coletivo, em que nos sonhos se revelavam os arquétipos primordiais da espécie humana. No entanto, dado que na altura o avanço científico ainda não era significativo, Freud teve de se limitar à especulação, que não foi pequena.

Durante o sono temos regularmente experiências alucinatórias geradas internamente pelo cérebro. Essas experiências são não apenas de sonho, mas também de ideação. A ideação durante o sono refere-se a um processo simples e estático de imagens de uma única modalidade. Ao passo que no sonho o processo é mais complexo, como se fossem imagens num filme a desenrolar-se no tempo, com sequências de experiências multimodais. 
O sonho é um estado alterado de consciência, no qual o cérebro constrói um mundo virtual de imagens vívidas em que nós não somos capazes de as identificar como alucinogénias. A natureza virtual e alucinatória do sonho é sempre tida como real ou verdadeira, apesar do seu conteúdo bizarro e repleto de inconsistências. Essa incapacidade de deteção de conteúdo ilógico e bizarro é devido à perda das características cognitivas do self reflexivo, da capacidade de orientação e racionalização lógica. O cérebro entra num registo de funcionamento o qual não nos faculta a capacidade de questionamento. É essa a característica do enredo onírico. 

Ao longo dos estudos no século XX surgiram várias interrogações acerca do proveito que o nosso corpo poderia ter com a função onírica do cérebro. Ou seja, para que é que nos servia sonhar? Começando por uma perspetiva evolucionista, a utilidade dos sonhos residiria na preparação do ser vivo para as reações de sobrevivência de fuga ou luta, conhecida como Teoria da Sentinela. As características do sono REM influenciam os conteúdos dos sonhos, como a disposição e a emoção, assegurando a continuidade da espécie na luta pela sobrevivência. 
É durante a fase REM do sono que o cérebro assume um estado mental mais criativo e associativo, o que leva a um reflexo imagístico e metafórico dos problemas diários com conteúdo emocional e experiencial sobre a forma de imagens. Estas metáforas organizam-se através dos pensamentos e sentimentos em histórias com sequência, assumindo elementos do passado e do presente. 

Hobson (2009) formalizou também uma teoria da proto consciência - um contínuo vigília/sono/vigília - um estado interativo cujo papel seria fundamental para a otimização cognitiva na cooperação interpares na luta pela sobrevivência. Para Hobson seria um processo em desenvolvimento de ascensão para níveis de consciência ainda mais elevados do que os necessários para a vida quotidiana. Esses níveis seriam os níveis da esfera do sagrado, do religioso. Freud teorizava que os sonhos eram uma forma de acesso ao inconsciente. E que estudar o conteúdo dos sonhos poderia ser uma forma de descobrir a causa das neuroses. Para Freud o conteúdo manifesto ou superficial assumia a forma simbólica de um conteúdo latente e escondido no inconsciente. O conteúdo inconsciente, ou “Id”, era o conteúdo dos desejos que não se poderiam satisfazer à vista da sociedade. Para Freud, esses desejos eram predominantemente de cariz sexual. E o sexo era daquelas matérias tabu, que a sociedade punia com severidade. Assim, a sua satisfação tinha escapatória no sonho. E esses desejos assumiam a forma de símbolos para poderem ser aceites pela consciência moral.

Atualmente, tanto os sonhos naturais, como os chamados sonhos lúcidos, têm funcionado como um útil recurso no âmbito de certo tipo de psicoterapia da síndrome pós traumática. O termo sonhos lúcidos foi cunhado pela primeira vez por Van Eden (1913), que relatou um estado de consciência nos sonhos em que existia uma reintegração das funções psíquicas em estado de vigília. Assim, este estado tinha capacidade para direcionar a atenção sob a força da vontade. Na Perturbação do Stress Pós-traumático sabe-se que, na tentativa de evitamento fóbico, os pacientes recorrem a estratégias extraordinárias para evitar pistas internas e externas que despertem a lembrança do conteúdo traumático. O evitamento salva consciência do paciente, porque reviver a experiência do trauma torna-se não apenas insuportável, mas destruidora do sentido do Si (self). São estas situações que conduzem muitas vezes aos processos dissociativos do Eu.  Os sintomas dissociativos são alimento e causa da dissociação estrutural. As dissociações estruturais, que estão interligadas com as fobias, constituem o núcleo do evitamento da lembrança do trauma, para que a identidade pessoal sobreviva. O evitamento fóbico de memórias traumáticas nem sempre é eficaz no sentido de evitar outros sintomas como pensamentos intrusivos, ou entorpecimento e desapego emocional. São perturbações prototípicas da personalidade que ficaram encarceradas na dissociação do self, reforçando ainda mais a ligação entre dissociação e trauma.

Existe uma predominância comprovada de pesadelos após eventos traumáticos, nomeadamente em eventos que causem a síndrome pós traumática. Estes pesadelos são muitas vezes vivências reconstruídas a partir do trauma, podendo prolongar-se durante meses após o evento traumático. O estado emocional de uma pessoa traumatizada está, portanto, repleto de negatividades que invadem o estado vígil da consciência, e o estado alterado de consciência durante o sono espelhado nos sonhos. Southern (2004) verificou através do estudo de um dos seus casos clínicos gravemente traumatizado, que era possível aceder de forma criativa e engenhosa aos seus modos de vinculação e memórias associadas.  

Sonhos lúcidos são definidos simplesmente como sonhos em que a pessoa sabe que está a sonhar. Num estudo de imagiologia Hobson demonstrou que durante um episódio de sonhos lúcidos se verifica um estado hibrido de consciência em que há uma atividade maioritariamente límbica e frontal, semelhante à que acontece durante a vigília. Num sonho lúcido o sonhador tem portanto um acesso consciente ao episódio do sonho, podendo, por vezes, influenciar a narrativa do sonho. Os sonhos lúcidos não devem ser confundidos com o fenómeno do falso acordar, relatado como a experiência de acordar dentro de um sonho. Na verdade a pessoa permanece no sonho, mas pensa que já não está a sonhar. Estas situações podem ocorrer em momentos em que a pessoa está a passar por um forte stress.

Num estudo efetuado por Barret , foram recolhidos relatos de sonhos de pacientes diagnosticados com Perturbação Dissociativa de Identidade
Os resultados mais interessantes deste estudo verificaram a capacidade de alguns pacientes recuperarem memórias de outras identidades e de experienciarem sonhos completamente fora do habitual nessa identidade. Num fenómeno mais raro, dois pacientes integraram duas das suas identidades através de um sonho. Em todo o caso estamos a falar de fenómenos extremamente raros, pelo que os estudos são escaços.

Hilgard, por sua vez, testemunhou que a experiência do sonho poderia em muitos aspetos ser comparada à da Dissociação. Nas suas características, os sonhos, tal como a Dissociação, possuem uma suspensão da função de teste da realidade. A despersonalização consiste na situação em que a pessoa está a observar-se como se de uma terceira pessoa se tratasse. Tecnicamente, esse estado é identificado com o acréscimo de desrealização, amnesia e absorção. A comparação entre a Dissociação e o Sonho passa também pela intensidade das sensações, e até das emoções. As pessoas com tendência para a Dissociação reportam terem dificuldade em distinguir a fronteira que separa o estado de sonho do estado de vigília. Estes casos têm uma maior propensão para a fantasia e para experiências extraordinariamente bizarras.


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