quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Mentes artificiais – uma extensão de mentes naturais




Proposições não demonstráveis, que podiam no entanto ser reconhecidas como verdadeiras sem ambiguidades, já o indicara Gödel. No cérebro humano também há operações que não são algorítmicas. A metáfora do cérebro humano como Máquina de Turing, de cablagem fluida, viria a revelar-se, afinal, perfeitamente estéril.

Os filósofos da Antiguidade, como Aristóteles, já se ocupavam a desbravar esta complexidade. Mas houve quem tivesse caído em dualismos do eu e do corpo, como foi o caso de Platão. A razão era, antes de a Antropologia ter chegado no século XIX, em que o corpo era visto como um simples máquina, desde Descartes, como a alma, acoplada ao corpo. Nesse sentido, o corpo era entendido como fazendo parte do domínio da animalidade. O domínio da humanidade era-lhe dado pela razão.  

No dealbar deste século XXI o algoritmo tornou-se triunfante. Silicon Valley estendeu os seus tentáculos por toda a parte. E dessa maneira gerou um desequilíbrio na vida, entre o cálculo e a biologia. Não é possível ter consciência sem ter afetos. O mundo de Silicon Valley é um mundo exclusivamente cognitivo - processos intelectuais, recolha de dados, manipulação de dados e de raciocínio. Não há espaço para aos sentimentos.

É impossível compreender a humanidade sem prestar atenção aos afetos. Mas continua-se a cair no erro de perspetiva. Ainda hoje impera o dualismo, e os dualistas colocam a questão do seguinte modo: “Como poderia levantar o meu braço sem uma vontade distinta do corpo a ordenar que o faça?” São formulações deste género que tem baralhado as ideias ao longo dos tempos. Ora, se virmos o corpo não como apenas um simples objeto, mas como um organismo complexo, já será mais fácil conceber o corpo em si mesmo, a ter propriedades anímicas, não necessitando que lhe seja acrescentada mais uma alma estranha.

Quando guardamos na memória o que nos aconteceu, ou o que vivenciamos no passado, na nossa experiência de vida, é mesmo esse passado que constrói uma identidade pela memória. Sem memória nunca saberíamos quem somos. E esse passado é justamente o tempo em que aconteceu, e que está ligado ao conhecimento que temos de nós próprios. Apesar de estas constatações parecerem uma trivialidade, no entanto as suas implicações são profundas sobre aquilo que constitui a nossa identidade. É todo este conhecimento ligado à memória que completa o ser unitário que somos.

Quem afirma que com os algoritmos faz um simulacro do cérebro humano, e assim vai conseguir criar um robô a fazer as mesmas coisas que um humano, incluído com os sentimentos, continua a insistir na velha ideia de um cérebro numa tina mergulhado em soro fisiológico, e, em vez de estar ligado a um corpo humano, está ligado a um computador que simula o corpo humano. E a tese é que o cérebro é enganado, funcionando da mesma maneira como se estivesse inserido num corpo humano natural.

Ora, os neurocientistas dizem que não é bem assim, porque o simulacro de um corpo humano não é a mesma coisa que um verdadeiro corpo humano inserido no espaço e no tempo dentro de um determinado contexto histórico. A questão do comportamento humano no que diz respeito aos afetos é excluída das experiências dos algoritmos informáticos. E não é possível compreender a consciência sem compreender a relação entre mente e corpo, que abrange mais animais do que apenas o ser humano. A mente existe e atua dentro do corpo. O sentimento é o processo biológico que permite essa relação. É um processo híbrido. O sentimento que temos do estado do nosso corpo. Ascendemos à consciência através do sentimento. Por exemplo, os vírus e as bactérias têm uma competência intelectual, uma competência evolutiva e reprodutiva, uma competência para resolver problemas. Mas não têm sistema nervoso. E é a ligação entre o sistema nervoso e o corpo que nos possibilita o sentimento. E a partir do sentimento ascendemos à consciência. E aqui acontecem coisas muito boas e muito más. A boa é a capacidade de conquistar o mundo e transformá-lo à nossa medida. A coisa muito má é que podemos sofrer com isso.

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