sábado, 9 de setembro de 2023

Os prolegómenos da Guerra em 1914



A crise europeia desenrolava-se num clima de turbulência interna. A agitação manifestada em greves frequentes assustava o governo de Berlim. Problemas similares levaram britânicos, franceses e russos a temerem pela estabilidade social. Guilherme II, o kaiser alemão, mudava de ideias com frequência. Anotações rabiscadas em documentos oficiais enfatizam a sua incorrigível falta de controlo. Mas, se a política alemã vacilara inicialmente à medida que o mês de julho chegava ao fim, a marcha para a guerra ganhava impulso próprio. Em Berlim, no dia 29 de julho, Falkenhayn tentou acelerar o passo: declarou que o momento de prevaricar tinha acabado; a Alemanha não podia mais esperar que a Rússia se mexesse; precisava mobilizar-se.



O kaiser Guilherme II e seus generais

Ficara evidente que eles estavam arrastando o país para o maior confronto militar da história, com pouca probabilidade de que os britânicos permanecessem neutros. O kaiser, de repente, propôs que os austríacos concordassem em apenas ocupar Belgrado até que as condições do ultimato fossem atendidas. Às 2h55 da madrugada do dia 30, Bethmann telegrafou a Viena recomendando que aceitassem uma mediação diplomática. Mas a mensagem só foi entregue a Berchtold  já a mobilização austríaca havia começado. O telegrama insistia para o império austro-húngaro rejeitar qualquer mediação e desdobrar o exército contra a Rússia, e não contra a Sérvia. 

Guilherme II não tinha força para recuar quando seus generais insistiam em que seu dever era aceitar a decisão pelo combate. Moltke tornou-se a personalidade crucial naquele estágio do jogo da Alemanha. Em Viena e Berlim — e em Paris e São Petersburgo também, embora em menor grau —, existia agora uma fome fatal por um confronto, uma decisão, em vez das repetidas e inconclusivas crises que se arrastavam havia mais de uma década.

Na tarde de 30 de julho soube-se que refugiados franceses estavam a ser impedidos de cruzar a fronteira. Carros e até locomotivas com as mesmas intenções eram detidos. As linhas telefónicas foram cortadas. Na Alemanha, em 30 de julho, corretores do Banco Municipal de Freiburg esvaziaram as suas contas, obrigando a instituição a restringir os saques. As corridas aos bancos formaram-se em quase todos os bancos da Europa. Muitos comerciantes se recusaram a aceitar pagamento em dinheiro vivo, outros fecharam as portas. No Le Havre, garçons avisavam aos fregueses, antes de pedirem o jantar, que dinheiro não seria aceite como pagamento, só ouro.

Enquanto Raymond Recouly escrevia a sua coluna para o Le Figaro, um colega entrou esbaforido em seu escritório e gritou: “Henri de Rothschild está lá em baixo. Jantou com um alto funcionário do Ministério do Exterior, que lhe disse que a guerra é uma questão de dias, talvez até de horas.” Logo depois, uma amiga apareceu e perguntou ao jornalista se deveria cancelar um passeio de carro que pretendia fazer pela Bélgica na semana seguinte. Sem titubear, Recouly respondeu: “Se estiver mesmo decidida a viajar, vá para Biarritz, ou Marselha.”

Na noite do dia 30 de julho, Moltke não quis mais esperar que os russos anunciassem a mobilização. Disse a Bethmann que a Alemanha precisava agir. Os dois decidiram que, independentemente do que o czar fizesse, a Alemanha proclamaria a sua própria mobilização às doze horas do dia seguinte. Poucos minutos antes de findar o prazo, para grande alívio dos alemães, São Petersburgo anunciou a própria decisão. Berlim podia, portanto, ir à guerra, tendo alcançado o vital objetivo diplomático de ver os russos serem os primeiros, depois da Áustria, a desembainharem a espada.

Depois que o kaiser assinou a ordem de mobilização da Alemanha, às cinco da tarde do dia 1 de agosto no Sternensaal de seu palácio berlinense, com o costumeiro instinto de fazer o gesto errado na hora errada, mandou servir champanha em sua suíte. Em toda a parte, rostos radiantes, pessoas trocando apertos de mão nos corredores, cumprimentando umas às outras por terem limpado o caminho. A Rússia agira em conformidade com as esperanças ardentes e livremente manifestadas de Wenninger, Moltke, Falkenhayn e seus camaradas. Enquanto a Alemanha adotava medidas de mobilização em 31 de julho, eles simplesmente expressaram o temor de que a França não quisesse fazer o mesmo, de que não caísse na armadilha. Guilherme tinha desprezo pelos franceses, que considerava “uma raça feminina, não masculina como os anglo-saxões e os teutões”, e isso certamente influenciou a sua incompreensão do que significava travar uma guerra contra eles.

A mobilização da Rússia resolveu um problema político de crucial importância para Moltke. Os social-democratas alemães poderiam muito bem continuar se opondo à guerra, se parecesse que a Alemanha estava tomando a iniciativa. Mas, como se viu, embora o governo já tivesse decidido secretamente marchar, Berlim pôde afirmar que os alemães apenas responderam a uma iniciativa russa, preparando-se para defender o Reich contra a agressão eslava.

Jean Jaurès, o grande líder socialista da França, queixou-se acerbamente a um companheiro no táxi que os conduzia a um restaurante de Paris na noite de 31 de julho, sexta-feira, dizendo que a pressa louca do motorista acabaria matando os dois. “Não”, disse o outro, causticamente, “como todos os taxistas parisienses, ele é um bom socialista e sindicalista”. Não foi a velocidade irresponsável que matou Jaurès naquela noite, mas um fanático insano, que atirou nele pelas costas enquanto jantava. Esse assassinato provocou em toda a Europa uma onda de comoção e horror muito mais emocional do que a reação ao assassinato do Arquiduque Francisco Fernando. Jaurès era reconhecido, não apenas dentro das fronteiras nacionais, como um gigante político.



Jean Jaurès

Raymond Recouly escreveu na noite daquela sexta-feira: “Quando eu saía do jornal com um amigo, mais ou menos à uma da manhã, na esquina da rua Drouot ouvimos o estrépito distante de uma tropa de cavalaria. Os cafés tinham acabado de fechar, mas ainda havia muita gente nas ruas. Os cascos ressoavam cada vez mais alto no empedrado da rua. Como um bando de crianças abrindo caminho, os cavaleiros apareceram. Em uniforme de campanha, capacetes cobertos, gigantescos em suas capas compridas, eles enchiam a rua. Um formidável clamor ergueu-se de todos os lados. A romancista americana Edith Wharton, que morava na França, tinha passado o mês de julho visitando a Espanha e as ilhas Baleares. Ao voltar a Paris em 1 de agosto, foi obrigada a abandonar os planos de seguir para a Inglaterra pelo resto do verão.

Grey, Churchill, Haldane e Asquith queriam que a Grã-Bretanha desse pleno apoio aos outros parceiros da Entente. 
Churchill sugeriu, absurdamente, que a participação não precisava ser muito onerosa. Mas, enquanto a Rússia se mobilizava, a maioria dos britânicos resistia à ideia de que o seu país seguisse o exemplo russo. O Partido Trabalhista examinou a possibilidade de recomendar que os sindicatos convocassem uma greve geral se Asquith pensasse em entrar na guerra. “Toda a Europa se Arma”, dizia uma manchete daquele jornal em 30 de julho, como se descrevesse acontecimentos remotos, seguida, dois dias depois, por: “Europa caminha para o desastre”. Muitos britânicos achavam que a responsabilidade pelo pesadelo que se desenrolava era de Belgrado e São Petersburgo. 

A França contava com a Grã-Bretanha para proteger o canal da Mancha e o mar do Norte, tendo concentrado as suas forças no Mediterrâneo, em conformidade com um pacto secreto assinado nos entendimentos navais anglo-franceses de 1912. Agora a Bélgica passava a ser o foco das atenções britânicas. Às três da tarde de 2 de agosto, o vice-cônsul belga em Colônia chegou ao Ministério do Exterior em Bruxelas para informar que, desde as seis da manhã, vira comboios saírem das estações das cidades do Reno com intervalos de três a quatro minutos, apinhados de tropas. Dirigiam-se não para a França, mas para Aix-la-Chapelle e para a fronteira belga. A Grã-Bretanha era um dos fiadores da neutralidade belga nos termos do tratado europeu de 1839, firmado logo depois que o país se separou da Holanda. No fim do dia 2 de agosto, os alemães comunicaram ao governo britânico a sua intenção de marchar pelas terras do rei Albert, com ou sem consentimento.

Em Londres, alguns ministros ainda se agarravam à crença de que a simples passagem do exército alemão não deveria constituir um casus belli. Mas a maioria do povo finalmente identificava ali uma certeza moral, em meio a um mar de confusões balcânicas e europeias. Um telegrama foi entregue a Grey, que jantava com Haldane na noite de domingo, 2 de agosto. Era o aviso de que a ação alemã contra a Bélgica estava iminente. Os dois seguiram imediatamente de carro para Downing. Quando chegaram pediram a Asquith, que estava com convidados, uma palavrinha em privado. Deram-lhe então a notícia e pediram que lhes concedesse autorização para mobilizar o exército. Haldane ofereceu-se para ser ministro da Guerra interino, uma vez que Asquith obviamente estaria ocupado demais para continuar a desempenhar a função.



Grey e Churchill

Em toda a parte da Grã-Bretanha repartições militares recebiam a ordem de mobilização. Grey, tendo falado sem causar grande impressão sobre interesses britânicos e rotas comerciais, tomou-se de inédita paixão ao descrever a violação da neutralidade belga. Como Grey, em seus 29 anos de atividade parlamentar, ficara conhecido como um homem de compulsiva taciturnidade, sua eloquência, naquela ocasião, produziu efeito notável. “E agora, o que vai acontecer?”, perguntou Churchill, quando ele e Grey saíam juntos da Câmara. Um ultimato seria entregue a Berlim, disse o secretário do Exterior, exigindo a retirada alemã da Bélgica dentro de 24 horas. Mais tarde, mesmo depois de todos os dramas do dia, ainda persistia uma incerteza sobre que medidas militares a Grã-Bretanha adotaria na prática. O general Joffre foi despedir-se formalmente de Poincaré antes de partir para o seu quartel-general, onde, nos meses que se seguiram, exerceria um poder mais absoluto do que o de qualquer outro comandante nacional.

Pouco depois das oito da manhã de 4 de agosto, as primeiras tropas alemãs atravessaram a fronteira belga em Gemmerich, a 50 Km de Liège. Gendarmes belgas fizeram o gesto inútil, mas significativo, de disparar contra eles, antes de debandar. Ao meio-dia, o rei Albert pediu formalmente ajuda à Grã-Bretanha, como fiadora da neutralidade belga. Então, trajando uniforme de campanha, cavalgou à frente de uma pequena procissão de carruagens, numa das quais iam sua mulher e seus filhos, até ao edifício do Parlamento em Bruxelas. Depois de apear e entrar na Câmara, criou um momento de inimitável teatralidade, ao perguntar aos parlamentares: “Senhores, estais inalteravelmente determinados a manter intactas as sagradas dádivas de nossos antepassados?” A uma só voz, eles se levantaram gritando: “Oui! Oui! Oui!”

Em Londres, ao anoitecer, o gabinete se reuniu outra vez, para ser informado de que a Alemanha já se considerava em guerra com a Grã-Bretanha. Depois de um novo debate, eles foram se sentar no salão de Conselho na Downing para esperar o relógio dar as horas. Quando o Big Ben soou a primeira das onze notas, o governo entendeu a má notícia. Vinte minutos depois, o telegrama de guerra foi despachado, em linguagem clara e direta, ao Exército britânico.

Os maiores homens de seus países, as pessoas mais poderosas do mundo, estavam a passar por momentos de perda de brilho e estatura. Perceberam o horror das consequências do caminho que insistiam em tomar. Foi o que aconteceu com o kaiser, com Bethmann e com o czar Nicolau; mas, ao que tudo indica, não com qualquer dos austríacos - Moltke ou Sazonov. Os franceses foram espantosamente fatalistas no tocante à necessidade de apoiar a Rússia, quanto mais não fosse por estarem convencidos — e é quase certo que com razão — de que os exércitos alemães se voltariam contra eles, por serem parceiros da Entente

Os britânicos, à exceção de homens fogosos como Churchill, não estavam tão ansiosos para lutar, mas viram na violação da Bélgica uma justificação para participar. Numa reunião campestre na Inglaterra, o escritor Jerome K. Jerome manifestou "alívio e gratidão". Na noite de 4 de agosto, enquanto multidões inconsequentes urravam e cantavam na frente do palácio de Buckingham, Maurice Baring viu um bêbado em traje a rigor discursar para os passantes do teto de um táxi na praça Trafalgar. Parece um erro supor que a neutralidade em 1914 produziria um resultado feliz para o Império Britânico. 

Os instintos autoritários e aquisitivos dos líderes alemães dificilmente teriam sido apaziguados pelo triunfo no campo de batalha. A França deveria ceder à Alemanha os depósitos de ferro de Briey, Belfort, uma faixa costeira de Dunquerque a Boulogne e a encosta ocidental das montanhas dos Vosges. Suas fortalezas estratégicas seriam demolidas. Assim como aconteceu depois de 1870, seriam cobradas reparações em dinheiro suficientes para garantir que “a França seja incapaz de gastar somas consideráveis em armamento nos próximos dezoito, vinte anos”. Em outras partes, Luxemburgo seria anexado de imediato, a Bélgica e a Holanda seriam transformadas em Estados vassalos, as fronteiras russas encolheriam drasticamente, um vasto império colonial seria criado na África central e uma união económica alemã se estenderia da Escandinávia à Turquia.

A Grã-Bretanha dava muito valor ao status quo e estava comprometida com a paz, porque ainda dava a impressão de ser o macho alfa global. O governo Asquith sentia uma justificada ansiedade com relação à Rússia e às loucuras de que o governo russo era capaz e não tinha o menor desejo de fomentar a belicosidade francesa. Diante disso, sua única atitude racional, na década que precedeu a guerra, e a rigor em julho de 1914, era oferecer aos aliados boa vontade e apoio provisório, cujo escopo e natureza iriam depender necessariamente dos acontecimentos e de circunstâncias exatas. 

O fiasco dessa política é evidente por si só. O caráter hesitante da abordagem britânica em relação aos compromissos europeus, e especialmente os da Entente, bastava para envolver o país no maior conflito da história, mas não para impedir o desastre. Apesar disso, parece difícil conceber qualquer caminho diplomático alternativo para os britânicos antes do conflito que obtivesse apoio político nacional e convencesse a Alemanha de que o risco da guerra era inaceitável.

Os que afirmam que um confronto geral poderia ser evitado mesmo depois de a Áustria declarar guerra à Sérvia e os que responsabilizam a Rússia pelo que veio em seguida dão a entender que a Áustria e o seu fiador alemão deveriam ter tido licença para impor a sua vontade à mão armada nos Bálcãs, na Bélgica e, a rigor, em toda a Europa. Só o ultimato alemão à Bélgica habilitou os partidários da guerra no gabinete britânico a conseguirem um mandato. 

Grey, Churchill e vários colegas seus estavam empenhados em ir à guerra de qualquer maneira, mesmo antes de a questão belga vir à tona. Mas ainda assim é improvável que pudessem impor o seu ponto de vista sem a violação da neutralidade belga. Não parece ignóbil, ou leviano, que grande parte da Câmara dos Comuns e do povo britânico se apegasse a isso como um justo casus belli, enquanto se recusava a ir à guerra para apoiar a Sérvia ou meramente para cumprir o mal definido compromisso da Grã-Bretanha com a Tríplice Entente. Mesmo que a Alemanha seja absolvida da acusação de querer uma guerra europeia geral em 1914, ainda parece que ela deva arcar com a maior parte da culpa, porque tinha o poder de evitá-la e não o exerceu.

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