sábado, 23 de setembro de 2023

Emaranhamento quântico



Será que a consciência é algo que a Física não tenha nada a dizer? Ou será que a questão da consciência passa pela sua implementação prática para ser compreendida? Até que um modelo seja desenvolvido por engenharia reversa, os físicos da conceção mecanicista atestam que a consciência não se qualificará para ser estudada pelos físicos. Mas a física quântica nega essa negativa. Ela insinua algo além do que habitualmente consideramos física, além do que habitualmente consideramos o “mundo físico”.

Desde o teorema de Bell que o elemento humano é uma das componentes fundamentais da física. 
O teorema de Bell é o legado mais importante do físico teórico John Stewart Bell. Publicado em 1964, estabelece a distinção absoluta entre a mecânica quântica e a mecânica clássica. Ou seja, não existe regime de variáveis ocultas locais que possam reproduzir todos os resultados da mecânica quântica. Na física clássica, a interferência humana, e o da sua livre escolha, era problema que não se colocava. Mas agora, a misteriosa mecânica quântica, infinitamente pequena, estende-se a objetos maiores, e nos mostra o estranho mundo em que estamos metidos.

Cientistas do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Estados Unidos exibiram em 2008 o primeiro dispositivo num chip que podia ser razoavelmente descrito como um “computador quântico”. Iões aprisionados num circuito associado num computador podem executar pelo menos 160 operações diferentes, embora com uma acuidade de apenas 94%. Para qualquer uso prático, a precisão teria de ser enormemente melhorada, e um computador quântico prático teria de ligar muitos desses dispositivos por emaranhamento quântico.

Em 2011, um artigo na revista Nature reportou um esforço cooperativo de cientistas de cinco laboratórios diferentes para mostrar interferência com moléculas orgânicas grandes. A maior delas continha 430 átomos. Isso estabeleceu um novo recorde em colocar objetos individuais em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. Além disso, contrariando a ideia inicial relacionada com a temperatura, o facto de moléculas terem temperaturas internas de várias centenas de graus centígrados demonstrou que as funções de onda posicionais não sofreram decoerência quântica quando acopladas com movimentos térmicos internos. 

Análises de pesquisadores da Universidade de Genebra e da Universidade de Bristol mostraram em 2009 que experiências ao nível quântico, que estabeleciam uma violação da desigualdade de Bell, eram possíveis com olhos humanos como detetores num local. Como o olho humano não pode detetar confiavelmente um fotão isolado, um dos dois fotões gémeos é amplificado, clonando-o por emissão estimulada. O que se alega aqui não é somente que pode haver emaranhamento entre dois sistemas microscópicos, mas também que pode haver emaranhamento entre um objeto microscópico e um sistema humano macroscópico. Ainda que seja assim, pela perda de fotões para o ambiente, o que seria de se esperar era que o emaranhamento se desmanchasse. 

Ao nível quântico, dois objetos quaisquer, que interajam, tornam-se emaranhados. Depois disso, o que quer que aconteça com um deles influencia instantaneamente o outro, não importa quão distantes estejam um do outro. Isso tem sido exaustivamente demonstrado com pares de partículas microscópicas, e até mesmo com dispositivos quase macroscópicos. Objetos emaranhados é algo complexo. Há uma conectividade que é universal. Isso é, obviamente, uma asserção que vai muito além de qualquer coisa demonstrável. O emaranhamento complexo seria essencialmente emaranhamento nenhum. No entanto, estudos recentes sugerem que o emaranhamento persiste por mais tempo do que os cálculos convencionais haviam demonstrado. Os eletrões permanecem emaranhados de dez a cem vezes mais tempo que o esperado. Parece que ninguém dava importância a uma molécula magneticamente sensível que as aves possuem e usam como bússola. 

A maioria dos físicos aceita tacitamente que a mecânica quântica, em última análise, esbarra no problema da observação consciente. No entanto, os físicos enfrentam o problema partindo do princípio de que eles devem lidar com o mundo físico como sendo independente do observador humano. Não há nada que conheçamos mais intimamente que a experiência consciente. Todavia, é muito difícil de explicar. É um hiato explicativo com o qual Kant já se havia deparado, tendo-o remetido para um conceito muito particular e a que lhe deu o título de "Transcendental". 

Na conversa corrente, “consciência” tem a ver com a nossa perceção do mundo de livre vontade. Não se pode saber como é "ser consciente" de outro modo sem ser através do nosso sentido de presença na primeira pessoa. No entanto, sabe-se o que é quando observamos objetivamente alguém consciente na terceira pessoa. Seja como for, as duas perspetivas são diferentes uma da outra. Sendo que na perspetiva da terceira pessoa é aquela que é relacionada com a experiência por parte de um observador. Será que a observação da consciência através de uma experiência física poderá ser feita por um robô? É claro que ainda se pode manter em aberto o que se entende por “observação”.

O enigma quântico surge a partir da premissa de que experimentadores podem escolher livremente entre dois tipos de experiência. No entanto, escolher a esquerda, ou a direita, gera resultados contraditórios. Assumimos que os experimentadores têm “livre-arbítrio” para fazer tal escolha. Mas em termos quânticos o livre-arbítrio dos experimentadores é negado. Isto é, as escolhas são sempre determinadas pela eletroquímica dos seus cérebros. Para fugir desse enigma, umas vezes nega-se o livre-arbítrio, outras vezes não, seguindo o princípio da indeterminação de Gödel e do gato de Schrodinger, a negação da determinação contrafactual. Essa negação deve incluir a premissa de um mundo que conspira jogando aos dados.

As discussões atuais sobre o livre-arbítrio são mal colocadas quando se concentram mais estreitamente em questionar se as escolhas que fazemos são de certo modo predeterminadas pela eletroquímica do nosso cérebro. Essa questão do livre-arbítrio transcende o enigma quântico. Mas o “livre-arbítrio” aparece constantemente em conexão com o enigma quântico. Há as causas últimas e primeiras. E há as causas intermediárias. O livre-arbítrio é do domínio das causas intermediárias. Há margem de manobra para além da genética e do meio ambiente que é contingente e contextual. O livre-arbítrio também é contingente e contextual.

Para estudar cientificamente o livre-arbítrio não basta estudar apenas o cérebro, porque a maior parte dos seus efeitos precisam de um corpo de carne, de sangue, de água e até de ar. É neste sentido que podemos dizer que a consciência não está no cérebro, ou não se observa no cérebro, embora seja gerada no cérebro, mas observa-se numa pessoa de corpo inteiro. O livre-arbítrio, tal como a consciência, não se encaixa imediatamente na realidade do cérebro. É como se fosse um fantasma à espreita em qualquer lugar do corpo. E é por parecer um fantasma que a maioria dos físicos dizem que a consciência não passa de uma ilusão. Mas, embora não possa demonstrar a outra pessoa como é a sensação de dor que estou a sentir agora numa perna cruzada, essa pessoa sabe que a dor pode existir, e com toda a certeza não é destituída de sentido.

Embora seja difícil encaixar o livre-arbítrio numa visão de mundo científica, nós mesmos não podemos duvidar dele seriamente. Nós, com o nosso senso comum, ficamos perplexos com a resistência mostrada pelos físicos em relação à realidade óbvia do livre-arbítrio. Negar o livre-arbítrio ficando-se no pressuposto da eletroquímica do cérebro, não deixa de ser, ou arbitrário, ou aleatório. Irá dar ao mesmo, porque se entra num ciclo vicioso. A teoria quântica, ao contrário da física clássica, não é uma teoria do mundo físico independente das livres decisões tomadas pelo experimentador, ou seja, pelo seu livre-arbítrio. Recordando o enunciado definidor da interpretação de Copenhague, feito por Pascual Jordan, as observações não só perturbam o que deve ser medido, como as produzem. Aqui “observação” é um termo aberto, mas a criação da realidade física por qualquer tipo de observação é difícil de aceitar. No entanto, não é uma noção nova.

O mundo tem um conteúdo, tem coisas, tem substância. Chama-se fenomenologia à forma como nós acedemos ao mundo, que é o seu aspeto. Mas, para depois darmos significado ao aspeto ou à aparência que as coisas se nos apresentam, precisamos da linguagem. Esse é o processo de consciencialização do mundo físico exterior e do mundo subjetivo interior. Há verdades, mas não verdades absolutas ao nível das nossas convicções. A realidade, que tem a ver com a verdade, é uma dimensão do mundo que não pode ser fundada somente na subjetividade a priori do sujeito; mas também não pode ser apenas a fundação das coisas no mundo tal como elas são. Há sempre alguma incompletude em todo o conhecimento humano. No processo cognitivo da ciência física é o mundo que tem de se adaptar à matemática produzida pelo nosso cérebro. Mas, na medida em que a matemática é uma criação humana, devíamos acreditar no oposto, sermos nós a ter de nos adaptar ao mundo em si, o mundo real.

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