sábado, 16 de setembro de 2023

Shangri-La e a relação com o povo nativo



A lenda Uluayek do povo yali de Uwambo do Vale de Baliem, na Papua Ocidental, falava sobre os espíritos que viviam no céu acima do vale e de um cipó que pendia do céu até ao chão. Em tempos remotos, segundo a lenda, as pessoas do vale e os espíritos do céu visitavam-se uns aos outros, subindo e descendo pelo cipó. Alguns dos nativos diziam que os espíritos do céu tinham cabelo longo, pele branca e olhos claros. Alguns diziam que tinham braços cabeludos, que mantinham cobertos. Ninguém sabia ao certo, pois os espíritos roubavam porcos e mulheres, e o povo do vale cortou o cipó, interrompendo o contacto. A lenda afirmava que um dia os espíritos do céu arranjariam um novo cipó e desceriam até ao chão novamente. O retorno dos espíritos anunciaria o Fim dos Tempos.





Walter, o capitão paraquedista ao comando da equipa de resgate dos sobreviventes de Shangri-La, e os seus camaradas, a dada altura das suas prospecções da área à volta do acampamento-base, por vezes deparava-se com um ou outro cadáver de guerreiro indígena. Um dos guerreiros fora atingido no coração por uma flecha. Outro morrera com uma lança atravessada na cabeça. Separadamente, Walter e McCollom encontraram o esqueleto que devia ter pertencido a um homem com pelo menos 1,80 metro de altura. Como as mulheres yali se abstinham de sexo por até cinco anos após dar à luz, o índice de natalidade era baixo, pelo que o número de crianças não era abundante.

O sargento Baylon tratou uma infeção no seio de uma mulher. Quando a infecção começou a melhorar dias após o tratamento, Baylon passou a ser o favorito da tribo. O sentimento era mútuo. Quando uma mulher local entrou em trabalho de parto, os nativos foram a correr procurar Baylon. Mas o capitão proibiu que ele fosse. Temia que, se alguma coisa acontecesse com a mulher ou com a criança, os nativos se voltassem contra eles. Antes que os outros companheiros retornassem ao vale, Baylon visitava as aldeias sozinho, ou com o sargento Velasco, que passara a conhecer razoavelmente a língua nativa. Certo dia, Walter e os três sobreviventes quiseram acompanhar o sargento em uma de suas visitas. Mas, quando se dirigiam à aldeia mais próxima, um ancião lhes bloqueou o caminho. Ele conhecia os sargentos Velasco e Baylon e gostava deles, e não havia nenhuma má vontade ou ameaça na atitude do chefe. Mas deixou bem claro que não queria a sua aldeia invadida o tempo todo.

Quando Walter chegou ao acampamento-base com os sobreviventes, ficou feliz ao ver os habitantes de Koloima. Todos os nativos apreciaram a ajuda, assim como Walter apreciara a deles. Mas, três dias depois, Walter sentiu uma tensão no ar sugestiva de hostilidade. A mudança foi subtil; menos sorrisos e menos visitantes em torno do acampamento. O acampamento-base estava no meio de uma terra de ninguém que os nativos costumavam usar como campo de batalha. Enquanto os visitantes estivessem ali, os danis de Koloima não poderiam satisfazer o seu desejo de confrontar os inimigos em combate aberto. Além disso, alguns líderes locais não gostavam do modo como Walter e seus homens distribuíam conchas, disparavam com suas armas assustadoras e perambulavam por onde quisessem. Começou a aperceber-se de que os danis de Koloima andavam a tramar algo em seus próprios termos para que os intrusos partissem. Durante o dia, o chefe deles visitava o acampamento, onde Walter o fotografava. Parado calmamente, embora sem sorrir, deixava-se fotografar, mas acompanhado pelos seus seguidores. À noite enviava um mensageiro a seu inimigo permanente, um frequente adversário no campo de batalha. O território vizinho era controlado por essa tribo inimiga, cujo chefe se chamava Kurelu.

Margaret embarcara no Gremlin Special esperando ver criaturas estranhas que ela acreditava serem “primitivas”. Durante o tempo que passou na clareira da floresta, foi mudando a pouco e pouco de opinião.  E verificou uma grande mudança a partir do momento em que se mudou para o acampamento base. Nunca mais, em seu diário, ela descreveu os nativos como infantis, por exemplo. E, depois que conheceu “a rainha”, a opinião de Margaret deu um salto extraordinário. Sentimentos de superioridade esfumaram-se. Em seu lugar surgiu o respeito. A mulher nativa convidou Margaret a visitar a longa choça que as mulheres da aldeia usavam como cozinha. Ela serviu batatas-doces a Margaret. A mulher nativa tentou persuadi-la a vestir o que Margaret chamou de tanga de raminhos trançados que ela e suas damas de honra usavam. 
Após alguns dias, a mulher nativa ficava tão ansiosa pela visita de Margaret que a encontrava na metade do caminho entre o acampamento e a aldeia. Quando Margaret com medo de cair pedia ajuda à ágil mulher, ela entendia sempre o que Margaret queria, segurando-lhe a mão para a apoiar durante o caminho.

Os nativos de Shangri-La raramente aceitavam presentes dos estrangeiros. Margaret dizia que eles eram espertos demais para permitir que algum visitante modificasse a vida que levavam há séculos. Enquanto isso, Walter tentava incessantemente trocar facas e outras comodidades modernas por um colar de pequenas conchas penduradas numa tira de couro cru que um dos nativos trazia amarrada ao pescoço. Mas nunca conseguia nada. O colar pertencia a um homem chamado Keaugi Walela. Nos últimos anos, Keaugi se tornara um chefe com dez esposas. Quando ele morreu, seu filho, Dagadigik, herdou o colar. Certo dia, durante uma batalha, o colar caiu do pescoço de Dagadigik. O colar se tornou, então, um espólio de guerra, um “pássaro morto”.

A primeira ameaça à amizade de Margaret com a mulher nativa surgiu um dia em que ela estava na aldeia e, inadvertidamente, puxou um pente e o passou pelos cabelos. A rainha ficou atónita. Ela nunca tinha visto um pente, nem ninguém, penteando os cabelos. Os outros nativos ficaram igualmente encantados com o novo brinquedo. Metade da vila se juntou ao redor de Margaret. Penteou cabelos até ficar com o braço cansado. Margaret estendeu o pente à sua amiga. Mas, em vez de usá-lo em si mesma, a mulher penteou cuidadosamente os cabelos de Margaret para cima do seu rosto. Margaret sorriu quando a mulher completou o penteado. Depois penteou os cabelos para trás, como costumava usá-los. A rainha pegou o pente e, de novo, penteou os cabelos para cima do rosto de Margaret. Mas o marido da mulher se envolveu no assunto e a coisa deixou de ser divertida. “O sargento Velasco estava para interromper aquele tratamento de beleza quando o chefe decidiu entrar no jogo”, escreveu Margaret. “Ele começou a passar as mãos pelos meus cabelos. Embora fosse um gesto de boa vontade, eu me encolhi por dentro. Mas não queria ofendê-lo nem a seus seguidores. Portanto, fiquei sentada imóvel, dizendo ‘hã, hã’ a intervalos que julgava apropriados durante a conversa.” Velasco ficou de olho na amiga de Margaret, que tinha começado a falar no que parecia um tom agitado. Ele sentiu que ela estava ficando com ciúme.

Margaret ficou preocupada, pensando que a sua amizade com a rainha poderia ter chegado ao fim. Mas, em sua visita seguinte à aldeia, a mulher recuperara seus modos graciosos. E, pela gesticulação, parecia estar querendo que Margaret se mudasse para a choça dela. Em outra visita à aldeia, que incluiu Decker e McCollom, diversas mulheres se aproximaram de Margaret e fizeram sinal para que ela estendesse a mão direita. “Quando fiz isso, uma das mulheres ergueu uma machadinha de pedra”, escreveu Margaret. “Fiquei tão espantada com esse primeiro sinal de violência por parte dos nativos que mal podia me mexer”. Ao perceber o que estava acontecendo, McCollom empurrou Margaret para o lado. Mais tarde, ele tentou explicar o que acreditava ter acontecido: Quando uma mulher jovem está em idade de se casar, eles cortam as pontas de todos os dedos da mão direita dela. McCollom notara que quase todas as mulheres da aldeia que haviam atingido a maturidade sexual haviam perdido vários dedos. Ele presumiu que havia uma relação entre ambas as coisas.

Antes de começar a descer o trilho, Margaret procurou Wimayuk Wandik, o homem a quem chamava de Pete. E o encontrou chorando pela partida deles. Sem que Margaret e os outros soubessem, os nativos lhes haviam dado um presente de despedida. Quando Wimayuk e seus homens perceberam que os espíritos pretendiam deixar a clareira e rumar para o vale, o povo de Uwambo entrou em contacto com os seus aliados. E estes declararam outra maga — o salvo-conduto — ao longo da rota a ser seguida. Ao se alinhar na fila para iniciar a marcha, Margaret olhou para o acampamento por cima do ombro. Pela última vez contemplou a plantação de batata-doce que fora a sua salvação após o desastre; o lugar onde ela, McCollom e Decker foram avistados pelo capitão Baker em seu B-17; o “hospital” na selva, onde a sua gangrena fora tratada com sucesso e suas pernas foram salvas por Bulatao e Ramirez. Sua última visão do lugar: a grande tenda em forma de pirâmide, com a bandeira norte-americana drapejando acima dela.

Naquele primeiro dia, após três horas de caminhada, eles pararam e montaram acampamento para passar a noite. Com a pausa antecipada, os paramédicos tiveram tempo para trocar os curativos dos ferimentos de Margaret e Decker. E aquilo também evitou que o grupo tivesse que enfrentar as chuvas noturnas. Logo um novo acampamento surgiu: Margaret obteve uma tenda só para ela. McCollom e Decker dividiram outra. Alguns paraquedistas se enfiaram em uma terceira. E o restante pendurou redes nas árvores. Na manhã seguinte, eles levantaram cedo e, antes das oito horas, estavam de volta ao trilho. Walter descreveu a rota do dia como bastante acidentada e íngreme, tanto para cima quanto para baixo. Naquele dia diversos nativos de uma aldeia no caminho se mostraram dispostos a carregar a roupa de cama e os sacos de dormir dos forasteiros. E, quando o grupo montou acampamento, no meio da tarde, Walter havia atingido o seu objetivo o de avançar 16 Km por dia. “Nosso maior problema é água”, escreveu ele em seu diário. “Há muita água nesta selva, mas só Deus sabe onde.”

Nos meses que se seguiram à partida dos sobreviventes, o povo de Uwambo retornou aos ritmos e rotinas que haviam seguido durante incontáveis séculos. Criaram porcos, plantaram batatas-doces, cuidaram de suas aldeias e suas famílias, e reiniciaram as guerras contra os seus inimigos. Com uma diferença: quando contava a seus filhos a lenda de Uluayek, eles agora incluíam a história de Yugwe, Meakale, Mumu, Mua, Pingkong, Babikama e outros espíritos que vieram do céu. E, tal como a lenda profetizara, o retorno dos espíritos assinalou realmente o fim da vida que eles conheciam.
Ao contrário dos nativos que moravam próximo do acampamento da selva, os nativos do vale nada sabiam sobre o desastre; a notícia de um acontecimento a tantos quilómetros de distância teria de passar pelo território de inimigos, com quem a comunicação era feita mediante a ponta de uma lança. Assim, os nativos do vale presumiram que Margaret e os outros visitantes haviam escapado de algum acontecimento terrível no mundo que habitavam. 

As pessoas de Koloima estavam tão certas disso que o nome que davam a Margaret era Nuarauke, que significava fugitiva. Pela lógica e experiência deles, qualquer tragédia que tivesse levado Margaret a procurar refúgio no vale teria de estar relacionada com algum acontecimento que tenha levado à morte de alguém. Para honrar e apaziguar os mortos, eles concluíram que Margaret gostaria de sacrificar os seus dedos. Quando ela se recusou, os nativos não ficaram ofendidos; qualquer represália contra Margaret não viria deles, mas do mundo espiritual. Margaret também entendera mal quando achou que o líder nativo queria tê-la como esposa. Pelo contrário, os nativos achavam que os sobreviventes do sexo masculino e os paraquedistas queriam que Margaret desposasse um líder nativo chamado Sikman Piri.




Quase nada mudara durante gerações no vale, onde as pessoas viviam, plantavam e guerreavam como seus avós faziam. Uma das exceções envolvia o estilo dos canudos de pénis e das saias trançadas das mulheres. Após a cerimónia de choro, os homens de Koloima pararam de armazenar tabaco nas pontas dos canudos de pénis, revertendo às práticas de seus antepassados. As mulheres nativas mudaram o modo de trançar suas saias de palha, adotando um estilo mais tradicional. As mudanças podem parecer inconsequentes para um observador de fora, mas não para um dani. Incapazes de antever como seria a nova era, nem as tremendas transformações que ela acarretaria em suas vidas, o povo de Koloima efetuou as mudanças mais drásticas que puderam imaginar — uma volta aos velhos estilos de canudos e saias.



Uma nova era irrompeu no vale após o retorno dos espíritos do céu. Drásticas mudanças ocorreram nas décadas seguintes, mas se foram benéficas ou prejudiciais é assunto controverso. Primeiro apareceram os missionários. Depois apareceram as tropas indonésias, que chegaram em grande número nas décadas de 1960 e 1970, depois que a Holanda renunciou ao controlo colonial sobre a metade ocidental da Nova Guiné. A Nova Guiné Holandesa é agora uma província indonésia chamada Papua. A metade oriental da ilha da Nova Guiné é um país separado, chamado, Papua-Nova Guiné, o que às vezes dá margem a confusões. Hollandia foi rebatizada de Jayapura. Shangri-La é agora o Vale do Baliem.

Uma aldeia próxima a Wamena ganha dinheiro exibindo ancestrais mumificados para os poucos turistas que obtêm passes especiais do governo para visitar o vale. Quase todos os homens e mulheres mais jovens abandonaram os canudos de pénis e os saiotes de palha. Agora usam shorts que encontram no lixo e camisetas com imagens que nada lhes dizem. Em fevereiro de 2010, um jovem chegou a sua remota aldeia usando uma camiseta com uma foto de Barack Obama. Quando lhe perguntaram se ele conhecia o homem retratado em sua camiseta, ele sorriu e disse que não. Velhos nativos usando canudos de pénis percorrem as ruas de Wamena vivendo das ofertas dos turistas. Alguns cobram uma pequena quantia para posar para fotos e inserem presas de javalis em buracos abertos no septo nasal para parecerem ferozes. 




Famílias ainda vivem em choças cobertas de palha, plantam batata-doce e outros vegetais, e ainda contam a sua fortuna pelo número de porcos que possuem. Madeireiras despojaram algumas das encostas próximas a Wamena de suas árvores, mas a serra de Ogi, onde caiu o Gremlin Special, permanece intacta. Grandes pedaços de destroços ainda podem ser encontrados por qualquer pessoa disposta a empreender uma árdua jornada montanha acima, usando troncos cobertos de musgo como pontes, abrindo caminho entre densos cipoais e tomando cuidado para evitar qualquer passo em falso que possa acarretar uma queda num precipício. Botões, fivelas e pedaços de ossos podem ser encontrados na área lamacenta onde repousam os destroços. 


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