segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A ascensão e queda do Terceiro Reich

 



William Lawrence Shirer [1904-1993] foi um jornalista e escritor americano que cobriu diretamente o início da II Guerra Mundial. Este seu livro foi publicado em 1960. É 
um completo relato que vai do surgimento de Hitler na vida pública alemã até ao fim da Segunda Guerra em maio de 1945. Em 1969 publica A Queda da França – O Colapso da Terceira República com a mesma metodologia deste livro, onde relata os acontecimentos políticos da França de 1870 até 1940, com o armistício que marca a derrota da França. Publicou diversos outros livros sobre a Segunda Guerra, sobre a política europeia, e sobre Gandhi, que conheceu pessoalmente. 

Pelos fins de 1937, devido à mudança de função do jornal para a reportagem de rádio, transferiu-se de Berlim para Viena, que ele conhecera como jovem correspondente uma década antes. Apesar de ter passado na Alemanha a maior parte do período dos três primeiros anos cruciais, o seu novo posto, destinado a fazer a cobertura desse lado da Europa, permitiu-lhe uma boa perspectiva do Terceiro Reich e da sua relação com os países vizinhos que vieram a se tornar vítimas da agressão de Hitler, exatamente antes e durante a época em que a agressão teve lugar. 

Foi então para Viena precisamente na altura da anexação da Áustria por parte da Alemanha nazi. O que mais o assombrou foi o facto de na altura, à medida que os acontecimentos estavam a ocorrer mesmo à frente dos seus olhos, nem ele nem ninguém estar a compreender verdadeiramente o impacto que iriam ter nos anos seguintes. As conspirações e as manobras, as perfídias, as decisões fatais e os momentos de indecisão, e os dramáticos encontros dos participantes principais que modelavam o curso dos eventos, ocorreram clandestinamente, por baixo da superfície, escondidos dos olhos inquiridores dos diplomatas estrangeiros, dos jornalistas e dos espiões. Daí terem permanecido durante anos grandemente desconhecidos para todos, salvo para uns poucos que tomaram parte neles.

Para relatá-los, ele teve de aguardar que se aclarasse a confusão dos documentos e o testemunho dos principais atores sobreviventes do drama, a maioria dos quais não estava livre na época — muitos tinham ido parar aos campos de concentração nazis. Apesar de ser um relato de conhecimentos a posteriori, ainda assim foi útil, talvez, para um narrador de semelhante história, como ele, ter estado presente pessoalmente quando as principais crises e reviravoltas ocorreram. Desse modo, aconteceu que ele estava em Viena na noite memorável de 11 para 12 de março de 1938, quando a Áustria deixou de existir.

Durante mais de um mês, a Viena tão barroca, mas ao mesmo tempo de uma vida cultural e científica memorável, foi assaltada de uma forma impensável, de que resultaram profundas transformações. Kurt von Schuschnigg, que era o chanceler austríaco, classificou aquelas primeiras quatro semanas como as quatro semanas de agonia. Desde o acordo austro-alemão de 11 de julho de 1936, em que Schuschnigg, num anexo secreto ao tratado, fizera concessões de largo alcance aos nazis austríacos, que Franz von Papen, embaixador alemão especial em Viena, continuava o seu trabalho de sapa contra a independência da Áustria. Num longo relatório ao Führer no fim de 1936, ele falava de seus progressos. E um ano depois fez a mesma coisa, desta vez acentuando que somente submetendo o chanceler Schuschnigg à mais intensa pressão novos avanços podiam ser realizados. Seu conselho, apesar de pouco necessário, logo seria tomado de modo mais literal do que se poderia supor.

Os nazis austríacos, financiados e instigados por Berlim, empreenderam uma autêntica campanha de terror. Explosões ocorriam quase diariamente em alguma parte do país, e nas províncias montanhosas as demonstrações de massa, frequentemente violentas, enfraqueciam a posição do governo. Foram descobertos planos reveladores de que os assassinos nazis se preparavam para matar Schuschnigg. Tal com já haviam feito ao seu predecessor (Engelbert Dollfuss, em julho de 1934). Em documentos rubricados por Rudolf Hess, o delegado do Führer, estava claro que os nazis austríacos preparavam uma revolta geral para a primavera de 1938 e que, quando Schuschnigg tentasse reprimi-la, o exército alemão entraria na Áustria para impedir que o “sangue alemão fosse derramado por alemães”. Segundo Papen, um dos documentos falava da sua própria morte ou da do seu adido militar, general Muff, pelos nazis locais, como pretexto para a intervenção alemã. Papen estava marcado, pela segunda vez, para ser assassinado pelos truculentos nazistas, por ordem dos dirigentes do partido em Berlim. Papen recuperou o suficiente para perceber que Hitler evidentemente decidira agir mais drasticamente na Áustria, agora que se vira livre de Neurath, Fritsch e Blomberg. Realmente, Papen resolveu guardar cópias de toda a sua correspondência com Hitler “em lugar seguro”, que passou a ser a Suíça. “As campanhas difamatórias do Terceiro Reich” eram demasiado bem conhecidas por ele para lhe pôr a vida em risco em junho de 1934.

Nos últimos meses, o curso da diplomacia europeia não favorecera a Áustria. Mussolini se aproximara mais ainda de Hitler desde o estabelecimento do Eixo Roma-Berlim e não estava tão preocupado com a manutenção da independência da Áustria, como estivera na época do assassinato de Dollfuss, quando remeteu quatro divisões para o Passo Brenner, a fim de atemorizar o Führer. Tanto a Inglaterra, há pouco comprometida com Chamberlain numa política de apaziguamento de Hitler, como a França, acossada por grave discórdia política interna, haviam recentemente demonstrado pouco interesse em defender a independência da Áustria, no caso de um ataque de Hitler. E agora, com Papen, extinguiram-se os líderes conservadores do exército e do Ministério do Exterior alemães, que vinham exercendo alguma influência limitadora às desmedidas ambições de Hitler. Schuschnigg, homem de mentalidade estreita, mas em certo sentido inteligente, e que se achava bem informado, teve poucas ilusões acerca do agravamento da situação. Chegara a época da grande crise, sentia exatamente como sentira quando teve de promover o apaziguamento do ditador alemão, depois de os nazis terem matado Dollfuss.

Papen, embora destituído do cargo, a 5 de fevereiro de 1938 foi-se encontrar com Hitler que se encontrava na Kehlsteinhaus em Berchtesgaden, exausto da sua luta com os generais. Mas a energia de Hitler era inesgotável, e logo o embaixador demitido começou a interessá-lo com uma proposta, que ele já lhe apresentara antes, quando se encontravam em Berlim. Porque não tratar do assunto diretamente com Schuschnigg? Por que não convidá-lo a vir a Berchtesgaden para uma conversa particular? Hitler achou a ideia interessante. Esquecido de que acabara de afastar Papen, ordenou-lhe para regressar a Viena a fim de organizar o encontro.



Kehlsteinhaus (Ninho da Águia) no cume da montanha Kehlstein em Berchtesgaden, oferecida pelo partido nazi alemão ao Führer aquando do seu 50º aniversário. O acesso ao elevador era feito através de um túnel.
Schuschnigg prontamente aquiesceu. Mas, em virtude da fraqueza de sua posição, estabeleceu certas condições. Devia ser informado, com antecedência, dos pontos precisos que Hitler desejava discutir e devia estar seguro, de antemão, de que o acordo de 11 de julho de 1936, no qual a Alemanha prometia respeitar a independência da Áustria e não interferir em seus assuntos internos, seria mantido. Além disto, o comunicado do fim da reunião devia reafirmar que ambos os países continuariam a aceitar as consequências do tratado de 1936. Schuschnigg não queria dar oportunidade de o leão entrar em sua casa. Papen saiu apressadamente a fim de conferenciar com Hitler.

Então Papen voltou a encontrar-se com Schuschnigg com a resposta afirmativa do Führer: de que o acordo de 1936 continuaria inalterado, e que ele simplesmente pretendia discutir “certas falsas interpretações e pontos de conflito que ainda persistiam” desde que foi assinado. Isto não era tão preciso como o chanceler austríaco havia solicitado, mas disse que estava satisfeito com a resposta. O encontro foi marcado para a manhã de 12 de fevereiro. Esta data tinha o seu significado especial: a chacina dos social-democratas austríacos pelo governo de Dollfuss, do qual havia participado 
Schuschnigg. A 12 de fevereiro de 1934, 17 mil homens das tropas do governo e da milícia fascista dirigiram o fogo da artilharia sobre os apartamentos dos trabalhadores, em Viena, matando um milhar de homens, mulheres e crianças, e ferindo uns três mil a quatro mil. As liberdades democráticas foram suprimidas e daí em diante a Áustria foi governada, primeiro por Dollfuss, e depois por 
Schuschnigg, como uma ditadura clerical/fascista. Certamente mais branda que a variedade nazi, mas ainda assim, privou o povo austríaco de suas liberdades políticas e submeteu-o à maior repressão de que havia conhecido sob os Habsburgo nas últimas décadas da monarquia. 

Na noite anterior, Schuschnigg, acompanhado do seu subsecretário para os negócios estrangeiros, Guido Schmidt, partiu num comboio especial, sob o mais rigoroso sigilo, para Salzburgo, de onde tomaria um automóvel na fronteira, na manhã seguinte, para se dirigir a Berchtesgaden e encontrar-se com Hitler na montanha. A viagem veio a ser fatal. A manhã de 12 de fevereiro de 1938 estava muito fria, mas Papen lá estava na fronteira para receber Schuschnigg. Papen assegurou que Hitler estava em excelente disposição nesse dia. E, em seguida, disse: «O Führer esperava que o dr. Schuschnigg não desse importância à presença em Berchtesgaden de três generais que haviam chegado completamente por acaso: Keitel, o novo chefe do OKW; Reichenau, que comandava as forças do exército na fronteira bávaro/austríaca; e Sperrle, encarregado da força aérea nessa área. Schuschnigg terá respondido que não se importaria, já que de especial não tinha “muito que escolher na questão”. Intelectual jesuiticamente treinado, mantinha-se em guarda.

Mesmo assim, ele não estava preparado para o que iria suceder. Hitler, envergando uma túnica parda das tropas de assalto, com calças negras, e ladeado pelos três generais, deu as boas-vindas ao chanceler austríaco na entrada da vila. Schuschnigg sentiu que era uma saudação amigável, mas formal. Dentro em pouco, viu-se a sós com o ditador alemão no espaçoso gabinete do segundo andar, cujas grandes janelas descortinavam os imponentes picos nevados dos Alpes e, além, a Áustria, terra natal de ambos.

Kurt von Schuschnigg, de 41 anos de idade, era, como todos que o conheceram haviam de concordar, um homem de maneiras impecáveis, no velho estilo austríaco, e para ele não era artificial começar uma conversação com graciosas referências a respeito da paisagem magnífica, do belo tempo que fazia e de palavras agradáveis acerca da sala que, por certo, havia sido palco de muitas conferências importantes. Adolf Hitler atalhou-o bruscamente: “Não nos reunimos aqui para falar da bonita vista ou do tempo.” A seguir, começou a tempestade: "Vocês fazem tudo para impedir uma política amigável. A história inteira da Áustria é justamente um ato ininterrupto de alta traição. Assim foi no passado e hoje não é diferente. Semelhante paradoxo histórico deve agora ter seu fim, com bastante atraso. E neste momento posso dizer-lhe diretamente, Herr Schuschnigg, que estou inteiramente decidido a pôr um fim a tudo isso. O Reich alemão é uma das grandes potências e ninguém levantará a voz se ele resolver seus problemas fronteiriços.

Chocado pela explosão de HitlerSchuschnigg tentou mostrar-se conciliatório e ainda permanecer em seu terreno. Respondeu que discordava sobre a questão do papel da Áustria na história alemã “A contribuição da Áustria nesse aspecto é enorme”, insistiu. Hitler volta à carga: "Absolutamente nenhuma. Repito, absolutamente nenhuma. Toda a ideia nacional foi sabotada pela Áustria durante a história; e, na verdade, toda esta sabotagem constituiu a principal atividade dos Habsburgo e da Igreja Católica. Seja como for, digo-lhe mais uma vez que as coisas não podem prosseguir dessa forma. Tenho uma missão histórica a cumprir e a cumprirei, pois a providência me destinou para isso; quem não estiver comigo será esmagado. Escolhi o caminho mais difícil jamais trilhado por qualquer alemão. Realizei a maior façanha da história da Alemanha, maior que a de qualquer outro alemão. E não pela força, tenha em conta. Tenho sido acompanhado pelo amor de meu povo. 

É evidente que a deformada versão da história austro/germânica, dada por Hitler continuava inalterada, remontava à sua juventude em Linz e Viena. Após uma hora de conversação, Schuschnigg pediu a seu interlocutor para enumerar suas queixas, e que faria tudo para remover os obstáculos a uma melhor compreensão, tanto quanto fosse possível. Hitler ainda ripostou: "Isso é o que diz, Herr Schuschnigg. Afirmo, porém, que resolverei o chamado problema austríaco de uma forma ou de outra." Lançou em seguida uma diatribe contra a Áustria por fortificar a fronteira contra a Alemanha, acusação que Schuschnigg refutou. Hitler deu novamente, pela última vez, a oportunidade a Schuschnigg de chegar a um acordo. Ou encontravam uma solução, ou então os acontecimentos seguiriam o seu curso. Que condições exatamente propunha o chanceler alemão? Hitler respondeu que podiam discuti-las nesse dia à tarde”.

Durante o almoço, Hitler aparentava estar “num excelente estado de espírito". Seu monólogo alongou-se a respeito de cavalos e de casas. Estava para construir o maior arranha-céus que o mundo jamais vira. “Os americanos verão”, comentou para Schuschnigg, “que a Alemanha está construindo maiores e melhores edifícios que os Estados Unidos”. Quanto ao oprimido chanceler austríaco, Papen notou que ele se mostrava “aborrecido e preocupado”. Fumante inveterado, não lhe haviam permitido fumar na presença de Hitler, mas depois do café, no salão contíguo, Hitler desculpou-se e Schuschnigg pôde pela primeira vez apanhar um cigarro. Conseguiu também contar a seu subsecretário do Exterior, Guido Schmidt, as más notícias, que logo seriam piores.

Quando a Alemanha recompôs suas tropas na Renânia, em 1936, Schuschnigg vislumbrou com alguma preocupação a possibilidade de Hitler invadir a Áustria. E chegou a assinar acordos de não agressão com Hitler, um dos quais comprometia a Alemanha a não se intrometer nos assuntos internos austríacos. Contudo, muitos políticos austríacos eram a favor dos nazis e influenciavam as decisões do governo. Enquanto isso, Hitler pressionava a Áustria num acordo que pedia a amnistia dos assassinos de Dollfuss e a revogação da proibição sobre a recomposição do partido nazi austríaco. Em consonância com 
Wilhelm Miklas, o presidente austríaco, Schuschnigg anunciou a amnistia dos assassinos de Dollfuss e o ingresso de três ministros nazis ligados a Hitler. 

A seguir, Hitler fez uma declaração pela rádio estatal, dizendo que os povos de língua alemã não poderiam e nem deveriam viver separados da Alemanha, com referências explícitas à Áustria e à Boémia checa. Dias depois, Schuschnigg declarou ao Parlamento que não concederia mais nada à Alemanha e que a Áustria deveria ser um país livre e independente. Vários pró-nazis austríacos reagiram com manifestações, algumas violentas. Schuschnigg dirigiu-se aos operários e simpatizantes do partido social-democrata, mas o apelo não é atendido. Em março, o chanceler apela para um referendo no qual a população austríaca decidiria sobre a liberdade da Áustria. Hitler e o partido nazi alemão repudiam a iniciativa de Schuschnigg, que pediu apoio a Mussolini, mas este lhe afirmou que um plebiscito seria um erro, afirmando: Se o resultado é positivo, dirão que foi manipulado; se o resultado é contrário, será insustentável para o governo; se for incerto, será inútil.

Contudo, Hitler já havia decidido pela invasão da Áustria. Tendo enviado primeiramente a Roma o príncipe Phillip von Hessen, para que garantisse que Mussolini não interviesse em favor da Áustria em nenhum caso, a Alemanha deu prosseguimento à operação, que ficou conhecida como Operation Otto. Com a pressão dos ministros austríacos pró-nazis Glaise-Horstenau e Seyß-Inquart sobre Schuschnigg e o presidente Miklas, estes decidiram revogar o referendo. Hitler declara abertamente que Schuschnigg deveria ser demitido e que em seu lugar deveria ser nomeado o ministro Seyß-Inquart, o qual teria pedido uma intervenção militar alemã para "acalmar" a situação austríaca.


Schuschnigg,1935

Com tamanha pressão, Schuschnigg demite-se. O presidente Miklas se nega a nomear Seyß-Inquart como chanceler austríaco, mas sofre grande pressão e dois dias depois acaba por demitir-se também. Suas funções passam para o novo chanceler pró-nazi. Schuschnigg tentou em vão ser exilado; foi preso pelos nazis, obrigado a viver em regime semiaberto numa pequena propriedade rural durante 16 meses, chegando a sofrer humilhações de soldados da SS. Foi posteriormente enviado para o campo de concentração de Dachau. Posteriormente fo transferido para o campo de Sachsenhausen.

Em abril de 1945 foi transferido para a Província de Bolzano, próximo do Lago Pragser. Foi libertado pelas tropas americanas a 5 de maio de 1945. Como Schuschnigg, vários austríacos foram presos porque não aceitaram a anexação da Áustria. Um grande exemplo foi o de Otto de Habsburgo, filho do último imperador austríaco, Carlos I. Em 1947, Schuschnigg foi viver para os Estados Unidos da América. Em 1948, é professor de Direito Internacional no Missouri, na Universidade de Saint Louis. Em 1968 retornou à Áustria, aderindo ao partido popular austríaco - Österreichische Volkspartei. Faleceu em Mutters, perto de Insbruck, em 18 de novembro de 1977, com 79 anos.

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