domingo, 17 de setembro de 2023

Shangri-La - O Vale de Baliem e Richard Archbold


Quatro meses após o resgate de Shangri-La no Vale de Baliem surgi a divulgação de que Richard Archbold já havia andado por lá meia década antes. Formalmente reconhecido como o mesmo local. A revista Science relatou: “A identidade do vale foi estabelecida através de uma comparação de fotografias tiradas pelo Exército, pouco antes do resgate dos sobreviventes, com fotos batidas pela expedição de Archbold. A identificação foi feita pelo Exército, particularmente pelo coronel Ray T. Elsmore, o comandante das operações do resgate de Shangri-La. Archbold nunca mais lá voltou, nem realizou mais expedições desse calibre. Ele dedicou o resto da sua vida, e sua considerável fortuna, à Estação Biológica Archbold, uma reserva de 2.000 hectares próxima a Lake Placid, Flórida, destinada à preservação biológica e a pesquisas ecológicas. Archbold morreu em 1976, aos 69 anos.

Archbold herdara a fortuna de seu avô, John D. Archbold, presidente da Standard Oil e sócio de John D. Rockefeller. Os milhões da família garantiram que Richard Archbold jamais precisasse trabalhar num emprego convencional. O que era conveniente já que ele nunca fora um aluno aplicado. Menino magricela, tímido, socialmente desajeitado, com um olhar penetrante e modos bruscos, Archbold passou por vários colégios particulares, um deles no Arizona, onde a sua atividade favorita fora acampar. Depois estudou no Hamilton College, no norte do estado de Nova York, e na Universidade Columbia, em Manhattan, mas não permaneceu tempo suficiente em nenhuma das instituições para se formar em algum curso.


O que de facto agradava a Archbold era a vida ao ar livre. Em 1929, o pai, desejando que o filho trilhasse um caminho produtivo, concordou em contribuir financeiramente para uma expedição à ilha de Madagascar numa cooperação conjunta britânica/francesa/americana. Só impôs uma condição: o filho inadaptado teria que ser um dos participantes. Os organizadores da expedição adoraram receber o dinheiro, mas não sabiam muito bem o que fazer com o jovem Archbold, que já era um homem alto, magro e razoavelmente bem-apessoado, com bastos e ondulados cabelos negros, um espesso bigode e um fraco por gravatas borboleta.

Ao voltar de Madagascar, Archbold soube que seu pai falecera. Recebeu então a herança, da qual fazia parte um apartamento em Manhattan, no Central Park West. Depois foi trabalhar para o departamento de mamíferos do Museu Americano de História Natural, do qual seu avô fora um grande benfeitor. Trabalhando no gabinete do outro lado do corredor, no quinto andar do museu, estava um jovem ornitólogo alemão chamado Ernst Mayr, que mais tarde se tornaria uma lenda no campo da biologia evolucionária. O novo conhecido de Archbold o encorajou a se concentrar na selva da Nova Guiné, onde o próprio Mayr passara meses a estudar a vida das aves. Lançando mão da herança, Archbold organizou, financiou e liderou diversas expedições importantes à ilha, sob os auspícios do museu. No início, seu projeto era nada menos que realizar um abrangente levantamento biológico da Nova Guiné. Ao contrário de Mayr, que trabalhava rodeado um grupo de jovens cientistas e exploradores, Archbold arregimentou um verdadeiro exército de pesquisadores para a ambiciosa empreitada.

Ele obteve marcante sucesso nas duas primeiras viagens. Mas ele se sentia cada vez mais desanimado diante dos desafios logísticos impostos por aquela ilha enorme, entre eles o terreno hostil e a ausência de animais de carga nativos. As incursões de Archbold à Nova Guiné dependiam de linhas de abastecimento eficientes; isto significava que alguém ou alguma coisa teria de carregar toneladas de provisões para os exploradores, que se viam deslocados da civilização durante meses a fio. Na falta de cavalos, mulas, bois ou camelos, e diante da impossibilidade de utilizar camiões no interior da ilha, onde não havia estradas, carregadores humanos eram a única opção. Mas Archbold aprendera que não poderia confiar nos nativos da Nova Guiné. Um dos motivos era o medo que tinham, não dos exploradores, mas uns dos outros. As inúmeras tribos e clãs da ilha viviam guerreando entre si. Portanto, no momento em que um carregador nativo deixava o seu território, tinha boas razões para temer que algum vizinho o matasse.



Archbold concluiu que a melhor forma seria com apoio aéreo. Assim, tirou o curso de piloto e começou a comprar aviões. No início de 1938, ele comprou o maior avião não militar existente no mundo, a primeira versão comercial de um bombardeiro da Marinha norte-americana, conhecido como PBY. Com mais de trinta metros de envergadura, um enorme compartimento de carga e uma autonomia de voo que superava 6.400 Km, o PBY de Archbold atendia perfeitamente às suas necessidades. O maior atrativo do avião era ter sido concebido como um “barco voador”. Equipado com flutuadores, era capaz de descolar e pousar na água, inclusive em lagos e rios da Nova Guiné situados em altitudes elevadas. Archbold acrescentou equipamentos de navegação e comunicação especiais à aeronave e a batizou com o nome de Guba — palavra nativa que significava “tempestade violenta”. Com Guba à disposição, Archbold poderia transportar suprimentos, pessoal e espécimes para onde fosse preciso, o que tornou possível a sua terceira e mais ambiciosa expedição à Nova Guiné.

Archbold obteve a permissão e o aval dos holandeses, que controlavam a área que ele desejava explorar, para iniciar a empreitada. As autoridades esperavam que a expedição suprisse o governo da Holanda com informações mais aprofundadas a respeito da sua colónia, não só sobre flora e fauna, que eram os maiores interesses de Archbold, mas também sobre os povos e os recursos existentes na ilha. Em abril de 1938, a equipe de Archbold montou um acampamento base em Hollandia, com cerca de duzentas pessoas, inclusive cientistas do Museu Americano de História Natural; 72 integrantes da tribo dyak, levados da ilha vizinha de Bornéu para trabalhar como carregadores; dois cozinheiros; um piloto suplente; um navegador; um rádio operador; e dois mecânicos. O governo holandês contribuiu com cerca de sessenta soldados, entre eles um capitão e três tenentes. Também como “cortesia” do governo holandês foram incluídos trinta presos políticos, principalmente militantes anticolonialistas, condenados a trabalhos forçados.

A expedição tinha o propósito de recolher mamíferos, pássaros, plantas e insetos em diversas altitudes, desde o nível do mar até aos desolados picos mais altos da Nova Guiné. 
Com o Guba, os carregadores dyak e os prisioneiros transportando os mantimentos que os alimentariam, Archbold e a sua equipe de cientistas reuniram um tesouro de exemplares notáveis, como cangurus que subiam em árvores, ratazanas com quase um metro de comprimento e uma ave canora até então desconhecida, que capturava insetos em voo com o seu longo bico. Mas nada foi tão espantoso quanto o que eles encontraram na manhã de 23 de junho de 1938.



Archbold, pilotando o Guba, ao atravessar as cerradas nuvens que cercavam a montanha chamada Rainha Guilhermina, com quase 5.000 metros de altitude, acabou por avistar um largo vale densamente povoado que não figurava em seus mapas. Ele calculou que o vale tinha aproximadamente 65 Km de comprimento por 15 de largo. Um soldado holandês a bordo do Guba chamou o que estava vendo de Groote Vallei, ou Grande Vale, e Archbold declarou que este passaria a ser o nome do lugar. Inicialmente, ele estimou a população do vale em 60 mil pessoas, embora talvez fosse o dobro, se incluídos os nativos que viviam nas montanhas circundantes. Mas mesmo pelas contas de Archbold seria possível classificar imediatamente aquela área como a mais densamente povoada de toda a Nova Guiné Holandesa. 

Era quase inacreditável. A Nova Guiné era remota, mas não desconhecida. Exploradores haviam penetrado muitas partes do interior da ilha, por via terrestre, e alguns alpinistas já tinham escalado seus picos mais elevados. Diversas expedições realizadas em 1907, nos primeiros anos da década de 1920 e em 1926 chegaram perto do Grande Vale e fizeram contacto com alguns nativos da região, embora nunca tivessem encontrado o próprio vale. Um grupo de exploradores, integrantes da expedição Kremer, realizada em 1921, atingiram uma área vizinha, chamada de Vale Swart. A antropóloga Denise O’Brien, que estudou o Vale Swart durante cerca de quarenta anos, mais tarde escreveu que, quando encontraram Kremer e a sua equipe pela primeira vez, os nativos ficaram intrigados com o facto de que os homens de pele clara, que deviam ser fantasmas ou espíritos, não traziam mulheres com eles. A reação dos nativos à expedição, escreveu O’Brien, foi de medo, acrescido de uma grave epidemia de disenteria.

Mesmo que os exploradores que viajavam por terra não tivessem encontrado o vale, era de se esperar que um piloto da Força Aérea ou de alguma empresa privada tivesse notado uma área com quase 800 quilômetros quadrados, com centenas de aldeias habitadas por dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças, para não falar dos porcos. Entretanto, alguns dos mais célebres aviadores do mundo não repararam no vale. Em julho de 1937, um ano antes da descoberta de Archbold, Amelia Earhart sobrevoou parte da Nova Guiné quando tentou circum-navegar a Terra. A última paragem conhecida foi numa pista de pouso na cidade de Lae, na extremidade oriental da ilha, após a qual seu avião desapareceu em algum lugar do Pacífico. Mas ela, também, jamais viu o Grande Vale.

Por volta do final da década de 1930, a maior parte dos antropólogos acreditava que todos os centros populacionais relevantes do planeta já haviam sido descobertos, mapeados e, na maioria dos casos, modernizados por missionários, capitalistas, colonizadores ou uma combinação dos três. Ninguém duvidava que grupos de aborígenes percorriam as florestas pluviais da Amazónia e de outras regiões. Mas os habitantes do Grande Vale de Archbold eram agricultores e guerreiros sedentários, vivendo em aldeias claramente definidas numa área descampada, coberta apenas pelas nuvens. Cem mil pessoas que permaneciam invisíveis, embora totalmente expostas. Sessenta anos mais tarde, Tim Flannery, uma autoridade científica, afirmou que a descoberta de Archbold assinalou a última vez na história que duas civilizações se encontraram pela primeira vez. 

Quando Archbold descreveu a descoberta para a revista National Geographic, um editor argumentou que as matas eram tão cerradas e o terreno tão acidentado que os primeiros exploradores passaram a poucos quilómetros da área mais populosa da região sem suspeitar de que havia uma civilização nas proximidades. As montanhas circundantes, por sua vez, desencorajavam voos sobre o vale e incursões comerciais por via terrestre. O estilo de vida dos nativos também contribuiu. Eles eram agricultores autossuficientes, ao contrário dos caçadores coletores, que viajavam longas distâncias em busca de alimentos e implementos. Sua tendência ao sedentarismo era cimentada pelas guerras, que levava a maioria deles a passar a vida a uma distância curta, e relativamente segura, de suas choças. O mau tempo impediu Archbold de mudar de curso ou descer mais com o Guba para obter uma visão melhor. Mas, nas semanas que se seguiram, ele executou diversas missões de reconhecimento, fotografando o vale e forçando os nativos a procurar abrigo, juntamente com seus porcos. O coronel Elsmore iria passar pelo mesmo seis anos mais tarde. Mas a expedição de Archbold, e seus artigos sobre o Vale de Baliem, haviam passado despercebidos ao coronel Elsmore. Quando lhe falaram sobre Archbold, após o acidente com o Gremlin Special, Elsmore o desconsiderou, com a presunção de que o seu "Vale Oculto de Shangri-La", não tinha nada a ver com o Grande Vale de Archbold. A Nova Guiné, afinal, era enorme e inexplorada. Quem poderia saber ao certo quantos vales isolados e ignorados ainda haveria na ilha?

As pessoas viviam em aldeias cercadas por muros ou paliçadas, muito bem-arrumadas e limpas. A quantidade de residências variava de três a cinquenta. As choças tinham paredes duplas, construídas com metades de troncos, e tetos de palha. Não possuíam pisos. As casas dos homens eram redondas, com um diâmetro que variava de três a cinco metros, com tetos em forma de domos; as casas das mulheres eram longas e estreitas. A indumentária dos homens, no dia a dia, consistia apenas de um canudo, feito com uma cabaça estreita e alongada, que lhes envolvia os órgãos genitais. As mulheres usavam saiotes curtos feitos de cordões pendentes, que iam até abaixo das nádegas, ou um arranjo feito com cordas enrolado nas coxas. Elas sempre carregavam uma ou mais sacolas de rede penduradas nas costas. Essas sacolas eram amarradas em suas testas. Como armas ou implementos diversos, os nativos possuíam arcos e flechas de vários tipos, lanças, machadinhas e machados de pedra. Ao contrário de todas as outras tribos conhecidas da Nova Guiné, os nativos do Grande Vale plantavam batata-doce em canteiros claramente definidos, dotados de labirínticas valas de irrigação e cercados de muros. 

Os assistentes de Archbold montaram um acampamento a cerca de 25 Km a oeste do vale, próximo a um lago chamado Habbema, onde o Guba podia pousar e descolar. Certo dia dois nativos se apresentaram. Eles se acocoraram com as costas voltadas para a aldeia deles e seus arcos e flechas à mão. 
Os assistentes de Archbold sentaram-se em frente a eles, de costas para o seu acampamento. Os homens aceitaram presentes, mas os devolveram após um polido intervalo. No entanto, o homem mais velho aceitou dar algumas baforadas no charuto do oficial holandês mais graduado da expedição, um capitão chamado C.G.J. Teerink. Quinze minutos mais tarde, os dois nativos deixaram o acampamento dos exploradores.

Depois, Archbold formou duas equipes de exploradores, com a missão de percorrer o vale. Eram formadas por soldados holandeses, presidiários e membros da tribo dyak, todos acostumados a colher exemplares da flora e da fauna. Uma das equipes era liderada pelo capitão Teerink, e a outra, por um tenente chamado J.E.M. Van Arcken. Elas deveriam iniciar suas jornadas em extremidades opostas do vale, para que pudessem se encontrar mais ou menos a meio. Em agosto de 1938, as duas equipes começaram a caminhar através do alto capinzal que crescia no vale, passando de uma aldeia a outra. Se eles tivessem vindo de outras partes do vale, é provável que fossem recebidos com lanças e flechas. Mas os exploradores brancos eram tão estranhos e exóticos, tão distantes da guerra permanente que fazia parte do quotidiano das tribos, que foram recebidos com apenas uma leve curiosidade pelos homens adultos, e com timidez pelas mulheres e crianças. Os exploradores perceberam sinais de que os nativos praticavam o canibalismo, mas as tropas holandesas, fortemente armadas, nada tinham a temer. Por vezes, alguns nativos tentavam desencorajar os exploradores a rumar para a próxima aldeia. Para isso, enterravam gravetos no caminho, imitavam o disparo de flechas e permaneciam de braços dados à frente deles, formando uma barreira humana. As dificuldades linguísticas impediram o capitão Teerink e o tenente Van Arcken de encontrar uma explicação satisfatória. 

Segundo a interpretação Teerink, a atitude dos nativos teria um propósito mais protetor do que hostil. Ele entendia que os nativos não queriam que os visitantes fossem atacados pelos inimigos que viviam na aldeia seguinte. Essa era a sua convicção até um incidente ter ocorrido envolvendo um grupo de nativos e a equipe de exploradores liderada pelo tenente Van Arcken. Em agosto de 1938, ao se aproximarem do rio Baliem, no centro do vale, foram recebidos por um grande número de nativos trazendo nas mãos lanças, arcos e flechas. E eles interpretaram que estavam a ir na direção de território inimigo. Mas depois, durante a noite, quatro nativos chegaram ao acampamento e pediram para dormir por lá. Nesta altura Van Arcken ficou desconfiado e expulsou-os. No dia seguinte, Van Arcken descobriu que o caminho da equipe fora fechado com galhos de árvores, atrás dos quais se escondiam alguns jovens armados com lanças. Então os exploradores pegaram nas armas apontando-as para o ar, e os jovens nativos fugiram. E a coluna de soldados continuou a avançar com dois elementos a proteger a retaguarda. E foi então que aconteceu o incidente, dois nativos agarraram um deles por trás. Quando o outro soldado foi socorrê-lo, um dos nativos fez menção de cravar a lança no cabo. Foi na sequência disso que o nativo foi alvejado, e morreu. A versão oficial foi que o soldado matou o nativo em legítima defesa. Mas o capitão Teerink, o oficial holandês mais graduado, que liderava a outra equipa, não aceitou a explicação, exigindo a anexação do seu relatório ao relatório de Van Arcken. Van Arcken, por sua vez, reiterou a sua versão. No lugar do mapa onde o confronto ocorrera, ele desenhou uma seta e escreveu: “Local em que um nativo morreu devido a um ataque com lança.” A menos que a pessoa que examinasse o mapa estivesse bem-informada, a observação de Van Arcken parecia sugerir que tal morte havia resultado de um duelo fatal entre dois nativos.

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