sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A força de vontade



Conatus é uma palavra do latim que foi muito usada pelos filósofos racionalistas do século XVII para caracterizar a força que a vida tem em perseverar. Diz Espinosa: cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar no seu ser. Mas Schopenhauer [1788-1860] chamou-lhe vontade - princípio fundamental da natureza, a força cega, incontrolável, que move o mundo. Persistência inata de uma coisa para continuar a existir e se aprimorar. Esta "coisa" pode ser a mente, a matéria, ou uma combinação de ambos. 

É verdade que este termo já vinha da Antiguidade, mas só posteriormente teve a devida atribuição e o seu aprimoramento em subtileza. Primeiro Aristóteles e depois Cícero e Diógenes Laércio aludiram, cada qual, a uma conexão entre o conatus e outras emoções, em que estas são induzidas por aquele. Os seres humanos não desejam fazer alguma coisa por acharem que é bom fazê-lo. Pelo contrário, se o desejamos fazer, então é porque é bom. Em outras palavras, isso significa que o desejo humano é uma tendência natural que é legitimada pelo conatus.

Thomas Hobbes [1588–1679], também trabalhou o conceito de conatus, embora fora da influência dos autores clássicos.  Em vez de os seguir criticou as definições anteriores por falharem em explicar a origem do movimento. Trabalhar para este fim tornou-se o principal foco da obra de Hobbes nesta área. De facto, Hobbes reduz todas as funções cognitivas da mente às variações conativas. Hobbes descreve a emoção como o início do movimento. A vontade é a soma de todas as emoções. O conatus é a vontade de sobreviver custe o que custar. 

Em Espinosa [1632–16779], 
Conatus é um tema central. Cada coisa, à medida que existe em si, esforça-se para perseverar em seu ser. É a força para resistir à destruição. Cada coisa opõe-se a tudo o que lhe possa tirar a existência. Resistência à destruição em termos de um esforço para continuar a existir. O esforço de perseverança é a essência verdadeira de cada coisa. Vida e Natureza são um só, unificados por leis. Contrário à maioria dos filósofos do seu tempo, como Descartes, rejeitava a hipótese do dualismo mente-corpo. Não pode haver liberdade absoluta e incondicional da vontade, uma vez que todos os eventos no mundo natural, incluindo as escolhas e ações humanas, são determinadas por leis naturais. A liberdade é considerada no sentido de não ser restringida em contexto. Portanto, Espinosa coloca o conatus no lugar do livre-arbítrioOs animais evitam ferimentos, protegem-se quando ameaçados e curam-se a si mesmos quando feridos.

Uma pedra é um pedaço de matéria térrea. Um lago é uma porção de água. Um gato, até que esteja morto, não é um pedaço de gato. A individualidade de um gato é parte da sua natureza viva. O gato esforça-se para persistir na sua existência única. Pertence à essência do ser gato a persistência na sua existência. Esse esforço é um esforço do ser que envolve num só corpo e mente. Mas concebido no âmbito do mental, esse esforço é o que dizemos quando dizemos vontade. Às vezes, referimo-nos com a palavra desejo, especialmente quando descrevemos pessoas. Enfatizamos o elemento da consciência para dizer que as pessoas estão cientes da sua própria vontade, ou desejo, que em última razão é seu e de mais ninguém.

A ciência moderna veio fragmentar tudo ao máximo da redução da matéria. Tudo é reduzido à matéria. E a matéria é fragmentada em moléculas. As moléculas são fragmentadas em átomos. E assim sucessivamente pequeno até ao infinito em energia distribuída no espaço e no tempo. Mas para o filósofo os organismos vivos são outras coisas portadoras de algo mais como a sua identidade individual. E é este o problema da ‘consciência’ que resiste a qualquer tentativa de ser materializada pela ciência física. Consciência na medida em que é ciente de si própria. Uma identidade que atravessa o espaço e o tempo por via da memória. Essa é a nossa natureza, e esse é o nosso lugar no esquema das coisas.

Estamos naturalmente propensos a nos enganar, pois “a mente humana, todas as vezes que ela percebe uma coisa na ordem comum da natureza, não tem um conhecimento adequado nem de si mesma, nem do seu corpo, nem dos corpos exteriores, mas somente um conhecimento confuso e parcial. É dessas perceções confusas que derivam muitas das nossas crenças ordinárias. Nos termos de Espinosa na sua obra “Ética”: 
«Os homens enganam-se quando se consideram livres, e esta opinião depende somente do seguinte: de que eles são conscientes de suas ações e ignorantes das causas pelas quais elas são determinadas. Esta, portanto, é a sua ideia de liberdade: que eles não conhecem as causas de suas ações. Porque quando eles dizem que as ações humanas dependem da vontade, essas são palavras das quais eles não têm nenhuma ideia, já que nenhum deles sabe o que é vontade e como ela move o corpo; aqueles que se vangloriam do contrário e inventam uma morada e habitáculos para a alma provocam ou riso ou desgosto.»

De onde vem essa ordem natural das coisas? É essa a questão em Espinosa a que ele chama Deus ou Natureza. As causas dentro de um corpo que leva ao desejo ou à vontade é essa tal força chamada conatus. O Cosmos e as Causas na Natureza  não deixam de ser a causa da força dos nossos desejos ou vontades. As cadeias que nos prendem podem ser ou externas, operando sobre nós desde o lado de fora, tal como as causas que afetam uma pedra, ou internas, operando dentro e através de nós, como as operações do desejo. E quanto maior o conatus, mais internas são as cadeias. Ao juntarmos as nossas cadeias em nós mesmos, tornando-nos conscientes de sua força sobre nós, também nos livramos delas, obtendo a única liberdade que nós podemos e devemos desejar.


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