sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O cérebro não é a mente - pensamento, linguagem, mundo



 Kant, Hegel e Husserl - autores fundamentais para começarmos a compreender a filosofia necessária para penetrarmos neste mistério que é a fenomenologia da mente, em que a mente não é o cérebro, e que a inteligência artificial nunca conseguirá reproduzir na sua totalidade a inteligência natural.

Para chegarmos à realidade dispomos da perceção e da linguagem. A perceção tem a ver com a referência das coisas por via dos sentidos e da experiência; a linguagem tem a ver com o suporte da Razão. Não podemos ter certeza de que estamos certos acerca do que é a realidade. Pode ser que sim, mas não podemos garanti-lo, concluíram os céticos. Como perguntou Frege nos Fundamentos da Aritmética (1884), ironicamente e com uma certa estupefação: será mesmo possível que alguém pense que a quantidade de cálcio no meu cérebro é relevante para compreender a verdade do teorema de Pitágoras? Ou como Husserl, por seu lado, observa nas Ideen II: os lobos do meu cérebro não aparecem na minha consciência, logo, não são, por essa razão, objeto de análise para a Fenomenologia.

Kant tinha argumentado que, em princípio, qualquer conclusão a que cheguemos por meio de qualquer uma de nossas faculdades não será sobre a realidade. Nenhuma forma de cognição, tendo em vista que ela deve operar em certo âmbito, poderá colocar-nos em contacto com a realidade. Por princípio, pelo facto de o nosso cérebro ter estruturas específicas, é ele que modela a forma como vemos a realidade e não a realidade que modela o nosso cérebro. O exemplo do membro fantasma do amputado diz-nos que o cérebro continua com a representação de um corpo inteiro. 

Kant, ao contrário dos primeiros céticos que continuavam a associar a verdade com a realidade, redefiniu a verdade como um conceito epistemológico subordinado à subjetividade. Mas se a mente, em princípio, está dissociada da realidade, então não faz sentido dizer que a verdade corresponde a uma relação entre o cérebro e a realidade. A verdade deve ser tão somente uma relação interna de coerência. Como a Razão, em tese, está separada da realidade, entramos em polémica. O ponto em Kant é que ele considera que nada podemos saber de tudo o que esteja fora do nosso cérebro. Kant rejeita a objetividade. Estando a Razão tão distante da realidade, o resto são detalhes.

Para Hegel a Razão é fundamentalmente uma função criativa, não cognitiva. Ela não vem a conhecer uma realidade preexistente; é ela quem traz à existência toda a realidade. De maneira mais destacada, a razão de Hegel opera por meios dialéticos e contraditórios, e não de acordo com o princípio aristotélico da não contradição. Opondo-se à crença de Kant de que as categorias subjetivas da Razão são necessariamente imutáveis e universais, Hegel argumentava que essas próprias categorias estão sujeitas a mudanças.

Então Hegel começou por dizer, em termos de um místico, que tanto se podia provar que o universo teve um início no tempo, como igualmente provar, com a mesma consistência, que o universo é eterno. Pode-se provar que o mundo é composto de partes mais simples e, também, que não é; que somos dotados de livre-arbítrio e que o determinismo estrito é verdadeiro. As antinomias de Kant mostram não que a Razão seja limitada, mas que precisamos de um novo e melhor tipo de razão, que acolha as contradições e veja a realidade total como algo que evolui a partir de forças contraditórias. O Nada só existe porque existe o Ser
Se tudo evolui graças ao choque das contradições, então o que é metafisicamente e epistemologicamente verdadeiro em certa época será contradito pelo que é verdadeiro em outra, e assim por diante. Para Hegel, a mente e todo o ser do indivíduo são uma função das forças mais profundas do universo operando sobre ele e por intermédio dele.

A um nível bruto, ou mais básico da nossa subjetividade, existe a consciência de algo que tem a ver com as nossas experiências interiores que damos pelo nome de sensações. E é perdida temporariamente, quando nos encontramos a dormir sem sonhos, ou anestesiados, que nos dizemos inconscientes. É da consciência que partimos para a perceção do mundo exterior. E foi quando apareceu Husserl com as suas investigações lógicas. Mas foi o último Husserl, o Husserl da Krisis, que corrigiu o apelo à origem da consciência, ao mundo da vida. Autores como Merleau-Ponty, e muitos outros, vieram depois e aproveitaram o seu caminho.

Heidegger disse que a ciência não pensava. Mas o que ele queria dizer era que a ciência não se metia no mistério do Ser. As ciências apenas se interessam com o modo do Ser. Como ele existe. Os métodos científicos exploram o ente do Ser. Ao contrário de Heidegger, Wittgenstein chega à filosofia através da lógica e da matemática. O seu primeiro e único livro em vida, de 1921–1922, o Tratado Lógico-Filosófico, resulta dos estudos, feitos com Bertrand Russell, sobre os fundamentos da lógica e da matemática. A linguagem e a lógica são temas essenciais do Tratado. No entanto, aquilo que interessa a Wittgenstein é a linguagem em geral, tal como esta permite o nosso pensamento sobre o mundo, e não apenas questões técnicas de filosofia da lógica ou da matemática.

Apesar da suposta divisão entre o primeiro e o segundo Wittgenstein, é inevitável ouvir nele ecos da Crítica da Razão Pura de Kant, ecos da ideia de delimitar o cognoscível a partir de dentro. É inevitável recordar o propósito da Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura em que Kant se ocupa a desfazer as ilusões (naturais) da Razão. Mas talvez não seja inevitável em qualquer circunstância: é claro que estes ecos não serão ouvidos se se chegar a Wittgenstein a partir da filosofia de língua inglesa, uma tradição em que histórica e conceptualmente ressoa sobretudo o empirismo, a tradição de John Locke, George Berkeley e David Hume. Embora considere que o empirismo está muito próximo de ser a orientação acertada em filosofia, e que é extremamente importante considerarmos, ao pensarmos sobre o pensamento, o que nos inclina a sermos empiristas, Wittgenstein é, decididamente, tal como Frege (o seu «mestre»), um anti-empirista.

Por infelicidade não há nada mais difícil de reproduzir em literatura do que um homem que pensa. Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: “pensando nisso o tempo todo”. E com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque esperamos por elas. Constituem em grande parte um resultado positivo do caráter, de inclinações constantes, de ambição persistente, de ocupação incansável. Como deve ser monótona essa persistência!

Por outro prisma, a solução de uma tarefa intelectual não acontece de modo muito diferente do que quando um cão, levando um bastão na boca, quer passar por uma porta estreita; ele vira a cabeça para a esquerda e a direita, até o bastão entrar, e nós agimos de modo muito parecido, apenas com a diferença de que não tentamos fazer isso de modo inconsciente, mas, pela experiência, já sabemos mais ou menos como proceder.

E embora uma cabeça inteligente tenha muito mais habilidade e experiência nos movimentos do que uma cabeça tola, a solução também para ela chega de forma inesperada, acontece de repente, e sentimos com vago espanto que os pensamentos se fizeram por si, em vez de esperarem pelo seu autor. Essa sensação de assombro é o que muita gente chama atualmente de intuição, depois de antigamente a chamarem inspiração, e acreditam dever enxergar nela algo de supra pessoal; mas é apenas algo impessoal, isto é, a afinidade e solidariedade das próprias coisas que se encontram dentro de uma cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se percebe dela nesse processo. Por isso o pensamento, enquanto não está acabado, é um estado muito miserável, parecido com uma eólica de todas as volutas do cérebro; e quando fica concluído, já não tem a forma de um pensamento, como se experimentou, mas tem a forma de algo pensado, o que infelizmente é impessoal, pois o pensamento se dirige para fora e se comunica ao mundo. Praticamente não se consegue surpreender o momento entre o pessoal e o impessoal, quando alguém pensa, e por isso o pensamento é um fato tão embaraçoso para os escritores, que estes o preferem evitar.

O homem sem qualidades, porém, estava refletindo. Pode-se deduzir que ao menos em parte isso não era assunto pessoal. O que era, então? Um mundo que entra e sai; aspetos do mundo que se vão juntando numa cabeça. Não lhe ocorrera nada de importante; depois que se ocupara da água como exemplo, nada lhe ocorrera senão que a água é um ente três vezes maior que a terra, mesmo que se considere apenas o que todo mundo reconhece como água, rio, mar, lago, fonte. Por muito tempo se acreditou que é aparentada com o ar.

[de O Homem Sem Qualidades, Robert Musil]

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