terça-feira, 26 de setembro de 2023

O cérebro humano não é um computador





Os nossos julgamentos e decisões são limitados pela posição que ocupamos no tempo e no espaço, bem como nossos interesses e conhecimento adquirido. Uma vez que um considerável corpo de evidências experimentais sugere que as funções cerebrais podem ser influenciadas de forma determinante pelo contexto, os autores desenvolvem um arcaboiço teórico plausível para guiar um entendimento mais profundo dos caprichos da mente humana, bem como do cérebro de onde ela emerge, com o conceito de cérebro relativístico.

Na base de experiências laboratoriais com ratinhos, e tendo como pressuposto de que dispomos de um ponto de partida para o conhecimento de um modelo de mundo proveniente da genética, e acrescido das memórias vivenciadas entretanto acumuladas, é postulada, como teoria, a hipótese do cérebro relativístico. Antes da chegada dos sinais que o corpo vai captando do meio ambiente e envia para o cérebro, dispomos de instruções antecipatórios sobretudo no córtex cerebral, mas em parte também no diencéfalo. Tais disposições antecipatórias enviam sinais para todo o corpo no sentido de guiar a sua exploração do meio ambiente. É a atividade elétrica de neurónios entre o córtex e o tálamo que modela o comportamento. E é assim que o estado interno do cérebro se ajusta ao mundo exterior. Nesse sentido, o cérebro relativiza o modelo que antecipou a fim de impor as suas condições ao mundo que o circunda.

Ronald Cicurel e Miguel Nicolelis - um matemático e um neurocientista - juntaram-se para potenciar as suas capacidades a fim de irem mais além do ponto crítico que ainda divide os cientistas que estudam o cérebro e os caprichos da mente humana. Ainda existem questões controversas no campo da neurociência, como por exemplo a possibilidade de os computadores digitais simularem completamente as funções mais elaboradas do cérebro humano. Combinando os conhecimentos matemáticos à volta dos algoritmos, com os conhecimentos neurobiológicos e evolucionários, estes dois investigadores refutam que uma máquina de Turing, não importa quão sofisticada, possa algum dia realizar tal simulação. 

A partir dessa tese, Ronald Cicurel Miguel Nicolelis propõem uma nova teoria para descrever o funcionamento do sistema nervoso humano, a que lhe dão o nome de hipótese do cérebro relativístico. É baseada em décadas de descobertas e achados neurofisiológicos, e psicológicos, que desafiam o dogma da Máquina de Turing. Tentam contrariar a hipótese pseudocientífica de que a simulação de seres humanos por máquinas está para breve. Na opinião dos autores, a crença de que máquinas digitais podem simular todos os comportamentos humanos não passa de mais uma utopia. 

Aquilo que pensamos ser a realidade resulta de encontros e desencontros entre dois sinais espaciotemporais – um gerado dentro do cérebro e o outro proveniente da transdução de estímulos do mundo exterior. A tão procurada verdade absoluta não existe, porque o cérebro não é um mero escravo daquilo que lhe chega captado pelos órgãos dos sentidos. Essa colisão neurofisiológica sintetiza o princípio da contextualização. A forma como o cérebro responde como um todo, seja em resposta a um estímulo sensorial, seja para produzir um comportamento motor particular, depende do seu estado global interno a cada momento. O que o cérebro faz é interpretar sinais sensoriais ao longo dos seus diferentes estados dinâmicos internos. O nosso cérebro influencia decisivamente a maneira como cada um de nós constrói um modelo de realidade. O nosso cérebro, dada a sua peculiar infraestrutura anatómica e fisiológica, cria uma variedade enorme de comportamentos por meio de propriedades emergentes de seus circuitos neurais.

Hoje sabemos que a produção da fala depende da ativação simultânea de várias áreas corticais e subcorticais do cérebro. A razão pela qual acidentes vasculares cerebrais produzem afasia é porque eles destroem, além da massa cinzenta, grandes porções da substância branca subjacente, que contém os feixes densos de fibras nervosas que conectam uma enorme rede de regiões cerebrais com o lobo frontal. A principal consequência dessa destruição maciça de cabos nervosos essenciais de comunicação é uma desconexão funcional catastrófica da rede neural responsável pela produção da fala. Assim, o paciente com um AVC que tenha atingido a conhecida área de Broca, perde a fala não pela destruição de uma única área cortical, mas sim como resultado de uma destruição irreparável das vias de comunicação do lobo frontal. Portanto, a ideia de que o córtex está dividido rigidamente em áreas funcionais especializadas, e que algumas dessas regiões processam informação unimodal, não corresponde totalmente ao que acontece realmente. 

O cérebro molda-se às solicitações do meio interno do corpo e do ambiente que lhe chegam pelos vários canais sensitivos. É uma estrutura multidimensional, mas como se fosse feita de plasticina para ser moldada numa configuração ótima de processamento de informação que levará, a cada momento da nossa existência, à génese da melhor solução neuronal possível para a realização comportamental. As áreas que se reforçam em diferentes regiões do córtex, para tarefas especializadas, não são imutáveis. Podem-se alterar rapidamente, de acordo com a tarefa a que o cérebro tem de corresponder.

Não existem fronteiras espaciais absolutas, ou fixas, entre as áreas corticais mais ou menos especializadas. O córtex é um continuum espaciotemporal neuronal. Funções e comportamentos são alocados ou produzidos por meio do recrutamento particular desse continuum de acordo com uma série de restrições, entre as quais se encontram a história evolutiva da espécie, o layout físico do cérebro determinado pela genética e pelo processo ontogenético, o estado da periferia sensorial, o estado dinâmico interno do cérebro, restrições do corpo que contém o cérebro, o contexto da tarefa, a quantidade total de energia disponível para o cérebro e a velocidade máxima de disparo de um neurónio. Neste sentido, o cérebro não é um mosaico hierárquico de áreas discretas, segregadas, altamente especializadas e virtualmente autónomas.


O conceito de relativismo nas ciências sociais e humanas tem má fama, e a controvérsia, extremamente acirrada, continua. Dessa forma, não é surpresa que o pensamento relativístico tenha gerado um intenso debate, envolvendo visões extremamente contraditórias sobre o que a prática da investigação científica de facto significa. Uma vez que todas as descobertas emergem de uma interação entre a mente e a natureza, os cientistas devem guardar uma certa reserva de ceticismo quanto às suas certezas. 
O conjunto de restrições fisiológicas que o processo da evolução natural impôs ao sistema nervoso desempenha o papel equivalente àquele que a luz tem na teoria da relatividade. Há uma constante biológica universal da qual não podemos fugir, e ao redor da qual os modelos cerebrais se criam. A evolução das espécies animais em termos gerais, e a dos mamíferos e primatas em particular, tem de ser considerada como a fonte dos limites ao redor do quais giram os mecanismos responsáveis pela génese da mente. A evolução natural define os limites biológicos para o corpo que o cérebro habita. E é daqui que temos de partir para a realização daquilo a que chamamos mente humana. Devido aos limites operacionais dos olhos, ouvidos, pele, língua e nariz, nós vemos, ouvimos, tocamos, provamos e cheiramos apenas uma pequena fração do mundo que existe à nossa volta.

O processo evolutivo também garantiu ao cérebro humano acesso a um precioso vislumbre de experiências passadas. Isso se dá porque vestígios das características de um planeta Terra que já não existe mais, enterrados dentro de nossos circuitos cerebrais, continuam a influenciar o modo como a mente opera, uma vez que eles ajudaram a moldar o espectro de estratégias neurofisiológicas e comportamentais que utilizamos para garantir a realização de nossos objetivos mais fundamentais, como sobreviver e reproduzir — e extrair o maior prazer possível dos breves interlúdios que separam essas duas tarefas árduas.

A capacidade de criar ferramentas poderosas, que trabalham em todas as escalas da natureza, expandiu consideravelmente o alcance e o impacto que o corpo humano pode ter no universo. Ao combinar essa capacidade de criar ferramentas com um potencial para aprender e adaptar por toda a sua existência, o cérebro humano especializou-se na fina arte de incorporar ou assimilar os próprios artefactos que ele cria como uma extensão contínua dos modelos mentais que definem o corpo que ele silenciosamente habita. Em vez de ser um pintor fiel e passivo das cenas criadas no mundo exterior, ou um espelho, o cérebro humano impõe o seu arcaboiço probabilístico em tudo o que o corpo é capaz de captar e manipular. Informação multissensorial que apenas capta uma amostra limitada do mundo exterior através da atividade elétrica interna que define o ponto de vista próprio do cérebro que foi formado por uma história individual longa e aleatória de encontros prévios. São esses encontros que preenchem aquilo que é designado por memória emocional, o repositório do que é encontrado a cada instante e catalogado como agradável ou desagradável, e que confere significado às sensações traduzidas na forma de emoções e sentimentos.

É assim que nem o nosso sistema nervoso, nem a mente humana que emerge dele, podem ser comprimidos na forma de um algoritmo computacional clássico. Por conseguinte, o cérebro humano como um todo é simplesmente não computável. Não existe nenhuma equação que poderia gerar coisas como beleza, prazer e boa poesia, para mencionar apenas três exemplos que provavelmente fazem parte de uma lista infinita. Para uma inteligência de máquina, tal máquina terá de se resignar a ser assimilada por um modelo cerebral e se transformar numa mera extensão do sentido do "eu" de alguém feito de sangue, carne e osso. Evidentemente, se a mente humana é não computável, existe pouca esperança de que físicos teóricos sejam capazes de produzir uma teoria reducionista radical o suficiente para extrair uma Teoria de Tudo.

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