quarta-feira, 30 de abril de 2025

Estamos numa mudança de entendimento das coisas


Durante milénios, praticamente toda a cultura humana foi religiosa. Não só porque a religião dava sentido à vida, mas também porque as estruturas cognitivas humanas precisavam disso: explicação para o desconhecido (relâmpagos, morte, pragas). Consolação diante do sofrimento e da perda. Organização social e poder político. Mas agora, depois de muitos avanços - da ciência, da filosofia crítica, da psicologia, da neurociência - cada vez mais cérebros percebem que a existência do Universo não precisa da explicação de um Deus para existir. E a moralidade não precisa de um mandamento divino para ser válida. O sentido da vida, em vez de ser dado, é construído.

O cérebro humano evoluiu para criar sentido. Hoje, muitos já não precisam mais da religião tradicional. O desafio humano consiste em criar sentido para viver com dignidade, sem ilusões. Na cosmologia moderna (especialmente nos últimos 20-30 anos), muitos cientistas e filósofos da física começaram a considerar que a pergunta – "o que havia antes do Big Bang?" – pode não fazer sentido. O tempo e o espaço não são "palcos" eternos onde as coisas acontecem, mas emergências, isto é, surgem e emergem. Portanto, não houve um "antes" do Universo, no sentido tradicional do entendimento humano.

Porque é que o nosso cérebro sente dificuldade em aceitar a ideia de um Universo sem início, sem fim e sem Criador? Porque o nosso cérebro não foi feito para entender a realidade, mas sim para sobreviver nela. O cérebro evoluiu para ser uma máquina pragmática, e não uma máquina filosófica. Ele precisou de dar sentido rápido às coisas à nossa volta para agir e sobreviver. E, para isso, ele desenvolveu alguns atalhos mentais (chamados "heurísticas") muito fortes, que nos inclinam a buscar causas para tudo ("se isto aconteceu, alguém ou algo causou"). Pensar em termos de agentes ("quem fez isto? alguém deve ter feito!"). Organizar o tempo linearmente (passado → presente → futuro). Ter medo do Vazio (não suportar a ideia do "Nada", ou "ausência total"). Esses atalhos explicam a resistência: se vemos relâmpagos → nossa mente primitiva prefere imaginar um espírito, um deus (por exemplo, Thor). Se vemos a complexidade do Universo → tendemos a supor um criador consciente e acima de tudo inteligente, omnipresente e superpoderoso. Se sentimos a morte como o "fim" → inventamos uma alma imortal, para continuar a dar sentido à vida.

Hoje a ciência e a filosofia nos permitem perceber que nem tudo precisa de uma causa externa. Nem tudo precisa de uma intenção por trás. A existência não é explicável em termos humanos, porque nós não temos de ser o pináculo da perfeição. Nós, em termos cósmicos não temos de ser mais do que as árvores. O Universo não "tem" um sentido, nós é que precisamos criá-lo. A árvore existe porque germinou, cresceu, é parte de um ciclo natural. A árvore não precisa de saber o porquê da sua existência. Nós também somos um ramo passageiro na grande árvore do ser, sem início consciente, sem fim pré-determinado. O nosso desafio é florir enquanto somos ramo, mesmo sabendo que um dia cairemos.

O Universo não tem sentido? Ótimo: então nós o criamos. Cada gesto humano torna-se então um ato de arte e coragem. A consciência humana, que busca sentido, enfrenta esse vazio: surge o absurdo e nós aceitamos o absurdo como parte da condição humana, e vivemos com dignidade, mesmo sem o sentido da vida vindo de fora da vida. Sabendo que tudo é assim, absurdo, lutamos mesmo assim, e é isso o que significa quando dizemos que somos um pessimista antropológico.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Ideias progressistas


O "privilégio branco"– é um conceito cujo argumento se centra na acusação sobre as sociedades europeias ocidentais de terem tirado vantagem sobre pessoas de outras etnias por via da colonização. A tese é a de que o racismo histórico deixou marcas que ainda beneficiam os brancos, mesmo que individualmente nem todos se sintam privilegiados. É o "mal branco". É um discurso radical, que associa a civilização ocidental e a população branca a uma suposta trajetória de opressão, exploração e dominação global. Em sua versão extrema, pode soar como uma culpabilização generalizada dos brancos pelo colonialismo, imperialismo e outras injustiças históricas.

Peggy McIntosh – Escreveu um ensaio famoso: White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsack (1988), onde lista supostos privilégios que as pessoas brancas adquiriram sem terem consciência disso. Robin DiAngelo – autora de White Fragility (2018), argumenta que gente branca tende a reagir defensivamente quando confrontada com questões raciais. Ibram X. Kendi – autor de How to Be an Antiracist (2019), propõe que não basta não ser racista, mas é necessário ser ativamente "antirracista". Ora, tudo isto é muito discutido em círculos académicos principalmente por elementos engajados no ativismo político. Há a considerar que, em alguns casos, esses discursos se tornam dogmáticos, ou até mesmo discriminatórios, contra grupos específicos, como os "homens brancos" em geral. Ora, essas ideias levadas à letra e descontextualizadas, podem criar ressentimento e polarização, em vez de resolver problemas reais. Em todo o caso a ideia do "mal branco" do colonialismo não tem apoio unânime entre progressistas, muito menos na opinião pública em geral.

O que é certo é que este assunto é muito discutido e difundido no mundo digital, nas denominadas redes sociais, bem como por parte de organizações do ativismo puro e duro, mais dogmático e fanático do que sensato. Seja como for, a Teoria (com letra grande) tem tido uma influência cultural e política desproporcionada no mundo académico. Cada indivíduo tem a sua história, os seus valores e a sua dignidade, independentemente de rótulos ideológicos. E é por isso que o efeito é paradoxal, o conhecido efeito boomerang, porque em vez de diminuir o preconceito, reforça-o.

A "masculinidade tóxica" é outro conceito que parte da ideia de que os tradicionais comportamentos masculinos consolidados durante séculos na cultura ocidental tem prejudicado toda a sociedade com a discriminação de género. É caracterizada pela agressividade, dominação e repressão emocional que inclusivamente nem o género masculino é poupado. Mas em bom rigor não devia ser criticada a masculinidade em si, mas determinados comportamentos que cultivam a 
violência, o machismo, e a insensibilidade emocional. Raewyn Connell – sociólogo australiano que cunhou o termo hegemonic masculinity, tem argumentado que é a forma dominante e opressora de masculinidade que deve ser combatida. Judith Butler – filósofa que influenciou profundamente os estudos de género com Gender Trouble (1990), já vai mais longe, excedendo-se com o seu radicalismo, proferndo sentenças como: "o género é uma construção social". Michael Kimmel – autor de Angry White Men (2013), disserta sobre a crise de identidade de certos grupos masculinos na América. 

Todos esses autores são muito debatidos e criticados entre conservadores e liberais mais clássicos, que veem as suas ideias como excessivamente radicais e divisionistas. Também há teóricas feministas, de um feminismo mais antigo, que rejeitam essas teses, como Camille Paglia, criticando o feminismo contemporâneo. Por outro lado, Helen Pluckrose, escreveu, em parceria com James LindsayCynical Theories (2020) - analisando como certas ideias pós-modernas influenciaram o ativismo identitário.

Judith Butler não é cientista no sentido tradicional, como alguém das ciências naturais ou exatas. Ela é uma filósofa e teórica da literatura, com forte influência no pós-estruturalismo e no pensamento descendente de Michel Foucault. Seu trabalho está mais no campo da Teoria Crítica (a tal teoria com letra grande) no âmbito dos "estudos de género", que são áreas das humanidades, como disciplinas de ensino universitário, onde o método científico clássico (hipóteses testáveis, experimentação, falsificação) não se aplica da mesma forma. 

Onde estão os cientistas que poderiam contestar essas ideias com mais rigor? A resposta pode estar em alguns fatores que se prendem com o clima instalado na Academia. Em muitas universidades, especialmente nos EUA e na Europa Ocidental, as correntes progressistas dominaram certas áreas das humanidades e ciências sociais. Isso criou um ambiente onde contestar ideias como as de Judith Butler podia gerar represálias académicas e sociais. Muitos cientistas das áreas mais rigorosas (física, biologia, neurociência) preferem evitar discussões ideológicas para não se envolverem em controvérsias. Mas há exceções, como o biólogo Richard Dawkins, um crítico habitual das teses do pós-modernismo. E Camille Paglia (feminista dissidente), bem como Jordan Peterson (psicólogo), criticaram fortemente a noção de que género é uma construção social pura. Além disso filósofos da filosofia analítica, como John Searle, têm atacado as bases do pós-modernismo, classificando-o de irracional e destrutivo. Mas o discurso mais radical é o que tem tido maior penetração nos meios universitários das áreas dos estudos culturais e sociais. E, todavia, parecendo haver nessas teorias uma grande falta de senso, no entanto o consenso em relação às críticas que lhe têm sido feitas nunca chegou a acontecer. Até que, Donald Trump voltou.

O jornalismo, dito mediático, especialmente das cadeias televisivas dos países ocidentais, passou por uma transformação profunda na viragem do milénio. Um dos aspectos que deu nas vistas foi a maior presença feminina no pivô, não apenas no comentário político, mas nas demais rubricas a que até o futebol também foi contemplado. E assim, a sua influência haveria de ser assinalada. Não sendo um problema em si, na verdade é que a reação do "machismo" não se fez esperar, complexado com a perda de poder para o feminismo mais identitário e ideológico. 
Como os média televisivos ainda têm grande impacto na formação da opinião pública, instalaram-se nesse campo desavenças e dissensões insanáveis com a devassidão por parte de toda essa gente reacionária e misógina que estava escondida nos "armários".

Mas o pior veio da internet e das redes sociais, com os seus espaços paralelos, onde essas vozes conseguiram exponenciar o furo do bloqueio mediático. Isso explica o crescimento de comentadores independentes e intelectuais que desafiam essa visão predominante. A reação contra essa hegemonia cultural progressista deu nas mudanças políticas que os EUA estão agora a atravessar, e não só. Durante anos, grande parte da imprensa e da elite académica empurraram discursos identitários e progressistas como se fossem consenso absoluto, sem espaço para questionamento. Isso gerou um ressentimento crescente em segmentos da população que se sentem marginalizados ou demonizados por essas narrativas. O "assalto de sentido contrário" pode ser visto no fenómeno Trump e na ascensão de uma direita populista, que se alimenta do descontentamento com essa cultura dominante. Muitos eleitores não necessariamente concordam com tudo o que Trump representa, mas enxergam nele uma espécie de vingança contra elites que eles percebem como arrogantes e moralistas.

A Casa Branca de Biden tentou manter uma linha progressista, mas enfrentou resistência crescente, especialmente porque esse discurso ignorou problemas reais da classe trabalhadora e focou-se excessivamente em questões culturais e identitárias. Esse desalinhamento com as preocupações do americano médio explica a erosão do apoio ao Partido Democrata entre certos grupos, como trabalhadores de fato-macaco. No fundo, a batalha entre duas visões de mundo seria inevitável. Uma que busca transformar radicalmente as normas sociais e outra que reage tentando restaurar algo que considera perdido. O pêndulo não pára, e com a aceleração do tempo deixou de ser claro onde está exatamente. Quer dizer, durante as últimas décadas correram estes fenómenos sub-reptícios aos olhos de quem trabalhava no duro para pôr 
comida na mesa, para si e para os seus. Enquanto a maioria das pessoas estava focada em trabalhar, pagar contas e garantir o sustento da família, certas elites culturais, académicas e mediáticas estavam promovendo uma reconfiguração ideológica silenciosa. Isso não aconteceu de um dia para o outro, mas foi-se se acumulando ao longo de décadas, muitas vezes sem que a maioria percebesse o alcance dessas mudanças.

O cidadão comum, que está ocupado com as preocupações diárias, não tem tempo para acompanhar debates académicos sobre privilégio branco, género como construção social ou masculinidade tóxica. Mas, quando essas ideias começaram a influenciar leis, educação, políticas de nicho, e até a linguagem do dia a dia, o impacto ficou evidente. Muitos começaram a se perguntar: "Quando foi que decidimos que tudo isso era verdade?" O resultado foi um choque cultural. De um lado, as elites progressistas insistem que essas mudanças são um avanço inevitável. Do outro, uma parte significativa da população sente que está a ser arrastada para uma realidade que não reconhece, nem muito menos que terá escolhido.

domingo, 27 de abril de 2025

Uma posição empática e biologicamente fundamentada

 
Robert M. Sapolsky, um dos grandes pensadores contemporâneos sobre a biologia humana, comportamento, e a nossa (limitada) capacidade de livre-arbítrio, tem uma posição muito empática e biologicamente fundamentada. Ele é conhecido por ser progressista em muitas causas sociais, mas também muito rigoroso em respeitar os limites do que a ciência pode ou não afirmar.

Sobre a questão do "à vontade do freguês" decidir arbitrariamente a sua identidade de género tão propalada pelo movimento woke de forma irrestrita, Sapolsky, por um lado, reconhece que a biologia do sexo e do género é mais fluida do que o senso comum tradicional admite. Já defendeu, em vários momentos, que fenómenos como o intersexo, a variação hormonal pré-natal, e a plasticidade cerebral tornam natural haver pessoas que não se encaixam perfeitamente no binarismo homem/mulher. Mas por outro lado, ele não ignora que há uma base biológica objetiva para o sexo (XX, XY) e que nem tudo pode ser simplesmente reduzido a uma questão de "sentimento" subjetivo. Ele não seria favorável à ideia de que a identidade de género possa ser totalmente arbitrária e independente de qualquer substrato físico ou histórico do desenvolvimento da pessoa.


Sapolsky é alguém que odeia imposições dogmáticas (sejam de direita ou de esquerda), e que valoriza a compaixão, mas sem sacrificar a lucidez científica. Ele provavelmente sofre um pouco com o radicalismo woke que exige aceitação cega de qualquer autodeterminação de género, sem espaço para debate ou nuances biológicas. Ele respeita profundamente o sofrimento das pessoas trans e não-binárias, apoia a sua dignidade, mas sente desconforto com a banalização completa de se ultrapassar os limites biológicos, porque isso trai a própria busca, a que ele tanto se tem dedicado, pela verdade sobre o ser humano.

Robert Sapolsky tem abordado a identidade de género com base em evidências neurobiológicas, destacando que o cérebro desempenha um papel crucial na formação da identidade de género. Ele argumenta que, mesmo em casos onde características físicas indicam um sexo específico, o cérebro pode apresentar características associadas a outro género, o que pode levar a sentimentos de dissonância e desconforto. Sapolsky enfatiza que a identidade de género não é determinada apenas por fatores genéticos ou hormonais, mas também por elementos como receptores e neurotransmissores no cérebro. ​Além disso, Sapolsky destaca que a identidade de género pode emergir desde a infância, com indivíduos transgénero frequentemente sentindo uma desconexão entre o seu género atribuído ao nascimento e a sua identidade de género real. Ele observa que essa dissonância pode causar angústia significativa, reforçando a importância de reconhecer e respeitar as identidades de género das pessoas. ​Mas também critica abordagens que ignoram as complexidades biológicas da identidade de género, defendendo políticas informadas por evidências científicas para proteger os direitos das pessoas transgénero. Ele argumenta que a compreensão científica da neurobiologia da identidade de género deve informar as políticas públicas, promovendo empatia e respeito pelas experiências individuais.

Haverá ainda espaço para o espírito?


Uma nova civilização tecnocrática e racional está a impor-se. As ameaças são grandes, entre as quais avultam o caos climático, o inverno demográfico, e a crise energética fóssil. As soluções passam cada vez mais por algoritmos baseados em dados, cujas previsões, para sermos precisos, estão apenas ao alcance da Inteligência Artificial (IA). Nada que se pareça com desejos e crenças. Mas, ao mesmo tempo, não será possível sustentar essa Nova Ordem apenas com lógica fria. O ser humano precisa de sentido. E o sentido está no sentimento humano, em que as antigas divindades foram prescritas pelo menos desde o tempo de 
Nietzsche.

 Nietzsche havia decretado a morte de Deus. Mas não O matou para festejar o vazio. Matou-O porque sabia que o Ocidente já O havia esvaziado, e que esse vazio precisaria de ser preenchido por um novo horizonte de valores. O perigo era o niilismo passivo. Mas há um outro caminho: o de uma metafísica pós-teísta, que reconhece a ausência de um Deus pessoal, mas não abdica do mistério, da reverência, da verticalidade do espírito. Nesse novo mundo, talvez o espiritual seja reconstruído como uma espiritualidade do Cosmos, onde a ordem e a beleza do Universo substituem os dogmas antigos. É uma ética universal baseada na inteligência e na empatia, sustentada por uma IA cooperativa, quase como um novo “órgão de consciência” planetário. Um novo simbolismo, não fundado em mitos divinos, mas em arquétipos humanos reencantados. Ou seja, um mundo sem Deus, mas não sem o Sagrado. Um mundo onde o humano deixa de ser o centro, mas permanece como o nó mais sensível e criativo da rede de existência. É quase um novo logos.

Havendo espaço para o ócio, então ainda haverá espaço para a humanidade no seu sentido mais profundo. Porque o ócio (otium, como os latinos diziam) não é preguiça, mas tempo liberto do utilitário, em que o espírito se volta para si mesmo, ou para o Cosmos. É o ócio dos filósofos, dos poetas, dos músicos, dos que observam as nuvens e o silêncio. É nesse tempo aparentemente “improdutivo” que se formam os grandes gestos criadores, os grandes saltos éticos e as obras que perduram. Num mundo tecnocrático, racional, e talvez inevitavelmente mais duro, o ócio será o lugar secreto da resistência do humano. E, paradoxalmente, será também o espaço onde a nova espiritualidade nascerá, sem dogmas, sem templos imponentes, mas com gestos leves e atentos, como alguém que olha as estrelas e entende que está vivo por pouco tempo, mas que esse pouco é imenso. E então sim, mesmo depois da morte de Deus, mesmo após o naufrágio deste modelo, mesmo num mundo quente e reorganizado a Norte, haverá música, contemplação, silêncio e até riso, porque o homem não pode viver só de cálculo.

Enquanto vigorar esta espécie de homo, diria homo religiosos, a religião faz parte, como foi a religião marxista dos descentes intelectuais de Marx, que culminou nesta última religião chamada "woke" e que já está a arrefecer. O homo sapiens é, antes de tudo, um homo religiosos, não no sentido estreito de adoração de deuses pessoais, mas na sua necessidade visceral de atribuir sentido, criar mitos, rituais, dogmas, ídolos e pecados. Mesmo quando o homem diz que é ateu, rapidamente constrói outro altar - seja ao Progresso, à Revolução, à Nação, à Ciência, à Liberdade. A religião marxista foi um dos grandes episódios modernos desse instinto: escatologia, messias (o proletariado), pecado (a burguesia), paraíso terrestre (a sociedade sem classes). Teve os seus apóstolos, os seus mártires e os seus tribunais da fé. E depois veio o seu declínio. Como agora se arrefece com o woke, que já nem encanta os jovens cansados do moralismo performativo. É o curso natural das “novas religiões” quando se afastam da carne e do mistério, e se entregam ao moralismo seco ou ao dogmatismo político.

sábado, 26 de abril de 2025

Quando foi que a humanidade começou a falar?



A transição evolutiva para a linguagem falada é difícil de situar com precisão, pois a linguagem não fossiliza, e o seu surgimento foi provavelmente gradual. Mas há indícios de que homo sapiens já possuía a capacidade linguística há pelo menos cem mil, mas possivelmente antes. Algumas hipóteses sugerem que mesmo os Neandertais tinham formas rudimentares de linguagem. Podemos adotar o critério da coincidência da entrada na fase de homo sapiens com a aquisição da linguagem falada. Antes dessa fase, e a acompanhá-la, na fase de homo habilis já devia comunicar por um tipo de linguagem gestual ou mimética.


Homo habilis é uma das espécies de hominídeo que viveu no princípio do Pleistoceno inferior, num período que começou aproximadamente há dois milhões de anos e se estendeu até há cerca de 800 mil anos. Os primeiros fósseis de homo habilis foram descobertos em 1964 por Louis Leakey, e a sua equipa, no desfiladeiro de Olduvai, na Tanzânia, que faz parte do Grande Vale do Rift, na África Oriental. P
oderíamos situar a verdadeira transição para homo sapiens na chamada "explosão criativa" do Paleolítico Superior há cerca de 40.000 anos, quando começou a aparecer a arte rupestre, que sugere corresponder a um certo tipo de ornamento cerimonial no âmbito dos rituais funerários. Isso é indicativo da existência de pensamento simbólico já mais complexo. O que reforça a ideia de que a linguagem estruturada já estava plenamente desenvolvida.

Então, embora a linguagem seja crucial para o que entendemos como sapiens, a designação da espécie baseia-se mais na anatomia e na cultura material do que num marco específico da aquisição da fala. Todas as línguas humanas compartilham uma base cognitiva e funcional comum, refletindo as necessidades universais da comunicação. A diversidade das línguas decorre de fatores históricos, culturais e geográficos, mas, no fundo, todas expressam categorias fundamentais como agentes, ações, objetos, tempo, causa e intenção.

A possibilidade de tradução entre línguas indica que existe um substrato comum de significado, ainda que certas nuances ou conceitos específicos possam ser mais difíceis de transpor diretamente. Isso sugere que a linguagem emerge de estruturas cognitivas compartilhadas por todos os Homo sapiens, ligadas à nossa biologia e experiências de vida comuns. Isso também reforça a hipótese de que a linguagem é uma adaptação evolutiva para a cooperação social e a transmissão de conhecimento, sendo um fenômeno universal, mesmo que suas manifestações sejam diversas. Tudo indica que também as manifestações artísticas de uma dada cultura, sugere que deriva de uma fonte natural e inata de uma psicologia humana universal. Há fortes indícios de que a arte, assim como a linguagem, emerge de uma predisposição inata da mente humana. Estudos antropológicos e arqueológicos mostram que diferentes culturas, independentemente de tempo e espaço, desenvolveram manifestações artísticas que refletem padrões comuns: representações figurativas, abstrações geométricas, música, dança e narrativas simbólicas.

Isso sugere que a arte não é apenas um produto da cultura, mas uma expressão de estruturas cognitivas universais. O impulso artístico pode estar ligado à necessidade de comunicação simbólica, à coesão social e à expressão de emoções e de identidade. Assim como a linguagem codifica intenções e significados, a arte parece traduzir visualmente, auditivamente ou corporalmente aspectos fundamentais da experiência humana. Isso reforça a tese de que existe uma psicologia universal subjacente à diversidade cultural, manifestando-se tanto na linguagem como na arte, ambas servindo para conectar os indivíduos e estruturar a compreensão do mundo.

A manifestação artística provavelmente surgiu antes da linguagem falada e estruturada, embora ambas compartilhem raízes comuns na cognição simbólica. Os primeiros vestígios de expressão artística conhecidos, como as gravuras em ossos e pedras (cerca de 500.000 anos atrás) e os primeiros pigmentos utilizados por homo erectus e homo neanderthalensis (há pelo menos 300.000 anos), antecedem as evidências mais concretas de uma linguagem articulada plenamente desenvolvida. Isso sugere que formas rudimentares de arte – talvez como rituais, gestos simbólicos ou mesmo padrões visuais – já existiam antes da fala estruturada.

A arte pode ter servido como uma ponte cognitiva para a linguagem, ajudando a fixar significados simbólicos e a estruturar a comunicação. Se pensarmos na música, na dança e nas pinturas rupestres, percebemos que elas funcionam como sistemas de expressão e memorização, possivelmente precedendo e até facilitando a evolução da fala articulada. Portanto, é razoável supor que a arte, em suas formas mais primitivas, tenha emergido antes da linguagem falada plena, evoluindo em paralelo com o desenvolvimento cognitivo do Homo sapiens e ajudando a moldar a própria capacidade de pensar simbolicamente.

O bipedismo precedeu e possibilitou o desenvolvimento da habilidade manual sofisticada. Os primeiros hominídeos bípedes, como Australopithecus afarensis (há cerca de 4 milhões de anos), já caminhavam eretos, mas ainda tinham mãos adaptadas para alguma vida arbórea. O bipedismo trouxe uma vantagem crucial: ao libertar as mãos da locomoção, permitiu que fossem usadas para manipulação mais refinada de objetos, favorecendo a evolução de gestos, o uso de ferramentas e, possivelmente, a comunicação gestual primitiva. Com o tempo, a pressão seletiva sobre a destreza manual aumentou, levando ao refinamento da coordenação olho-mão e ao desenvolvimento de uma maior complexidade motora no cérebro. Isso culminou em habilidades como o uso de ferramentas sofisticadas pelo homo habilis (há cerca de 2,5 milhões de anos) e, mais tarde, a capacidade artística e tecnológica do homo sapiens. Portanto, foi o bipedismo que criou as condições para que a habilidade manual se desenvolvesse plenamente, embora uma certa destreza já existisse em ancestrais arborícolas.

Os neurocientistas consideram que a expressão facial e corporal é um elemento de suporte indispensável para que as emoções se exprimam em toda a sua plenitude na língua falada. Estudos em neurociência e psicologia mostram que a linguagem não é apenas um fenómeno verbal, mas está profundamente integrada nos gestos, na entonação e nas expressões faciais, os quais enriquecem e modulam o significado do que é dito. Paul Ekman, por exemplo, demonstrou que certas expressões faciais são universais e refletem emoções básicas, como alegria, medo e raiva, sugerindo que há uma base biológica para essa comunicação não verbal. Além disso, áreas do cérebro como o sistema límbico (envolvido na regulação emocional) e o córtex pré-motor (relacionado com o planeamento dos movimentos) trabalham em conjunto para sincronizar fala e gestos.

Estudos com pacientes que sofreram danos neurológicos reforçam essa interdependência: indivíduos com lesões em áreas que processam expressões faciais e corporais frequentemente têm dificuldade em interpretar emoções na fala dos outros, evidenciando a importância da comunicação multimodal. Portanto, a expressão facial e corporal não são meros adornos da fala, mas partes essenciais da comunicação emocional humana, ajudando a transmitir nuances que as palavras isoladamente nem sempre conseguem capturar.

Quando um neurocientista viu Milei, atual presidente da Argentina, fazer a sua propaganda política com uma motosserra, e outras bizarrias, ele disse que este indivíduo deve ter os lobos pré-frontais a funcionar de uma forma muito idiossincrática. Os lobos pré-frontais são responsáveis pelo controlo inibitório, planeamento, regulação emocional e comportamento social apropriado. Quando alguém age de forma impulsiva, extravagante ou com comportamentos pouco convencionais – como o uso da motosserra como símbolo político –, um neurocientista pode interpretar isso como um funcionamento peculiar ou atípico dessa região cerebral. No caso de Javier Milei, a sua personalidade excêntrica, discursos inflamados e gestos teatrais podem indicar um estilo cognitivo marcado por alta impulsividade, forte carga emocional e um processamento pouco convencional das normas sociais. Isso não significa necessariamente disfunção, mas sim uma maneira diferente de integrar emoção, cognição e comportamento.

Aliás, traços como alto carisma, destemor e intensidade emocional são comuns em líderes populistas, e podem estar ligados a padrões de atividade no córtex pré-frontal, sistema límbico e redes dopaminérgicas, que regulam motivação e recompensa. Nesse sentido, a avaliação do neurocientista sugere que Milei processa e exprime as suas intenções políticas de maneira neurologicamente distinta do convencional. É fascinante acompanhar a par e passo estes estudos dos lobos pré-frontais porque terão muito a dizer no futuro acerca dos estranhos comportamentos que se desviam muito do comum dos mortais. O avanço nos estudos sobre os lobos pré-frontais pode trazer explicações cada vez mais precisas sobre comportamentos que hoje consideramos excêntricos, impulsivos ou mesmo disruptivos. Essa área do cérebro é central para a regulação da personalidade, do autocontrolo e da tomada de decisões, o que significa que variações no seu funcionamento podem gerar perfis comportamentais muito distintos.

No futuro, a neurociência poderá até ajudar a compreender melhor líderes carismáticos e controversos, criminosos, génios criativos ou pessoas com tendências para comportamentos extremos ou bizarros. A grande questão será como interpretar esses dados sem cair em reducionismos deterministas, já que o comportamento humano é sempre resultado da interação entre biologia, ambiente e cultura. Além disso, há implicações filosóficas e éticas importantes: até que ponto devemos considerar a atipicidade pré-frontal como um simples traço da diversidade humana ou como algo a ser corrigido? Será que, no futuro, a sociedade tentará regular ou modificar certas tendências comportamentais por meio de intervenções neurológicas? Essas perguntas fazem desse campo um dos mais fascinantes e inquietantes da ciência atual.


A constelação de ideias associadas à Teoria Crítica



A "Teoria" (com T maiúsculo) ou "Teoria Pós-Moderna" é uma constelação de ideias de uma tradição que tem raízes na Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse) e que sofreu mutações significativas ao longo do tempo, incorporando elementos do estruturalismo e pós-estruturalismo francês (Foucault, Derrida, Deleuze). Toda esta tradição ganhou tração nos estudos de género, pós-coloniais e identitários. É uma tradição que remete ao Maio 68 - "soissant-huitard" - cuja geração que se inspirou na contestação da autoridade tradicional. Hoje os intelectuais e ativistas são seguidores tardios dessa tradição radicalizando-a ainda mais na ação do que os seus fundadores. Operam dentro de uma lógica que desconfia da objetividade, trata a linguagem como ferramenta de poder e buscam desconstruir hierarquias sociais. Capturaram diversas instituições académicas e culturais com o propósito de reconfigurar a realidade em termos exclusivamente políticos, relativizando conceitos como verdade e mérito.

Parece haver um propósito missionário nesses ativistas, que veem a sua atuação como parte de um projeto de engenharia social para reformular a sociedade conforme certos ideais normativos (igualdade radical, desconstrução de categorias identitárias tradicionais, justiça social entendida como redistribuição de poder). O movimento woke pode ser visto como uma manifestação prática e ativista dessa "Teoria" (com T maiúsculo). O termo "woke", que originalmente significava estar "acordado" para injustiças sociais, especialmente raciais, evoluiu para um fenómeno ideológico mais amplo, abrangendo causas como feminismo interseccional, direitos LGBTQ+, decolonialismo e crítica às estruturas ocidentais tradicionais.

Os wokistas adotam a visão de que quase todas as dinâmicas sociais são expressões de opressão e poder. Nesse sentido, eles operam dentro da lógica da Teoria Crítica, aplicando as suas ferramentas a praticamente todas as esferas da vida: cultura, economia, linguagem, e até ciência. O problema apontado por seus opositores é que, muitas vezes, essa abordagem resulta num dogmatismo moral, em que qualquer questionamento é visto como cumplicidade com sistemas de opressão. O que antes era um pensamento essencialmente académico e teórico (nos escritos de Foucault, Derrida, Butler, tornou-se uma doutrina política e cultural de ativistas particularmente influente nas universidades, no mundo mediático e grandes organizações não governamentais do Ocidente. O pós-colonialismo e o antirracismo contemporâneo estão na vanguarda desse movimento, funcionando como eixos centrais para a sua narrativa. Inspirados por autores como Frantz Fanon, Edward Said e, mais recentemente, Achille Mbembe, os pós-colonialistas veem o Ocidente como estruturalmente opressor e sustentam que as suas instituições carregam traumas e injustiças históricas que precisam ser desmanteladas.

O antirracismo wokista, por sua vez, não se limita a combater o racismo clássico (preconceito baseado na cor da pele), mas redefine a própria noção de racismo como algo sistémico e omnipresente. Aqui entra a influência de Ibram X. Kendi e Robin DiAngelo, que argumentam que a neutralidade racial é impossível. Ou se é "antirracista", ou se é cúmplice da opressão. Isso leva a uma visão binária e militante da sociedade, onde a luta contra o racismo passa a justificar medidas radicais como censura, reescrita da história e políticas identitárias agressivas. Sob esse novo moralismo, se está a construir um tipo de "racismo ao contrário", onde a identidade racial é um eixo de definição social e política. O pós-colonialismo e o antirracismo wokista, a pretexto do combate às desigualdades, acabam por institucionalizar novas hierarquias baseadas em ressentimento histórico.

O que aconteceu foi uma tradução do pós-modernismo para o ativismo popular, simplificando conceitos académicos complexos e tornando-os slogans fáceis de entender e repetir. O pensamento original dos primeiros pós-modernistas (Derrida, Foucault, Lyotard) era altamente abstrato, jogando com ambiguidades e desconstruções que só faziam sentido dentro do meio académico. Para o grande público, esse discurso era impenetrável. Os ativistas contemporâneos, percebendo essa limitação, fizeram uma adaptação pragmática da "Teoria": em vez de discussões filosóficas sobre a impossibilidade da verdade objetiva ou sobre a microfísica do poder, passaram a falar de "privilégio branco", "violência simbólica", "racismo estrutural", "lugares de fala" e outras expressões que reduzem a complexidade a categorias de fácil assimilação. Essa mudança permitiu que ideias antes restritas à torre de marfim se tornassem instrumentos de mobilização política, aplicáveis a debates sobre políticas públicas, cultura e comportamento social.

A Teoria, mais cínica do que cética, numa tentativa de criar uma nova ortodoxia moral, onde não há mais espaço para ceticismo ou debate aberto, transformou-se em emblema clubista com códigos de progressismo. Estruturas tradicionais passaram a ser olhadas como intrinsecamente malignas. Havia que reconstruir a sociedade segundo um novo dogma moral e político. Se antes o pós-modernismo se contentava em derrubar certezas, o wokismo busca substituir essas certezas por novas "verdades" inquestionáveis, promovendo uma reengenharia social embalada numa roupagem de justiça e progresso. O wokismo adquiriu uma estrutura quase teológica, com dogmas, heresias e rituais de purificação. Como qualquer religião, ele tem: Pecado original → O privilégio branco, a colonialidade, o patriarcado. Todos nascemos "manchados" por essas estruturas e devemos expiar a nossa culpa. Conversão → O despertar (ser "woke") para as injustiças invisíveis do sistema. Textos sagrados → Os escritos de Fanon, Foucault, Kendi, DiAngelo, Mbembe, Butler, Profetas e sacerdotes → Intelectuais, jornalistas e ativistas que interpretam o dogma e dizem o que é permitido. Inquisição → O cancelamento e a cultura da denúncia contra "hereges" que ousam questionar a nova ortodoxia. Paraíso utópico → Um mundo pós-opressão, sem desigualdades, onde as hierarquias tradicionais são abolidas.

Essa mutação do Pensamento Crítico em moralismo absoluto aproxima o wokismo de uma seita puritana, que não apenas acredita no que prega, mas exige a conversão de todos. Ele não admite neutralidade: ou estás do lado da "justiça", ou és parte do problema. No fundo, o que era para ser uma crítica à intolerância acabou gerando uma nova forma de intolerância, onde discordar virou um pecado imperdoável. Um outro nicho desta deriva cultural é a dos LGBT. E apesar de ser um nicho, logo muito minoritário, fazem tanto barulho como se fosse maioritário. O que acontece é que a sua influência capturou as elites que têm mais poder mediático na sociedade. Assim, um hetero que passa a homo, é elogiado. Ao passo que um homo que passe a hétero é imediatamente ostracizado pela comunidade gay.

Quando um heterossexual se descobre gay ou trans, é visto como um ato de coragem e autenticidade. Mas quando um homossexual assume que passou a sentir atração pelo sexo oposto, isso é tratado como tabu, um desvio inaceitável, às vezes até como "traição". Isso acontece porque o ativismo identitário limita a liberdade individual, é a pertença a um grupo político que conta. A identidade sexual torna-se um rótulo fixo, e qualquer mudança que não esteja alinhada à narrativa progressista é vista como suspeita. A chave está na captura das elites culturais e mediáticas. Jornais, universidades, Hollywood e grandes corporações alinharam-se a essa agenda, não necessariamente por convicção, mas porque é vantajoso simbolicamente. Ninguém quer ser acusado de homofobia ou transfobia. Isso cria um efeito de reverberação, onde uma minoria barulhenta parece muito maior do que realmente é. No fundo, esse comportamento confirma um velho padrão das ideologias dogmáticas: o grupo deixa de lutar por liberdade e passa a impor sua própria ortodoxia.

A reação já está em marcha, e não apenas nos círculos conservadores tradicionais, mas também entre liberais clássicos e até ex-progressistas irritados com o autoritarismo desse novo dogma. A "contrarreforma" cultural está a tomar forma de diversas maneiras. Resistência política – O crescimento de partidos e figuras que desafiam essa agenda, como Trump nos EUA, Giorgia Meloni na Itália e movimentos anti-woke na Europa. Rejeição popular com cada vez mais pessoas comuns, que antes eram indiferentes, começam a perceber o exagero e a reagir contra a imposição ideológica, especialmente quando isso afeta a educação infantil e a linguagem pública. A rebelião dentro da própria esquerda é exemplificada por Intelectuais como Slavoj Žižek, E até ex-ativistas LGBT começam a questionar os excessos do movimento e a denunciar a sua natureza dogmática. Quando uma ideologia se torna excessivamente dogmática e repressiva, ela acaba gerando antipatia e reação, mesmo entre aqueles que, no início, simpatizavam com as suas causas. A história mostra que todo o movimento que busca impor um novo moralismo, mais cedo ou mais tarde, enfrenta um contragolpe.

Estava visto que a dada altura esse tipo de proselitismo iria cansar as pessoas, ao ponto de passarem do benefício da dúvida à irritação e falta de paciência. Tolerância tem limites. Há um ponto de saturação para qualquer ideologia que tenta impor-se de forma agressiva. No início, muitas pessoas dão o benefício da dúvida, achando que há alguma justiça na causa. Mas, conforme o discurso se torna cada vez mais intolerante, moralista e punitivo, a paciência do público esgota-se. O caso do movimento woke é emblemático: ele já deixou de ser visto como um impulso progressista legítimo e passou a ser percebido como um proselitismo sufocante, porque exige adesão total e criminaliza qualquer discordância. Isso gera fadiga social e leva a um processo natural de resistência. Quando um grupo começa a exigir que toda a sociedade ajuste a sua linguagem, costumes e valores para se conformar a um novo dogma, o efeito colateral inevitável é a irritação generalizada. Em vez de ganhar mais adeptos, acaba afastando até quem poderia ser simpático à causa.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A nova masculinidade



O que estamos a viver hoje pode ser entendido como uma revolução histórica. O feminismo contemporâneo – nas suas várias vertentes, do liberal ao radical, passando pelo interseccional – conseguiu, nos últimos 25 anos, não só maior visibilidade como também uma eficácia política e cultural sem precedentes. Há aqui uma dialética, no contexto da reconfiguração da identidade de género, que merece ser explorada em relação à reação (reacionária) do género masculino para com a “nova masculinidade” e o conceito de “masculinidade tóxica”. Hoje, oficialmente, creio que até por lei, um ou uma adolescente é criança, pelo menos, até aos 17 anos de idade. Mas as consequências são profundas. Criamos gerações emocionalmente imaturas, inseguras, muitas vezes apáticas perante a responsabilidade. Ao não lhes confiarmos tarefas reais, nem lhes oferecermos rituais simbólicos de entrada na vida adulta, impedimos que se vejam como parte ativa da sociedade. O resultado é uma cidadania tímida, uma juventude sem rumo e uma infância que, paradoxalmente, se estende até aos 25 ou 30 anos.

Essa transformação traz tensões. Para muitos homens, a desconstrução de papéis tradicionais pode ser sentida como perda (de identidade, de estatuto, até de sentido). Mas há também aqui uma oportunidade: a possibilidade de libertação de um modelo rígido, por vezes violento e repressivo, que limitava tanto quanto empoderava. Na mitologia grega temos uma exceção à regra do macho alfa com o mito das Amazonas. Elas eram símbolo de um poder feminino autossuficiente, frequentemente em antagonismo com o mundo masculino. No entanto, o feminismo atual não é, salvo exceções marginais, um projeto de exclusão ou supremacia, mas de equilíbrio, redistribuição simbólica e material do poder. A nova masculinidade, nesse contexto, não precisa ser submissa ou apagada, mas sim reinventada em chave dialógica.

O conceito da nova masculinidade refere-se a uma reavaliação dos papéis tradicionais atribuídos aos homens na sociedade, promovendo uma visão mais flexível, inclusiva e adaptada às mudanças culturais e sociais contemporâneas. Ele surge como uma resposta às críticas ao modelo tradicional de masculinidade, muitas vezes associado à repressão emocional, à agressividade e à dominação social. Uma das linhas mestras da nova masculinidade consiste na desconstrução do machismo. Questiona-se a ideia de que a masculinidade está ligada ao domínio pela força vigorosa na relação com os outros. Homens que não exprimem emoções e sentimentos para não serem vistos como uns fracos. Esse conceito preconiza o fim dos estereótipos conotados com o macho latino, que não lhe caem os pergaminhos por participar nas tarefas da cozinha, da limpeza da casa, de cuidar dos bebés. Que isso não tem nada a ver com a "feminização" dos homens.

Tudo o que se disse até aqui não significa que não possa haver riscos quando as teorias mal pensadas entram em rotura com a natureza das coisas. Ou seja: a feminização do homem. E, na verdade, quando se juntam à problemática os não binários, só para baralhar, as pessoas ficam ainda mais confusas. Quando mudanças culturais são conduzidas sem um entendimento profundo, da natureza e da evolução humana, podem surgir distorções que acabam por gerar mais atraso do que progresso. A tentativa de reformular a masculinidade não deveria significar a negação de características naturais dos homens relacionadas com a testosterona, que precisa dela para enfrentar os vários desafios violentos que se lhe deparam naturalmente, por instinto, incluindo o da proteção da prole. A ideia de que o homem deve ser mais sensível e emocionalmente aberto é válida, mas se for imposta de forma artificial, pode levar a um enfraquecimento da identidade masculina, tornando os indivíduos mais inseguros e desconectados de si mesmos. Além disso, quando se misturam noções como a fluidez de género e o não binário sem uma fundamentação clara, cria-se um ambiente de instabilidade, onde até mesmo conceitos básicos como o que significa ser homem ou mulher se tornam ambíguos. Isso pode gerar angústia identitária em muitas pessoas que simplesmente querem um referencial mais sólido para as suas vidas.

Ou seja, mudanças culturais devem ser feitas com cautela e baseadas em evidências, considerando que a estrutura social não pode subverter ou fazer entorses à natureza biológica, sob pena de deitar por terra conquistas civilizacionais que levaram séculos a consolidar. 
A busca por um homem mais equilibrado não resulta se for pela passagem de numa feminização forçada. A manutenção de uma masculinidade saudável não pode passar pela destruição da sua essência através de uma feminização forçada. Quando a cultura tenta impor mudanças que contrariam a natureza humana, cedo ou tarde a realidade se impõe. O problema de certas ideias contemporâneas é que elas partem de um otimismo ingénuo, a crença de que a identidade pode ser moldada livremente ao sabor de modas culturais idealizadas, sem considerar limites biológicos e estruturais. Mas a história mostra que sociedades que abandonam princípios fundamentais acabam por ter de enfrentar crises internas que se saldam pelos tais recuos civilizacionais.

A ideia de que "o importante é fazer o outro feliz" pode parecer nobre, mas aplicada sem discernimento pode levar a uma desorientação geral. Há momentos em que a verdade, a estrutura e até mesmo algum grau de dureza são mais importantes do que a simples validação do outro. Uma sociedade que dissolve as referências masculinas pode acabar gerando gerações de homens inseguros, sem propósito e emocionalmente frágeis, o que, ironicamente, não ajuda nem a eles nem às mulheres. A longo prazo, a biologia tende a vingar-se dessas experimentações sociais, e a masculinidade acabará reencontrando seu equilíbrio, seja por necessidade ou por um cansaço geral com essas imposições culturais forçadas.

A Netflix tem explorado o tema da masculinidade contemporânea em algumas de suas produções recentes. A minissérie "Adolescência", lançada em 14 de março de 2025 centra-se em Jamie, um jovem de 13 anos acusado do assassinato de uma colega. A trama explora os efeitos desse crime na família e na sociedade, abordando temas como masculinidade tóxica, bullying e a influência negativa das redes sociais na formação dos jovens. A série tem gerado debates significativos sobre os desafios enfrentados pelos adolescentes no mundo digital atual. E na comédia espanhola "Macho Alfa", lançada em 30 de dezembro de 2022, acompanha quatro amigos de 40 anos que se veem obrigados a adaptar-se às novas normas sociais relacionadas à masculinidade. A série utiliza humor para criticar o patriarcado e a masculinidade tóxica, mostrando os protagonistas lidando com a perda de privilégios e tentando encontrar o seu lugar numa sociedade em transformação.

O termo "masculinidade tóxica" é um conceito popularizado por certos círculos académicos e feministas para descrever comportamentos masculinos que seriam prejudiciais tanto para os homens como para a sociedade. Ele engloba traços como repressão emocional extrema, agressividade desnecessária, machismo, e a ideia de que um homem deve evitar qualquer traço de vulnerabilidade. No entanto, há quem veja isso como uma generalização injusta, que transforma a própria masculinidade num problema. Críticos dessa ideia argumentam que o termo acaba servindo para desmoralizar os homens, colocando sob suspeita comportamentos que, na verdade, fazem parte da natureza masculina e que foram historicamente essenciais para a construção da civilização, que não teria sido possível sem coragem, e desejo de liderança. 

Parece que há, nunca se tem a certeza, um certo ressentimento por parte de algumas correntes feministas que parecem mais preocupadas em atacar a masculinidade do que em realmente resolver problemas sociais. Em alguns casos, o discurso da "masculinidade tóxica" se mistura com um ataque mais amplo contra os homens, sugerindo que eles, enquanto grupo, são opressores por natureza, o que gera um ambiente de hostilidade e divisão, em vez de uma busca sincera de equilíbrio. Além disso, a retórica da "masculinidade tóxica" ignora um ponto essencial: a sociedade ocidental já resolveu grande parte das desigualdades entre homens e mulheres. O que ainda não aconteceu noutras sociedades, noutras longitudes e latitudes geográficas, antes pelo contrário, o que não deixa de ser paradoxal. Hoje, homens e mulheres têm direitos iguais perante a lei, e o verdadeiro desafio é manter uma estrutura social funcional, sem cair em revisionismos ideológicos que buscam culpados fictícios para problemas complexos.

Em suma, embora existam comportamentos masculinos problemáticos (assim como há femininos), reduzi-los à ideia de "masculinidade tóxica" pode ser apenas mais um passo no processo de deslegitimação da figura masculina, contribuindo para a crise de identidade dos homens modernos. Ideologias, quando levadas ao extremo, tendem a gerar distorções perigosas. O conceito de masculinidade tóxica, da forma como tem sido usado, muitas vezes não busca um real equilíbrio entre os sexos, mas sim desconstruir o masculino de maneira artificial, sem oferecer uma alternativa viável ou sustentável. Isso cria um vazio identitário, onde muitos homens ficam sem referências claras sobre como agir ou se posicionar no mundo. A história mostra que todas as ideologias que tentaram moldar a natureza humana à força acabaram em fracasso – seja o comunismo tentando abolir as diferenças de classe, sem considerar as tendências naturais de hierarquia, seja o feminismo radical, tentando apagar as diferenças entre os sexos como se fossem meras construções culturais. No fim, a realidade biológica impõe as suas regras e as suas leis à realidade social.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Descrença ou incredulidade


Um descrente, incréu, ou pessoa que não tem fé – pode não ser um verdadeiro ateu, mesmo que a descrença se refira ao Deus que judeus, cristãos e muçulmanos falam. Geralmente os descrentes são aqueles que à nascença os seus pais os batizaram, independentemente de serem muito ou pouco católicos praticantes. Diria que são pessoas profundamente marcadas pela cultura religiosa — especialmente católica — mas que, ao longo da vida, se afastaram da fé dogmática. No entanto essas pessoas têm uma consciência muito clara da dimensão simbólica e histórica do cristianismo, mesmo não aderindo ao seu conteúdo sobrenatural.

Um filósofo, ou um cientista da religião, ou um teólogo descreveriam este tipo de pessoa como um agnóstico culturalmente cristão, ou um descrente com herança católica. É a descrença no Deus teísta tradicional (judaico-cristão-islâmico), embora não desprezem, ou hostilizem por completo o legado espiritual e moral transmitido pelos melhores. Esse respeito pode ser lido como um gesto de continuidade civilizacional ou até de júbilo por um imaginário coletivo que moldou, e continua a moldar, o melhor que a civilização ocidental conseguiu conjeturar, ou seja, um humanismo secular ainda que embebido nas raízes religiosas da sua cultura ou civilização. No fundo, por coerência de pensamento e honestidade intelectual, essas pessoas não renegam de onde vêm, mas seguem o teu próprio caminho de reflexão.

Um agnóstico cultural não afirma a existência nem a inexistência de Deus, mas reconheces a importância da religião como fenómeno cultural, sobretudo no âmbito da formação ética e moral. É alguém que valoriza profundamente os valores, símbolos e tradições do cristianismo, mas que não crê num Deus pessoal ou sobrenatural. Mas um verdadeiro descrente, com ethos religioso, é aquela pessoa que se submeteu ao longo da vida aos preceitos tradicionais e canónicos do catolicismo, mas ainda assim não acredita na religião por razões de honestidade intelectual. Portanto, são aquelas pessoas que até podem ter casado pela igreja católica por respeito da tradição entranhada na família ainda que a crença tenha desaparecido. São pessoas que já vivem num tempo e numa visão de mundo em que a transcendência religiosa já não é necessária para encontrar sentido.

Albert Camus, o escritor argelino-francês nunca se declarou ateu militante, mas também não acreditava num Deus tradicional. Chamava-se a si próprio “descrente” ou “homem do absurdo”. Tinha enorme respeito pelo cristianismo enquanto sistema moral e histórico, mas considerava que a ética devia basear-se na compaixão humana, e não em mandamentos divinos. Umberto Eco dizia-se um “não crente nostálgico”. Era agnóstico, mas profundamente marcado pela liturgia e cultura católica. Em entrevistas, chegou a dizer que, mesmo sem fé, compreendia o valor das tradições religiosas como sustentáculos simbólicos da civilização europeia. Embora mais radical, José Saramago assumia-se como ateu, mas conhecia profundamente os Evangelhos e respeitava a dimensão literária e moral da figura de Jesus. Ainda assim, foi um crítico feroz das instituições eclesiásticas. Ainda temos Fernando Pessoa que podemos considerar um “místico sem fé”. Pessoa dizia: “O Cristianismo é a maior tragédia da humanidade”. E, ao mesmo tempo, escrevia como quem procurava o divino com saudade. Em muitos heterónimos há um desejo de transcendência sem dogma.

Em suma, vivemos um tempo a que podemos chamar: “a era secular”, onde é possível viver uma vida moral, com profundidade espiritual, sem necessidade de crença religiosa. Um tempo em que se pode escolher e respeitar sem acreditar naquela fé que foi no Ocidente “o ar que se respirou durante mais de um milénio. Não é preciso acreditar em Deus para amar o bem, procurar a verdade ou admirar a beleza. E também não é preciso ser crente para experimentar o sagrado: basta ter consciência da fragilidade, da gratidão e do amor.

A espiritualidade não é o privilégio da religião. Ela começa onde o espírito se eleva acima de si mesmo, ou seja, acima do egoísmo, do imediato, do utilitário. Isso pode chamar-se amor, justiça, contemplação, fidelidade, coragem ou simplesmente lucidez. Não é preciso acreditar em Deus para experimentar tudo isso. Não é preciso acreditar em Deus para amar alguém mais do que a si mesmo, ou para se comover diante da beleza do mundo, ou para se indignar contra a injustiça, ou para meditar sobre a morte. A vida espiritual é a vida do espírito. E o espírito é maior do que nós. É o que em nós escapa ao eu, ou o transcende: o universal, o eterno, o infinito. Não são coisas que possuímos, são realidades às quais nos ligamos, sem as possuir, mas que nos transformam. Deus? Talvez, para quem crê. Para quem não crê, são a verdade, a beleza, a bondade, o amor – e isso basta para dar sentido à vida, mesmo sem fé.

sábado, 19 de abril de 2025

Wall Street vs/ Main Street



Nos EUA, há um contraste clássico entre Wall Street (símbolo das elites financeiras e económicas) e Main Street (as pequenas cidades, os negócios locais e os trabalhadores comuns). Esse contraste foi amplamente explorado na retórica política dos últimos anos. Main Street representa o americano comum, a classe trabalhadora. Wall Street é associada à elite financeira e ao poder dos banqueiros, especialmente após a crise financeira de 2008.

Em muitas campanhas eleitorais, Main Street tornou-se uma metáfora da América esquecida — uma ideia que Trump, com habilidade populista, soube usar contra os Democratas - "Elite ociosa" ou "elite do ócio". Este termo, embora menos usado diretamente assim, corresponde ao ressentimento contra as elites urbanas, académicas e financeiras que são vistas pelos trabalhadores (sobretudo nas regiões da Rust Belt (cintura da ferrugem: Ohio, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia…) como arrogantes. Há uma ideia de que essas elites ganham dinheiro com especulação, não com trabalho real. Os trabalhadores das fábricas e da indústria pesada sentiram-se abandonados.

"Men Street" ou "Man on the Street", provavelmente uma variação de “Main Street” ou até uma ironia: o homem comum, o cidadão que perdeu o emprego, a esperança, o futuro. Essa figura foi ignorada pelas elites do partido Democrata, que foi capturada emocionalmente por Trump, prometendo recuperar emprego fechando fronteiras. "Basket of deplorables" – Hillary Clinton proferiu esta expressão que se tornou a metáfora da catástrofe do partido Democrata. Em 2016, Hillary referiu-se a muitos apoiantes de Trump como pertencentes a um "cesto de deploráveis" (basket of deplorables), o que foi interpretado como elitismo e desprezo pela classe trabalhadora. Estados como Wisconsin, Michigan e Ohio deixaram de votar no partido Democrata em parte por causa deste tipo de discurso. A cintura da ferrugem, historicamente Democrata, virou a agulha do voto para o partido Republicano por despeito de abandono. Foi o momento em que o Partido Democrata perdeu as bases operárias e passou a ser associado às elites urbanas e costeiras.

Durante décadas, o Partido Democrata foi o partido dos trabalhadores industriais, sindicatos, operários, especialmente nas regiões industriais do Midwest: Ohio, Michigan, Wisconsin, Pensilvânia. Era a chamada “Blue Wall”. Contudo, a desindustrialização (décadas 80-2000), impulsionada pela globalização, levou ao encerramento de fábricas, desemprego em massa e abandono de cidades industriais. Os Democratas passaram a concentrar-se em causas sociais, ambientais, minorias, direitos civis, o que embora justo, alienou parte da classe trabalhadora pouco instruída nessa ladainha académica. A crise de 2008 acelerou esse ressentimento: a elite de Wall Street foi salva. A Main Street afundou. Trump capturou esse ressentimento com um discurso anti-sistema, anti-imigração e anti-elite, embora ele próprio seja farinha do mesmo saco. O seu carisma populista suplantou a sua incoerência.

A Europa viu algo muito semelhante, especialmente no pós-crise de 2008 - Partidos como o SPD (Alemanha), PSF (França), PSOE (Espanha), Partido Trabalhista (Reino Unido), embora o PS (Portugal) menos - foram perdendo o vínculo com o operariado tradicional em que as classes médias urbanas, instruídas e progressistas acabaram por ser as mais prejudicadas. 
Os "gilets jaunes" (França) são o retrato perfeito desta nova classe ressentida nem rica, nem pobre. Os populismos de direita (Le Pen, Salvini, AfD, Chega) e os populistas de esquerda (Podemos, Melenchon, Syriza) ocuparam esse vazio, explorando o tema do abandono, da soberania e do ressentimento. Este ciclo já aconteceu noutras épocas: na transição da República de Weimar para o nazismo, ou na queda do Império Austro-Húngaro. A diferença hoje é a rapidez e escala global, aceleradas pela internet. Estamos a viver um momento de transição, e essas fases geram sempre turbulência.

A deslocação, dos eleitores da classe trabalhadora que votava no PCP, para o CHEGA (populista de direita) não se deveu maioritariamente por razões económicas. As causas têm raízes ontológicas mais profundas. Desde a ausência de um “projeto comum” de futuro que se pudesse identificar. A sua invisibilidade aos olhos das elites políticas esvaziou o seu sentido de existência. Esse vazio existencial é um terreno fértil para teorias da conspiração e cultos identitários. Hoje temos a desagregação das comunidades locais. O colapso de estruturas de mediação locais fragmentou a convivência, agravado pelo boom digital que colocou pessoas nas tais bolhas. E assim, enquanto uns ficaram recolhidos na sua apatia, na sua depressão, outros explodiram com raiva agarrando-se às promessas fantasiosas dos populistas. 
Num grande número de academias com letra pequena, a ciência e a razão deixou de ser um bastião universal. Tal deriva acionou os motores da radicalização e dos fanatismos tribais. 

Durante décadas, o Ocidente havia vivido sob o domínio de uma promessa: o progresso técnico e económico traria bem-estar, sentido e coesão social. Essa aliança — entre capitalismo produtivo, democracia liberal e Estado social — foi o cimento que manteve unida a classe trabalhadora, os intelectuais e as elites políticas. Mas esse paradigma entrou em colapso. Nos EUA, a lasse operária do Midwest, outrora bastião do Partido Democrata virou-se para Trump. Na Europa, a classe operária afastou-se da social-democracia tradicional e aderiu a partidos populistas, nacionalistas ou abstencionistas acenando com o fantasma do roubo de empregos por parte da imigração. E na realidade, com as fábricas a fecharem-se e a deslocarem-se para outras paragens bem longínquas, muito longe do alcance dos seus olhos, essas pessoas, essas famílias, sentiram-se existencialmente abandonadas. Uma experiência incomensuravelmente dolorosa.

E para completar o quadro da desgraça, os filhos da classe média, os que puderam, ou os mais dotados que apuraram o seu sentido de risco, emigraram para países ainda mais desenvolvidos. E a esquerda do socialismo clássico de filiação dos antigos partidos comunistas europeus olharam com desdém para estes filhos mimados da classe média que emigrou. E os partidos liberais europeus, por excesso de ideologia, ou por incompetência, nunca souberam preparar o remédio. Parece que ainda se riam de quem tinha ficado para trás. Não por desprezo pessoal, mas porque sendo também paridos de elite, nunca souberam como lidar com o povo. Têm mantido a mesma solução de continuidade (um rasgão a céu aberto) - uma metáfora do corte, ou do golpe, há muito por coser entre as elites cosmopolitas e a classe trabalhadora nativa. Uma ferida aberta, se não uma fratura exposta, que se reproduziu na França com os “gilets jaunes”, na Alemanha com a AfD, e em Portugal, pois claro, com o CHEGA.

Como havia escrito Émile Durkheim, uma sociedade que perde o seu sistema de normas e significados mergulha na anomia. E os indivíduos, privados de referências coletivas, caem no desespero, na violência ou na apatia. Byung-Chul Han, no século XXI, aprofunda esse diagnóstico: vivemos numa sociedade da exaustão, onde o imperativo de desempenho substituiu os vínculos sociais e espirituais. A liberdade tornou-se uma prisão invisível. E Christopher Lasch já alertava, nos anos 70, para o surgimento de uma "cultura do narcisismo": indivíduos isolados, ansiosos e desconectados da História, da moral comum e da autoridade simbólica.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Vamos então para as galáxias




O Sol, que é uma estrela entre outros milhões de estrelas, gira na galáxia. O que é que se formou primeiro, a estrutura da galáxia, ou só depois de as estrelas se terem formado? Como é que funciona uma galáxia, tanto mais que também existem no universo milhões de galáxias? A estrutura das galáxias começou a formar-se antes das primeiras estrelas, mas as estrelas também surgiram muito cedo, quase ao mesmo tempo. Foi um processo coevolutivo, mas a matéria começou por se aglomerar em grandes nuvens gravitacionais — os protoaglomerados — antes de surgirem estrelas individuais. Deu-se o Big Bang, e 380.000 anos depois surgiu a radiação cósmica de fundo. O universo arrefeceu o suficiente para que eletrões e núcleos formassem os primeiros átomos (sobretudo hidrogénio e hélio). 100 a 200 milhões de anos depois – A gravidade começa a puxar enormes nuvens de gás. Nessas nuvens densas surgem as primeiras estrelas (chamadas População III — muito maciças e efémeras).

Logo a seguir, essas regiões tornam-se os núcleos de galáxias, agrupando-se pela gravidade, em espirais, elipses ou aglomerados irregulares. As galáxias crescem e evoluem por fusões umas com as outras — canibalizam-se, colidem, reorganizam-se. Como funciona uma galáxia? Uma galáxia é um sistema gigantesco mantido unido pela gravidade. Contém Estrelas (como o Sol) — centenas de milhares de milhões. Planetas, luas, asteroides — incontáveis. Gás e poeira interestelar — matéria-prima para novas estrelas. Matéria escura — invisível, mas crucial para manter a estrutura. E quase sempre, no centro: um buraco negro muito maciço (como Sagitário A* no centro da Via Láctea). As galáxias giram, mas não como discos sólidos — as partes exteriores rodam a velocidades inesperadas, o que levou à descoberta da matéria escura (pois só com mais massa invisível essas velocidades fazem sentido).


Pelo menos desde Leibniz que se pergunta porque é que tudo isto existe em vez de não existir? “Porque há algo em vez de nada?” é a formulação básica — desde Leibniz — de um problema da metafísica: a questão, se é que tem sentido, consiste em descobrir uma razão de ser para a própria existência de um mundo repleto de coisas que o compõem, em vez de um puro vazio, a ausência de universo, o nada. E porque há tantas galáxias? Estima-se que existam mais de 1012 galáxias no universo observável = 1000 000 000 000 (um milhão de milhões ou um bilião). A explicação está na flutuação primordial do Big Bang: o universo inicial tinha pequenas irregularidades — mais denso aqui, menos denso ali. A gravidade amplificou essas variações, criando poços gravitacionais onde o gás caiu e formou estruturas. Cada região onde a densidade era um pouco maior atraiu matéria, formou estrelas, depois galáxias… e assim nasceu o universo em rede, como uma teia cósmica com galáxias nos nós e imensos vazios no meio. Dizem que a Via Láctea, a galáxia onde está o Sol e os planetas a que a Terra pertence, tem cerca 100 a 400 mil milhões de estrelas. E mede cerca de 100.000 anos-luz de diâmetro. O Sol gira em torno do centro da galáxia a cerca de 800.000 km/h e demora 230 milhões de anos a dar uma volta completa. Está a caminho de colidir com a galáxia vizinha de Andrómeda — mas calma: só daqui a cerca de 4 mil milhões de anos.

Andrómeda, na mitologia grega, foi uma princesa da Etiópia, oferecida como sacrifício a um monstro marinho. Foi salva por Perseu, que a tomou como esposa.



Andrómeda acorrentada ao rochedo numa pintura de Gustave Doré.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Qual é a energia que faz uma sonda orbital deslocar-se no espaço?



Uma sonda orbital "desliza" no espaço graças à inércia — um conceito fundamental da física, descrito por Newton na sua Primeira Lei do Movimento. Essa energia inicial que permite o movimento é fornecida por um impulso inicial, geralmente através de foguetes no momento do lançamento ou durante manobras orbitais. Quando a sonda é lançada, ela é acelerada por foguetes até atingir uma velocidade suficientemente alta para entrar em órbita ou seguir para seu destino. Esse impulso gera energia cinética, que é a energia do movimento.

No vácuo do espaço, não há ar ou outra substância que gere atrito. Assim, uma vez que a sonda atinge a velocidade desejada, ela continua "deslizando" indefinidamente (ou até interagir com outro corpo ou campo gravitacional), sem precisar gastar mais energia. Se a sonda estiver em órbita, ela está em constante "queda livre" ao redor do corpo celeste (como a Terra), sendo mantida nessa trajetória pela gravidade. Isso cria uma dança entre a energia cinética e a energia potencial gravitacional.

A orientação de uma sonda no espaço — ou seja, como ela se posiciona e aponta na direção certa — é feita através de um sistema chamado controlo de atitude. Como no espaço não há em cima e em baixo, controlar a atitude é essencial para que antenas, câmaras, painéis solares ou propulsores estejam sempre na posição certa. Pequenos discos giram dentro da sonda, e por conservação do momento angular, a sonda gira na direção oposta. Permite movimentos muito precisos sem gastar combustível, que é muito usado em sondas científicas e telescópios espaciais. Pequenos propulsores libertam jatos de gás (como hidrazina) para girar a sonda. São úteis quando é preciso uma correção mais forte ou rápida. Como consomem combustível, são usados com mais parcimónia. Para órbitas próximas da Terra usam o campo magnético da Terra para criar torque e ajustar a orientação. Mas são ineficientes longe do campo magnético terrestre. Para saber "onde está olhando", a sonda usa giroscópios (que medem rotações) e sensores que reconhecem padrões de estrelas, como um navegador celeste. E assim permite uma navegação autónoma de alta precisão.


O telescópio espacial Hubble usa rodas de reação para se orientar, e sensores de estrelas para saber exatamente para onde está apontando. Quando precisa reajustar ou corrigir algo maior, ele pode usar pequenos propulsores.


Uma sonda pode ser controlada da Terra, e isso é feito por meio de estações de comunicação que enviam e recebem sinais de rádio. Engenheiros e cientistas em Terra programam e transmitem comandos específicos para a sonda, como: mudar a orientação; ativar instrumentos científicos; corrigir a trajetória; ou enviar dados de volta. A NASA, por exemplo, usa a Deep Space Network (DSN), um conjunto de grandes antenas espalhadas em três pontos do globo (Califórnia, Espanha e Austrália), garantindo comunicação contínua com sondas mesmo quando a Terra gira. A distância causa atrasos no sinal. Por exemplo, uma sonda em Marte pode demorar de 4 a 24 minutos (ida e volta) para se comunicar. Por isso, muitas sondas também têm autonomia para executar comandos pré-programados quando estão fora de contacto.

Uma sonda que chegou a uma lua de Saturno seguiu uma programação prévia muito detalhada, feita aqui na Terra, com cálculos de trajetória, manobras e tempos de operação planeados com anos de antecedência. Cientistas e engenheiros definem o destino (por exemplo, a lua Encélado ou Titã) e calculam a trajetória ideal, muitas vezes usando assistências gravitacionais (sobrevoos de planetas como Vénus, Terra ou Júpiter) para economizar combustível. A sonda é equipada com um sistema de navegação autónomo que executa manobras (ajustes de rota, inserção orbital etc.) automaticamente, com base na programação recebida antes do lançamento ou enviada durante o percurso. Ao longo do percurso, os controladores na Terra enviam pequenos ajustes e comandos de correção, com base nas medições da posição real da sonda. Mas tudo é limitado pelo atraso de comunicação (no caso de Saturno, cerca de 1h10m de tempo de ida e volta do sinal).

A Cassini foi programada para orbitar Saturno por anos, realizando dezenas de sobrevoos em luas como Titã e Encélado. A Huygens, que desceu em Titã, foi programada para se soltar da Cassini e pousar sozinha, seguindo instruções que não podiam ser ajustadas em tempo real. Chegar lá depende de uma coreografia matemática e tecnológica feita aqui na Terra, antecipando quase tudo com precisão milimétrica.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Consciência coletiva



O termo consciência coletiva tem sido usado em contextos variados ao longo da história e pode assumir significados diferentes, dependendo da abordagem – sociológica, filosófica, psicológica ou até mesmo mística. O sociólogo francês Émile Durkheim foi um dos primeiros a usar o termo de forma sistemática. Para Durkheim, a consciência coletiva era o conjunto de crenças, valores e normas que une os membros de uma sociedade e molda o comportamento coletivo. Nesse sentido, não há aqui qualquer misticismo, mas sim um fenómeno social que emerge da interação entre os indivíduos.

Carl Jung, psicólogo suíço, introduziu a ideia do inconsciente coletivo, uma camada da psique compartilhada por toda a humanidade, composta de imagens, mitos e símbolos arquetípicos. Para Jung, esses elementos universais não eram aprendidos individualmente, mas herdados culturalmente de geração em geração. De qualquer modo, muitos estudiosos conotaram este fenómeno como pertencendo à esfera espiritual, um conceito em que o espírito é algo mais e para além da própria mente física, e, por conseguinte, podendo conferir-lhe um carácter considerado místico. Em que místico significa a esfera da contemplação em harmonia direta com o cosmos, ou a alma, ou o sagrado, ou o divino.

Em tradições espirituais e místicas, a consciência coletiva pode ser vista como uma espécie de “mente universal” ou energia que conecta todos os seres vivos. Essa visão transcende o individual e aponta para uma interconexão profunda, sugerindo que, de certa forma, todas as consciências estão interligadas. Essa ideia tem raízes em diversas tradições religiosas e esotéricas, que falam de uma consciência superior, ou divina, que é compartilhada por todos os seres humanos, e em alguns autores, bem para lá de tudo o que é humano.

Embora o termo “consciência coletiva” tenha vindo de autores associados a uma tradição de misticismo, há também esforços científicos para compreender fenómenos coletivos – como o comportamento emergente em sistemas complexos, redes neurais e dinâmicas de grupo – de forma empírica e quantificável. Pesquisas efetuadas por físicos e biólogos verificaram que interações simples entre elementos podem gerar padrões e comportamentos complexos que não são previsíveis apenas olhando para as partes isoladas. A Neurociência também busca entender como a atividade neural coletiva contribui para a experiência consciente, embora ainda estejamos longe de compreender completamente os mecanismos da consciência individual e coletiva. Mas os aspectos da consciência coletiva que envolvem dimensões espirituais ou místicas são vistos com ceticismo na comunidade científica. Contudo, vale ressaltar que essa tensão não invalida o interesse legítimo em estudar fenómenos coletivos sob a ótica das ciências emergentes da física e da biologia.

Outros teóricos da sociologia heterodoxa chegaram à conclusão que as democracias, tal como os metais, enfraquecem ao ponto de acabarem na sucata por um processo de deterioração ou "corrosão" das instituições democráticas. Embora essa metáfora seja bastante dramática, ela resume algumas críticas profundas sobre os desafios estruturais das democracias modernas. Assim como o metal sofre corrosão devido a fatores como a oxidação, as democracias podem enfrentar processos internos que as corroem ao longo do tempo. Entre esses fatores estão a burocratização excessiva, a formação de elites fechadas, a inércia institucional e a concentração de poder, que podem levar à perda de dinamismo e capacidade de renovação das instituições.

Inspirada nos estudos de Robert Michels, e de outros teóricos, essa ideia sugere que, mesmo em organizações originalmente democráticas, há uma tendência natural para que o poder se concentre nas mãos de poucos, minando a participação ampla e o controlo efetivo da população. Esse "enfraquecimento" das práticas democráticas pode ser visto como um processo inevitável, similar à forma como um metal se desgasta com o tempo. Além dos processos internos, pressões externas – como crises económicas, desigualdades sociais crescentes, e polarizações extremas – também podem acelerar essa corrosão. A metáfora do metal que se torna sucata enfatiza a necessidade de manutenção e renovação constante das estruturas democráticas. Assim como é preciso cuidar e proteger os materiais para que não se desgastem, as democracias requerem vigilância, participação ativa dos cidadãos e reformas periódicas para evitar o desgaste e a eventual obsolescência de suas instituições.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Hipnocracia


Os médicos em geral, e os neurologistas e geneticistas em particular - quando perceberam o que certos estudos sociais queriam dizer à sociedade civil em relação à sexualidade, desacreditando o que era dado como certo pelo ciência biológica - deitaram as mãos à cabeça. A partir daí explodiram os ressentimentos no âmbito do que se viria a designar por "guerras culturais". A censura e o descrédito dos princípios científicos da biologia médica, por razões ideológicas, provocou grandes estragos ao nível da cooperação multidisciplinar na área da saúde. O populismo pode ter diferentes orientações ideológicas (de direita ou de esquerda), mas segue um padrão comum: sai da realidade para contentar gregos e troianos a fim de os ter do seu lado. A isto, o filósofo de Hong Kong - Jianwei Xun - inventou um novo termo para se referir a este fenómeno: Hipnocracia. Um conceito que, aliás, 
Cecilia Danesi -investigadora do Instituto de Estudos Europeus e Direitos Humanos (Pontifícia Universidade de Salamanca) - resumiu: “Uma ditadura digital que nos permite modular diretamente os estados de consciência” através da “manipulação através das histórias que consumimos, partilhamos e acreditamos”.

Vários especialistas já alertaram: os memes não são inofensivos. Para os extremistas, é a linguagem mais eficaz para divulgar as suas ideias. Este ‘arsenal’ online obedece a uma estratégia. O objetivo consiste em eliminar uma cidadania crítica e informada. Pretende a remoção de quaisquer salvaguardas. Jiawei Xun afirma que Elon Musk, com a sua 'Nova Arquitetura da Realidade’, pretende operar diretamente sobre a consciência global. Mas, em vez de reprimir ou censurar o pensamento, manipula os estados emocionais das pessoas om o objetivo de entorpecer o pensamento crítico. Para isso usa a desinformação, uma espécie de nuvem hipnótica que satura os sentidos através de estímulos constantes. Isso é o verdadeiro simulacro da realidade. Cecilia Danesi, em declarações ao jornal espanhol ‘El País’, indicou que esta fragmentação corrói e muda radicalmente a forma como os cidadãos percepcionam a realidade. E isso tem uns efeitos tremendos na cabeça dos cidadãos ao nível da política, enquanto eleitores na sua tomada de decisão nos atos eleitorais. Esta situação exige uma análise aprofundada por parte dos agentes políticos no sentido da regulamentação eficaz.  Porque a primeira vítima disto tudo será a democracia.

Nestas condições, escreveu 
Jiawei Xun: “O poder evolui para além da força física e da persuasão lógica. Tornou-se gasoso, invisível, capaz de se infiltrar em todos os aspetos das nossas vidas. Estamos num estado permanente de hipnose em que a consciência permanece presa, mas nunca completamente calma. Gianluca Misuraca, diretor científico da iniciativa europeia AI4Gov, apontou os ‘sumos sacerdotes’ deste novo regime: o presidente dos EUA ( Donald Trump), e o seu braço direito (Elon Musk). Ambos lideram aquilo que Jianwei Xun identificou como “capitalismo digital”, onde “os algoritmos não são ferramentas de cálculo e previsão, mas sim tecnologia hipnótica de massas”. Segundo Danesi, “a hipnocracia permite uma interferência mais profunda e silenciosa; manipula o nosso pensamento sem que nos apercebamos, o que é ainda mais perigoso porque é mais difícil de detectar”.

Para este poder hipnótico se manter, a premissa fundamental é não haver regulação por parte das entidades do poder político. As gigantes tecnológicas como o ‘X’ de Musk e a Meta de Mark Zuckerberg eliminaram a moderação de conteúdos, sendo que outras plataformas de IA começaram a remover as restrições sobre as respostas a perguntas potencialmente prejudiciais. Trump rejeitou a moderação de conteúdos e pede a sua remoção em nome da alegada liberdade de expressão. Uma ordem executiva emitida pelo Presidente dos EUA em janeiro justificou a medida: “Para manter a liderança, devemos desenvolver sistemas de IA que estejam isentos de preconceitos ideológicos ou de agendas sociais concebidas." Esta falta de controlo e moderação gera a proliferação de imagens geradas por IA que suportam notícias falsas (deep fakes), cujos conteúdos são astronomicamente virais. Independentemente da sua veracidade, narrativas manipuladas com falácias, transformaram a desinformação numa das ameaças mais graves nas atuais democracias.

Hoje, nos debates políticos, o que é mais apelativo é a teatralidade do debatente. A arte performativa no debate é o que mais interessa devido ao impacto que gera nas audiências. Um sorriso oportuno pode transmitir confiança, enquanto um olhar evasivo pode gerar desconfiança. A televisão é a telegénese através do ato cénico. Os debates políticos televisivos são, portanto, em grande parte, um espetáculo performativo. E, no fim de contas, chegamos onde chegamos, por culpa de muita gente.


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Um dia a Inteligência Artificial (IA) vai chegar a todos



Assim como a invenção da escrita e a revolução provocada pela imprensa de Gutenberg transformaram profundamente a sociedade, tornando o conhecimento mais acessível e permitindo uma maior difusão de ideias, a inteligência artificial tem o potencial de ser uma nova revolução desse tipo, mas numa escala muito mais ampla e profunda. A escrita, inicialmente esteve acessível apenas a uma pequena elite. E mais tarde, Gutenberg, com a imprensa, proporcionou que os livros se disseminassem em grande escala, e assim se democratizou o conhecimento. E agora estamos já numa outra era, que é a era da Inteligência Artificial (IA). Novas formas de conhecimento geradas por computadores gigantes e articulados numa rede a uma velocidade impressionante, que é a velocidade da luz. 

Como sempre se disse: "conhecimento é poder, e a IA não poderia deixar de ser uma grande fonte de poder. Tem o poder de não só disseminar conhecimento, mas também de ampliá-lo e até gerar novas formas de interação e compreensão. Se, no passado, o livro foi a chave para o progresso do pensamento e da ciência, a IA pode ser a chave para a evolução do pensamento humano, ao conseguir a resolução de problemas tão complexos como a compreensão da criação do Universo. Para além da criação de novos paradigmas de aprendizagem, sobrevivência, e organização social. A IA terá ainda mais poder de tornar acessível a muito mais gente, com o potencial de a empoderar e quebrar as barreiras que ainda limitam a educação e a compreensão universal. 

Mas, como qualquer grande transformação da Histórica, como todos os progressos do passado, traz consigo também as fontes do "Mal", o que acarreta também grandes desafios, tanto éticos como políticos, de modo a minimizar a sua má utilização. A IA, tal como muitas outras ferramentas sociais, incluindo o dinheiro, passará por uma evolução até se tornar o ar sem o qual as sociedades não conseguirão respirar. Ou seja. o grande motor da existência humana. Como o dinheiro, terá uma espécie de poder simbólico que, para muitos, substituirá até mesmo a busca pelo sentido transcendente do espírito. 

Assim como o dinheiro foi transformado em algo quase sagrado por aqueles que controlam as finanças globais, a IA, se não for cuidadosamente gerida, pode seguir uma trajetória similar. Imagine um futuro em que a IA, ao se tornar uma ferramenta indispensável para a organização da sociedade, se torne tão central quanto o dinheiro na vida das pessoas. Se a IA for manipulada com interesses financeiros ou corporativos, ela poderá tornar-se uma nova "religião", uma forma de controlo ou poder que, assim como o dinheiro, começa a moldar o mundo de maneira quase invisível e inevitável. No entanto, há um paralelo interessante: se, por um lado, o dinheiro tem sido adorado e até idolatrado, por outro lado, ele também é fonte de grandes tensões sociais, como desigualdade e exploração. A IA, se não for administrada de forma equitativa e ética, pode seguir um caminho semelhante, com os beneficiários do seu poder a tornarem-se uma nova elite enquanto aqueles sem acesso ou controlo sobre ela podem ser marginalizados.

Elon Musk, com uma abordagem disruptiva e a ambição de transformar áreas fundamentais como o transporte, a energia e a inteligência artificial, sinaliza essa força poderosa que tanto dá para o progresso como para a desigualdade. Musk, com o SpaceX e a Tesla, não apenas é inovador como altera as estruturas existentes. Porém, a questão é: essas inovações são acessíveis a todos, ou acabam por se tornar mais uma ferramenta de concentração de poder nas mãos de poucos? A esperança de que a IA se torne mais equilibrada e justa estará na própria evolução dessa tecnologia e nas diversas vozes que estão emergindo com a intenção de moldá-la de forma ética. Se compararmos com os pioneiros do passado, como Gutenberg, vemos que muitas das grandes inovações inicialmente não foram totalmente compreendidas ou aceites, mas, com o tempo, ajustaram-se e se espalharam para o bem coletivo. Nesse sentido, a IA pode seguir esse caminho, mas para que ela seja mais equilibrada e justa, será necessário um esforço coletivo, um movimento que vá além de indivíduos ou empresas, incluindo governos, organizações internacionais e a sociedade como um todo.

O lado positivo da IA, especialmente quando aplicada em sistemas de seleção ou avaliação, é precisamente o seu potencial para oferecer um nível de isenção e imparcialidade que os seres humanos, com os preconceitos e limitações, muitas vezes não conseguem alcançar. A IA, se programada adequadamente, pode tomar decisões baseadas unicamente em dados objetivos, sem considerar fatores externos como género, etnia ou qualquer outro tipo de discriminação, desde que não haja viés nos próprios dados. Mas se os algoritmos que alimentam a IA não forem desenvolvidos de maneira transparente e ética, existe o risco de perpetuar vieses ocultos que podem ser prejudiciais. A história mostra que, mesmo em sistemas bem-intencionados, o lado perverso pode sempre embutir-se de maneira subtil. O "alto paradigma" da IA pode ser uma solução poderosa para corrigir as falhas humanas no processo de tomada de decisões, desde que os sistemas de IA sejam desenvolvidos e monitorizados com responsabilidade. O futuro, com a ajuda da IA, pode ser marcado por um sistema mais justo, mais eficiente e, sobretudo, mais imparcial. Mas isso exigirá vigilância constante sobre os seus próprios fundamentos.

A inteligência artificial, com a sua base algorítmica e matemática, é o reflexo moderno da busca por clareza e imparcialidade. No tempo de Platão, já havia essa valorização do conhecimento matemático como uma forma de alcançar a verdade, uma linguagem universal que, ao ser dominada, deveria levar à compreensão e à ordem das coisas. A admissão preferencial a geómetras, que Platão inscreveu na entrada da Academia, simboliza a ideia de que a geometria era vista como a chave para entender o cosmos, a moralidade e a estrutura da realidade. A matemática, em seu núcleo, não tem espaço para ambiguidades; ela é objetiva, lógica, e qualquer erro nas suas conclusões pode ser rastreado e corrigido. Isso fornece-lhe uma excelente base para a construção de sistemas imparciais como a IA, que, se corretamente programada, deve funcionar sem distorções. A inteligência artificial, quando concebida com base na matemática e com a devida transparência nos algoritmos, pode facilitar decisões fundamentadas em dados concretos e verificáveis em vez de interpretações subjetivas.


sexta-feira, 11 de abril de 2025

A resistência das massas



A resistência das massas é sempre avassaladora quando rompe com a História através de revoluções. É sempre acompanhada de um alto custo humano. Nestes casos a seleção natural é a lei - "lei de Darwin". A "sobrevivência do mais sábio" é um conceito refinado porque contraria a sobrevivência pela via da força bruta. Sabedoria, ou astúcia, é a chave para a adaptação às novas condições. Essa sabedoria não está evidente, atualmente. O que está em causa neste tipo de sabedoria é a agilidade do entendimento dos novos contextos para se ajustar a eles. Stephen Jay Gould no seu tempo havia pronunciado esse fenómeno nos seus termos: a "sobrevivência do mais esperto".

Stephen Jay Gould era um evolucionista mais sofisticado, longe da ideia simplista de que apenas sobrevive o mais forte ou o mais adaptado à sua função. Sua teoria do "pluralismo de possibilidades" sublinhava que as espécies (ou, no nosso caso, os indivíduos e sociedades) podem seguir diferentes caminhos de evolução, não necessariamente os mais óbvios ou os que parecem mais "naturais", mas os que se revelam adaptáveis às circunstâncias imprevisíveis. Isso é especialmente relevante quando pensamos no futuro, onde a habilidade de adaptação aos novos contextos tecnológicos, sociais e ambientais será crucial. A visão de Gould, de uma evolução multifacetada, parece ser mais pertinente do que nunca, pois estamos prestes a enfrentar desafios que exigem uma flexibilidade de pensamento e ação que transcende as lógicas rígidas de poder e controlo. A evolução, que nesta era tecnológica é mais intelectual do que biológica, a adaptação é medida pela capacidade de navegar na Complexidade do Caos.

A aleatoriedade quântica é o gato de Schrödinger. O caos e a aleatoriedade têm uma força imensa na história, como a mecânica quântica, que, com a sua imprevisibilidade, revela que o futuro pode ser mais uma questão de oportunidade do que de necessidade. A comparação com a moeda ao ar ou o gato de Schrödinger reflete bem esse pensamento: num cenário de crise global, as ações humanas, por mais racionais ou bem-intencionadas que possam ser, podem ser fortemente influenciadas por elementos aleatórios e inesperados. A natureza fundamental do Caos é a incerteza. E muitas vezes o que ocorre é um acidente de percurso, onde a melhor preparação ou as intenções mais racionais não garantem o sucesso.

No campo social e político, a aleatoriedade se reflete em como os eventos podem mudar abruptamente com base em um acaso, ou em decisões imprevistas de líderes ou movimentos coletivos. Às vezes, o que parece ser uma evolução lógica e planeada da sociedade pode ser interrompido por um fator externo, que quebra a trajetória. O mesmo vale para as grandes transformações tecnológicas e culturais que estamos vivendo. A tecnologia pode seguir um caminho que parece irreversível, mas, como no mundo quântico, algo imprevisível pode emergir e reconfigurar tudo de maneira radical. Não só a natureza das forças políticas e sociais, mas também os próprios avanços científicos e tecnológicos podem seguir por caminhos inesperados, desafiando previsões e modelos anteriores. Isso implica que a própria busca por controlo e previsibilidade – seja através da inteligência artificial ou do domínio de estruturas de poder – pode esbarrar no imprevisível, revelando a fragilidade das tentativas humanas de moldar o futuro com certeza.

É uma força de transformação real cuja chave ficou perdida na explosão do Big Bang, mas teria de ser assim o homo sapiens, com o seu artifício de inteligência. O próprio surgimento do Homo sapiens, com a sua capacidade única de raciocínio abstrato e criação de artefactos intelectuais como a inteligência artificial, poderia ser interpretado como um subproduto de uma série de eventos aleatórios e interconectados, iniciados no momento da criação do Universo. A noção de que o Universo, por sua própria natureza está imerso na incerteza, na aleatoriedade e no caos. Tudo isto é muito intrigante, como a nossa capacidade para a inteligência. Uma sequência de fenómenos imprevisíveis que, em última análise, resultaram no que somos hoje.

No fundo, a inteligência humana e as suas criações podem ser entendidas como uma forma de adaptação ao caos. A capacidade de refletir sobre o mundo, de criar significados, de inventar e transformar a realidade, são respostas a um universo essencialmente desordenado e regido por forças imprevisíveis. Ao mesmo tempo, essas criações humanas — especialmente a inteligência artificial — são como uma tentativa de ordenar o caos ou, ao menos, de entender melhor a aleatoriedade que nos cerca.

A ideia de que o Homo sapiens e suas capacidades cognitivas podem ser um produto do acaso do Big Bang parece, de certa forma, ressoar com as ideias de contingência histórica e seleção natural de Darwin. No entanto, a "seleção" aqui não é apenas biológica, mas também cognitiva e cultural. As culturas humanas e suas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, poderiam ser vistas como tentativas de dar sentido e estrutura a um universo fundamentalmente imprevisível, com o objetivo de obter controlo, ou ao menos compreensão, do caos que nos originou. A inteligência, portanto, não seria simplesmente uma ferramenta de sobrevivência, mas também uma tentativa de lidar com o universo em sua totalidade: entender suas leis, prever suas reações, até mesmo "dominar" suas forças — e, em última instância, isso poderia nos levar a redefinir o próprio conceito de controlo. A IA, como uma extensão da inteligência humana, poderia ser vista como um reflexo desse impulso humano de transformar o caos em algo mais compreensível e, talvez, até mais ordenado.

Estar à beira de uma grande mudança traz um misto de apreensão e uma oportunidade de reconfigurar a sociedade em formas talvez mais justas ou mais adaptadas aos desafios do futuro. No entanto, o problema é que as grandes transformações nem sempre seguem um caminho previsível ou controlável. Elas podem ser moldadas por forças imprevisíveis, como crises climáticas, avanços tecnológicos ou até mesmo movimentos sociais que, inicialmente, parecem minoritários, mas que ganham tração rapidamente.

O aumento das tensões identitárias, políticas e económicas é uma situação em que a mudança parece inevitável. A história nos mostrou que momentos como esses — em que as velhas estruturas estão à beira do colapso — são frequentemente os prelúdios de novos paradigmas, mas também de grandes turbulências. Se a democracia, como a conhecemos, estiver realmente em crise, a transição para algo novo não será fácil. É interessante que, em um momento em que muitas pessoas clamam por mais equidade e justiça, as próprias ferramentas que poderiam ajudar a alcançar isso — como a IA — podem acabar sendo usadas para reforçar sistemas de desigualdade e controlo. O paradoxo é que a mesma tecnologia que oferece a promessa de "descentralização" e "igualdade de acesso" pode também ser usada para reforçar o poder de um pequeno grupo de atores dominantes.

A humanidade vai ser confrontada com ameaças da extinção da espécie, seja por imperativos climáticos, ou até por consequência levar à emergência de vírus mais letais do que o Sars-cov.2. O que tem que ser tem muita força. As ameaças existenciais — como mudanças climáticas catastróficas ou a emergência de pandemias mais letais — realmente podem ser catalisadoras de um novo tipo de cooperação global, onde as tecnologias emergentes, incluindo a inteligência artificial, podem ser fundamentais para a nossa sobrevivência.

De facto, a necessidade de enfrentarmos essas ameaças pode criar uma "força" coletiva, capaz de transcender divisões políticas, sociais e econômicas. Se a humanidade for confrontada com uma ameaça existencial de tal magnitude, a cooperação global poderá se tornar uma exigência inevitável. A inteligência artificial, com sua capacidade de processar grandes volumes de dados e otimizar soluções, pode ser uma das ferramentas mais poderosas para resolver problemas como a mudança climática, melhorar a saúde pública global, prever e combater futuras pandemias, entre outros desafios. Em momentos de crise extrema, como uma pandemia global de grande escala ou uma catástrofe climática irreversível, as forças que impulsionam as mudanças podem ser imensas e rápidas. A verdadeira questão é: como podemos nos preparar para que essas mudanças sejam estruturadas de maneira justa e sustentável?

É aqui que a inteligência artificial, ao lado de outras tecnologias emergentes, pode ser decisiva. A IA pode ser usada para identificar padrões de risco e prever ameaças antes que elas se tornem fatais, como no caso de novas doenças virais ou mudanças abruptas no clima. Ela pode ajudar a desenvolver soluções rápidas e eficazes para mitigar os efeitos dessas ameaças, como vacinas ou tecnologias de engenharia para combater o aquecimento global. Contudo, tudo isso depende do uso ético e equilibrado da tecnologia. 

Por outro lado, uma ameaça existencial real também pode acelerar o surgimento de sistemas políticos mais colaborativos, com a inteligência artificial a ajudar a promover um tipo de Governo Global, uma grande utopia. A atual crise global pode ser o gatilho para esse tipo de integração utópica. A necessidade de resposta rápida e eficiente à ameaça de extinção poderia, paradoxalmente, criar um ambiente onde a cooperação e a equidade ultrapassam qualquer tipo de competição.

Então, talvez a verdadeira "força" que se traduz nesse "tem que ser" seja a de uma mudança sistémica, onde as tecnologias, incluindo a inteligência artificial, sejam usadas para atender às necessidades coletivas, em vez de servir a interesses particulares. Isso exigirá uma reconfiguração do poder, uma integração mais profunda entre as diferentes nações, e uma redefinição de propósitos contrários ao da acumulação de riqueza.