Um descrente, incréu, ou pessoa que não tem fé – pode não ser um verdadeiro ateu, mesmo que a descrença se refira ao Deus que judeus, cristãos e muçulmanos falam. Geralmente os descrentes são aqueles que à nascença os seus pais os batizaram, independentemente de serem muito ou pouco católicos praticantes. Diria que são pessoas profundamente marcadas pela cultura religiosa — especialmente católica — mas que, ao longo da vida, se afastaram da fé dogmática. No entanto essas pessoas têm uma consciência muito clara da dimensão simbólica e histórica do cristianismo, mesmo não aderindo ao seu conteúdo sobrenatural.
Um filósofo, ou um cientista da religião, ou um teólogo descreveriam este tipo de pessoa como um agnóstico culturalmente cristão, ou um descrente com herança católica. É a descrença no Deus teísta tradicional (judaico-cristão-islâmico), embora não desprezem, ou hostilizem por completo o legado espiritual e moral transmitido pelos melhores. Esse respeito pode ser lido como um gesto de continuidade civilizacional ou até de júbilo por um imaginário coletivo que moldou, e continua a moldar, o melhor que a civilização ocidental conseguiu conjeturar, ou seja, um humanismo secular ainda que embebido nas raízes religiosas da sua cultura ou civilização. No fundo, por coerência de pensamento e honestidade intelectual, essas pessoas não renegam de onde vêm, mas seguem o teu próprio caminho de reflexão.
Um agnóstico cultural não afirma a existência nem a inexistência de Deus, mas reconheces a importância da religião como fenómeno cultural, sobretudo no âmbito da formação ética e moral. É alguém que valoriza profundamente os valores, símbolos e tradições do cristianismo, mas que não crê num Deus pessoal ou sobrenatural. Mas um verdadeiro descrente, com ethos religioso, é aquela pessoa que se submeteu ao longo da vida aos preceitos tradicionais e canónicos do catolicismo, mas ainda assim não acredita na religião por razões de honestidade intelectual. Portanto, são aquelas pessoas que até podem ter casado pela igreja católica por respeito da tradição entranhada na família ainda que a crença tenha desaparecido. São pessoas que já vivem num tempo e numa visão de mundo em que a transcendência religiosa já não é necessária para encontrar sentido.
Albert Camus, o escritor argelino-francês nunca se declarou ateu militante, mas também não acreditava num Deus tradicional. Chamava-se a si próprio “descrente” ou “homem do absurdo”. Tinha enorme respeito pelo cristianismo enquanto sistema moral e histórico, mas considerava que a ética devia basear-se na compaixão humana, e não em mandamentos divinos. Umberto Eco dizia-se um “não crente nostálgico”. Era agnóstico, mas profundamente marcado pela liturgia e cultura católica. Em entrevistas, chegou a dizer que, mesmo sem fé, compreendia o valor das tradições religiosas como sustentáculos simbólicos da civilização europeia. Embora mais radical, José Saramago assumia-se como ateu, mas conhecia profundamente os Evangelhos e respeitava a dimensão literária e moral da figura de Jesus. Ainda assim, foi um crítico feroz das instituições eclesiásticas. Ainda temos Fernando Pessoa que podemos considerar um “místico sem fé”. Pessoa dizia: “O Cristianismo é a maior tragédia da humanidade”. E, ao mesmo tempo, escrevia como quem procurava o divino com saudade. Em muitos heterónimos há um desejo de transcendência sem dogma.
Em suma, vivemos um tempo a que podemos chamar: “a era secular”, onde é possível viver uma vida moral, com profundidade espiritual, sem necessidade de crença religiosa. Um tempo em que se pode escolher e respeitar sem acreditar naquela fé que foi no Ocidente “o ar que se respirou durante mais de um milénio. Não é preciso acreditar em Deus para amar o bem, procurar a verdade ou admirar a beleza. E também não é preciso ser crente para experimentar o sagrado: basta ter consciência da fragilidade, da gratidão e do amor.
A espiritualidade não é o privilégio da religião. Ela começa onde o espírito se eleva acima de si mesmo, ou seja, acima do egoísmo, do imediato, do utilitário. Isso pode chamar-se amor, justiça, contemplação, fidelidade, coragem ou simplesmente lucidez. Não é preciso acreditar em Deus para experimentar tudo isso. Não é preciso acreditar em Deus para amar alguém mais do que a si mesmo, ou para se comover diante da beleza do mundo, ou para se indignar contra a injustiça, ou para meditar sobre a morte. A vida espiritual é a vida do espírito. E o espírito é maior do que nós. É o que em nós escapa ao eu, ou o transcende: o universal, o eterno, o infinito. Não são coisas que possuímos, são realidades às quais nos ligamos, sem as possuir, mas que nos transformam. Deus? Talvez, para quem crê. Para quem não crê, são a verdade, a beleza, a bondade, o amor – e isso basta para dar sentido à vida, mesmo sem fé.
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