quarta-feira, 2 de abril de 2025

Cultura



Sem um povo não se pode falar em cultura. Ainda assim, uma nação pode albergar dentro de si mais de uma cultura. A cultura não surge do nada; ela se desenvolve dentro de uma matriz histórica que lhe dá coesão e continuidade. Fazem parte da cultura a língua, os mitos fundadores, religião, costumes e até mesmo traços psicológicos coletivo. E assim se enraízam na história e na identidade de um povo. Por isso, a ideia de uma "cultura universal" ligada ao conceito de civilização não faz sentido. Mesmo quando há influências mútuas, e sempre há, as culturas continuam distintas, pois são expressões de processos históricos singulares.

Em tempos de globalização e de migrações em massa, vemos tentativas de dissociar cultura de matriz histórica, como se fosse algo voluntário e puramente ideológico. O que estamos a assistir é a sociedades fragmentadas, com perda de sentido e identidade. Esse desenraizamento, por sua vez, pode alimentar crises de pertença e até mesmo tensões sociais. A propósito: o que se passa com as tão faladas, já a uns tempos a esta parte, das famosas "guerras culturais"? As chamadas "guerras culturais" nada mais são do que conflitos entre diferentes visões de mundo, muitas vezes entre aqueles que defendem a continuidade de uma matriz cultural historicamente enraizada e aqueles que promovem uma espécie de ruptura ou ressignificação dos valores tradicionais. O curioso é que, apesar de serem frequentemente apresentadas como debates sobre política ou direitos individuais, essas disputas vão muito além disso. No fundo, trata-se de uma batalha pelo monopólio do significado do que constitui identidade, pertença e até mesmo a própria noção de verdade dentro de uma sociedade.

A globalização e a digitalização intensificaram esse processo, pois hoje culturas distintas interagem e se chocam numa escala sem precedentes. Mas isso não significa que uma fusão harmoniosa vá ocorrer automaticamente. Muitas sociedades reagem ao que percebem como uma dissolução de sua identidade, o que pode gerar uma reafirmação cultural mais agressiva com movimentos de resistência fragmentada. Desde o século XIX que a cultura deixou de ser vista com a mesma carga analítica iluminista por via da entrada em cena das ideologias a partir dos escritos de Karl Marx. As "guerras culturais" derivaram dera fonte através dos autores franceses que ficaram conhecidos por pós-modernistas ou pós-estruturalistas. Envolveram-se nas disputas de poder e nas narrativas dominantes. 
Não são apenas disputas sobre valores ou símbolos superficiais. A busca por uma identidade "autêntica" e as tentativas de desconstruir ou deslegitimar o que é considerado tradicional ou normativo são manifestações de uma tensão mais profunda.

 As instituições sociais e políticas que, por muito tempo, garantiram a coesão de sociedades, entraram em crise. A pós-modernidade tratou de desmantelar a ideia de uma verdade universal, ou de um conhecimento "objetivo". Foi um movimento que gerou divisões dentro da própria estrutura social. O que para uns foi uma revolução transformadora, para outros foi uma ameaça existencial à sua identidade que criou um conflito de difícil resolução. Todas estas mudanças só atingiram a sua verdadeira visibilidade na segunda metade do século XX e se acelerou com a entrada do século XXI.

A ascensão do empoderamento feminino não é apenas simbólica, mas reflete uma transformação estrutural real, que se manifestou de várias maneiras, incluindo nos índices de educação académica e no mercado de trabalho. As mulheres passaram também a ocupar os espaços que antes eram praticamente do exclusivo domínio dos homens. E em algumas profissões as mulheres superaram os homens. Esse fenómeno nas universidades foi especialmente significativo nas disciplinas das chamadas "ciências sociais", bem como nas áreas da saúde. Ao passo que as áreas das "engenharias" mantém ainda o predomínio masculino. O que se observava anteriormente como uma tendência de exclusão está sendo gradualmente substituído por uma nova dinâmica de inclusão e ascensão.

Essa reconfiguração tem implicações profundas na dinâmica social, não apenas no mercado de trabalho mas também ao nível das esferas da cultura. Ela desafia normas tradicionais e coloca em xeque muitos pressupostos sobre papéis de género que pareciam imutáveis. Isso gera inevitavelmente reações, não apenas no segmento masculino da sociedade que resiste tanto quanto pode. Todo o sistema reage a mudanças. A pergunta que surge é: até que ponto essas transformações podem ser sustentadas sem gerar reações adversas ou sem levar a um novo tipo de desequilíbrio?

O pêndulo ainda se está a mover, ainda não chegou ao centro aparentemente imóvel. Ainda não se chegou a um paradigma, essa estabilidade segundo a teoria de Thomas Kuhn. O "pêndulo" cultural oscila de um extremo para outro extremo antes de encontrar esse ponto mais estável. Esse movimento é um reflexo natural de qualquer transformação social profunda. É o que estamos a viver agora: um período de intensas flutuações entre os polos de afirmação de identidade, poder e género. A aceleração das mudanças sociais, como o empoderamento feminino, pode ser vista como uma reação a desigualdades históricas, mas também como uma força que gera uma espécie de "perda de equilíbrio". Esse desequilíbrio está levando à necessidade de um novo centro, onde diferentes visões de mundo, tanto masculinas como femininas, possam integrar-se de forma mais harmónica. Isso não significa necessariamente uma "volta atrás", mas sim a criação de novas formas de convivência e de hierarquia, em que todos os géneros, experiências e perspectivas possam ter o seu valor e espaço legítimo.

Seja como for, o risco de uma crise de identidade masculina não é uma coisa trivial. Muitos homens podem sentir-se alienados ou desorientados neste mundo que já não reforça os padrões tradicionais aos quais estavam acostumados. O modelo de masculinidade tradicional, que muitas vezes se baseava no poder e na dominação, já não é mais tolerado. E em muitos contextos, os homens se veem desafiados a se redefinir sem recorrer aos antigos estereótipos de virilidade. No entanto, a chave para essa transição será a capacidade de encontrar um novo centro que não seja uma mera "compensação" entre os género, mas um paradigma que seja genuíno, flexível e, mais importante, reconheça as complexidades da identidade humana em todas as suas formas. Se esse centro for encontrado, será possível estabelecer uma estabilidade maior, onde as tensões atuais possam ser resolvidas de uma forma mais cooperativa, não por uma luta para dominar ou ser dominado, mas por um entendimento mais profundo das necessidades e limitações de todos os lados.

Esse movimento pendular que começa com excessos, vai-se desacelerando até atingir um ponto de equilíbrio. Isto não é novo na História. O desafio é que, hoje, estamos lidando com um movimento muito mais acelerado num mundo globalizado e conectado, onde as repercussões dessas mudanças se fazem sentir mais rápido e de forma muito amplificada. Mas a História nos mostra que as sociedades tendem a ajustar-se de forma a atender a uma maior pluralidade de interesses. Mas no início da crise são necessárias as quotas ou políticas de ação afirmativa. 
Esse tem sido o ponto debatido sobre a igualdade de oportunidades. 

A meritocracia tem sido uma ideia central em muitas sociedades, especialmente nas democracias liberais, e faz sentido que as pessoas sejam recompensadas de acordo com o seu talento e esforço. Porém, a questão da competência é mais complexa quando se considera o impacto das desigualdades históricas e estruturais. As quotas, por exemplo, surgiram como uma tentativa de corrigir desequilíbrios que não podiam ser facilmente superados à partida. O campo de jogo estando inclinado, só para o lado do género masculino, é injusto. Muitos argumentam que, sem uma intervenção inicial para nivelar o campo de jogo, a meritocracia, por si só, pode perpetuar a exclusão de grupos historicamente desfavorecidos. 

Num mundo ideal, onde todos têm um ponto de partida verdadeiramente igual, a competência seria o critério exclusivo para determinar quem merece estar onde. Isso é o que muitos aspiram, mas como garantir que essa igualdade de oportunidades de facto exista? Na prática, as políticas de quotas podem ser vistas como uma forma de compensação pelos efeitos das desigualdades estruturais e históricas, enquanto a meritocracia idealiza uma situação onde as condições de partida são universalmente justas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre esses dois modelos. Se as quotas forem progressivamente reduzidas será fundamental garantir que as desigualdades de acesso à educação, saúde e outras áreas essenciais sejam tratadas antes de implementações de uma meritocracia plena, para que ela se torne verdadeiramente justa. 

Portanto, se a competência é de fato o fator determinante, ela precisa ser acompanhada de um esforço por criar um sistema onde todos, independentemente de sua origem, tenham as mesmas oportunidades para se desenvolver e competir. Caso contrário, o risco é que a meritocracia apenas reforce as divisões existentes, em vez de promover uma mobilidade genuína.

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