Durante milénios, praticamente toda a cultura humana foi religiosa. Não só porque a religião dava sentido à vida, mas também porque as estruturas cognitivas humanas precisavam disso: explicação para o desconhecido (relâmpagos, morte, pragas). Consolação diante do sofrimento e da perda. Organização social e poder político. Mas agora, depois de muitos avanços - da ciência, da filosofia crítica, da psicologia, da neurociência - cada vez mais cérebros percebem que a existência do Universo não precisa da explicação de um Deus para existir. E a moralidade não precisa de um mandamento divino para ser válida. O sentido da vida, em vez de ser dado, é construído.
O cérebro humano evoluiu para criar sentido. Hoje, muitos já não precisam mais da religião tradicional. O desafio humano consiste em criar sentido para viver com dignidade, sem ilusões. Na cosmologia moderna (especialmente nos últimos 20-30 anos), muitos cientistas e filósofos da física começaram a considerar que a pergunta – "o que havia antes do Big Bang?" – pode não fazer sentido. O tempo e o espaço não são "palcos" eternos onde as coisas acontecem, mas emergências, isto é, surgem e emergem. Portanto, não houve um "antes" do Universo, no sentido tradicional do entendimento humano.
Porque é que o nosso cérebro sente dificuldade em aceitar a ideia de um Universo sem início, sem fim e sem Criador? Porque o nosso cérebro não foi feito para entender a realidade, mas sim para sobreviver nela. O cérebro evoluiu para ser uma máquina pragmática, e não uma máquina filosófica. Ele precisou de dar sentido rápido às coisas à nossa volta para agir e sobreviver. E, para isso, ele desenvolveu alguns atalhos mentais (chamados "heurísticas") muito fortes, que nos inclinam a buscar causas para tudo ("se isto aconteceu, alguém ou algo causou"). Pensar em termos de agentes ("quem fez isto? alguém deve ter feito!"). Organizar o tempo linearmente (passado → presente → futuro). Ter medo do Vazio (não suportar a ideia do "Nada", ou "ausência total"). Esses atalhos explicam a resistência: se vemos relâmpagos → nossa mente primitiva prefere imaginar um espírito, um deus (por exemplo, Thor). Se vemos a complexidade do Universo → tendemos a supor um criador consciente e acima de tudo inteligente, omnipresente e superpoderoso. Se sentimos a morte como o "fim" → inventamos uma alma imortal, para continuar a dar sentido à vida.
Hoje a ciência e a filosofia nos permitem perceber que nem tudo precisa de uma causa externa. Nem tudo precisa de uma intenção por trás. A existência não é explicável em termos humanos, porque nós não temos de ser o pináculo da perfeição. Nós, em termos cósmicos não temos de ser mais do que as árvores. O Universo não "tem" um sentido, nós é que precisamos criá-lo. A árvore existe porque germinou, cresceu, é parte de um ciclo natural. A árvore não precisa de saber o porquê da sua existência. Nós também somos um ramo passageiro na grande árvore do ser, sem início consciente, sem fim pré-determinado. O nosso desafio é florir enquanto somos ramo, mesmo sabendo que um dia cairemos.
O Universo não tem sentido? Ótimo: então nós o criamos. Cada gesto humano torna-se então um ato de arte e coragem. A consciência humana, que busca sentido, enfrenta esse vazio: surge o absurdo e nós aceitamos o absurdo como parte da condição humana, e vivemos com dignidade, mesmo sem o sentido da vida vindo de fora da vida. Sabendo que tudo é assim, absurdo, lutamos mesmo assim, e é isso o que significa quando dizemos que somos um pessimista antropológico.
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