sexta-feira, 4 de abril de 2025

As tradições


A continuidade das tradições pode estar ligada tanto à genética quanto à herança espiritual e cultural de um povo. A genética influencia certos traços comportamentais e cognitivos que podem favorecer a preservação de costumes, como a predisposição para a cooperação, a religiosidade ou a conformidade social. No entanto, a herança espiritual e cultural é ainda mais determinante, pois estrutura os valores, mitos e rituais que moldam a identidade coletiva ao longo das gerações.

Esse enraizamento pode ter origens muito antigas, até mesmo na pré-história, quando os primeiros grupos humanos desenvolveram narrativas e práticas para dar sentido ao mundo e reforçar a coesão social. Com o passar do tempo, essas tradições foram-se refinando e adquirindo um caráter quase atemporal, transmitindo-se de maneira orgânica e, em alguns casos, resistindo a mudanças históricas profundas. No entanto, há sempre um processo de maturação e adaptação. As tradições que sobrevivem não são meramente estáticas; elas passam por reinterpretações sucessivas para permanecerem relevantes. Assim, a longevidade de uma tradição pode ser vista não apenas como um sinal de sua força original, mas também de sua capacidade de se transformar sem perder a sua essência.

Isso não significa que certos povos tenham caído no esquecimento daquilo que foram. Muitos povos, ao longo da história, perderam a memória de si mesmos, seja por assimilação cultural, deslocamentos forçados ou colapsos civilizacionais. A identidade de um povo não é imutável; ela pode dissipar-se quando os elos com a tradição se enfraquecem ou são deliberadamente rompidos. O esquecimento pode ocorrer de várias formas. Um povo pode abandonar as suas crenças e costumes gradualmente, influenciado por outras culturas mais dominantes, como ocorreu com muitas sociedades indígenas após o contacto com europeus. Em outros casos, a ruptura pode ser abrupta, como no colapso de civilizações antigas, onde uma mudança drástica destrói as instituições que sustentavam a tradição. Mesmo assim, vestígios de antigas identidades podem persistir de maneira fragmentada, em lendas, símbolos ou costumes ressignificados. Às vezes, certos elementos de uma cultura adormecida são redescobertos e reinterpretados por gerações posteriores, num movimento de revitalização identitária. No entanto, quando uma tradição se perde completamente, o que se apaga não é apenas um conjunto de práticas, mas uma forma única de ver e compreender o mundo.

A ascensão da extrema-direita na Europa não foi a causa primária de um sentimento de angústia cultural, mas uma consequência dele. A inquietação sobre a identidade europeia já existia, especialmente entre setores mais cultos e historicamente conscientes, que perceberam a erosão de certas tradições e valores ocidentais diante de mudanças sociais aceleradas, incluindo a imigração em larga escala. Esse receio não surgiu da noite para o dia, mas amadureceu ao longo das últimas décadas, com fatores como a globalização, o declínio demográfico e a perda de coesão nacional. Os partidos populistas de extrema-direita apenas captaram e canalizaram essa ansiedade latente, muitas vezes exagerando ou simplificando questões complexas para mobilizar apoio popular. Eles não precisaram "catequizar" o povo, pois a preocupação já estava disseminada – apenas deram voz a um sentimento difuso que os partidos tradicionais evitavam discutir de forma aberta. Essa dinâmica explica por que esses movimentos cresceram rapidamente em várias nações europeias, sem precisar de uma doutrinação sistemática. O que ocorre é mais um ajuste à sensibilidade da época do que uma revolução ideológica imposta de cima para baixo.

Quando uma cultura sente que a sua matriz está sendo diluída ou relativizada, seus defensores tendem a buscar as raízes mais profundas. Assim, ao verem a paisagem cultural mudar, alguns europeus cultos redescobrem Homero, Virgílio e outros pilares da civilização greco-romana como forma de reconectar-se a um passado que sentem que se está a esvair. Esse fenómeno não é novo: historicamente, momentos de grande transformação ou crise costumam despertar movimentos de redescoberta cultural e até de resistência. O Renascimento, por exemplo, foi uma resposta à crise da cristandade medieval, resgatando o humanismo greco-romano. Hoje, talvez estejamos vendo um movimento análogo, mas num contexto de globalização e multiculturalismo, onde a Europa se vê menos como centro do mundo e mais como um espaço de múltiplas influências.

O Romantismo surgiu, em grande parte, como uma reação ao Iluminismo e à Revolução Industrial, num momento em que o avanço da racionalidade científica e da mecanização pareciam ameaçar a dimensão espiritual, cultural e identitária dos povos europeus. Os românticos buscaram resgatar a memória coletiva, as tradições populares e os mitos nacionais como forma de reafirmar o que consideravam a "alma" dos seus povos diante da homogeneização cultural trazida pelo progresso.

Esse impulso de retorno às raízes também ocorreu em períodos de crise e mudança, como na Idade Média, com a redescoberta de elementos germânicos e celtas, ou no Renascimento, quando se reviveu a Antiguidade Clássica. Hoje, diante da globalização e do multiculturalismo, vemos algo semelhante: um interesse renovado por Homero, pelos mitos fundadores e pelas tradições europeias como forma de preservar uma identidade que muitos temem estar-se dissolvendo. O que diferencia o momento atual do Romantismo é que, naquela época, a resposta foi em grande parte estética e filosófica, enquanto hoje, ela tende a se expressar também no campo político, com movimentos que buscam não apenas preservar a cultura, mas redefinir fronteiras e mitos de pertença.

Mas também, como sempre, há os benevolentes, com uma espécie de masoquismo ou remorço, com pavor de qualquer manifestação de nativismo, ao ponto de lisongearem o etnocentrismo de outras culturas. Os que se autointitulam racializados. Este fenómeno é notável. Há sempre aqueles que, movidos por um sentimento de culpa histórica ou por um idealismo universalista, reagem com repulsa a qualquer manifestação de nativismo europeu, mesmo quando se trata apenas da preservação cultural e não de hostilidade ao outro. Essa atitude pode ter raízes numa espécie de remorso coletivo pelo colonialismo, pelas guerras ou por injustiças passadas, levando alguns a exaltarem o etnocentrismo de outras culturas enquanto demonizam qualquer tentativa europeia de afirmar a sua própria identidade.

O caso dos que se autointitulam "racializados" ilustra bem essa dinâmica. Em vez de buscarem um diálogo genuíno entre culturas, muitos adotam uma postura de antagonismo, como se a Europa devesse apenas ouvir e se adaptar, sem direito à sua própria identidade. Esse comportamento, paradoxalmente, reforça divisões ao invés de promover uma verdadeira integração. Esse tipo de autoanulação não é apenas uma característica da Europa contemporânea. Outros impérios declinantes também passaram por momentos de autoflagelação moral antes de perderem a sua centralidade. Isso é o que está hoje no campo da luta entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, e os moderados no meio a não saberem para que lado do campo a História se vai inclinar.

O que estamos vendo hoje é uma luta ideológica intensa entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, enquanto os moderados se encontram num estado de incerteza, sem saber para que lado a História penderá. Ambas as extremas apresentam visões totalizantes e muitas vezes incompatíveis sobre identidade, cultura e pertencimento. A extrema-esquerda, com sua visão globalista e desconstrutivista, tende a minimizar ou até repudiar as identidades nacionais europeias, promovendo uma narrativa de culpa histórica e de "descolonização" que, paradoxalmente, acaba reforçando o etnocentrismo de outros grupos. A extrema-direita, por sua vez, reage de forma combativa, reivindicando um retorno às raízes europeias, mas frequentemente com um tom de ressentimento e exclusão, o que dificulta um diálogo equilibrado. Os moderados, que tradicionalmente foram os pilares da estabilidade política, estão agora num dilema. Muitos não querem ser associados nem ao radicalismo identitário da extrema-esquerda nem ao nacionalismo exacerbado da extrema-direita, mas também não conseguem oferecer uma visão clara e mobilizadora que resgate uma identidade europeia sem cair em extremos. O que torna esse cenário mais imprevisível é que a História nem sempre segue uma lógica linear. O que hoje parece dominante pode desmoronar rapidamente diante de crises ou mudanças demográficas, políticas e económicas.

A História nunca teve lógica, muito menos linear, um erro de perspectiva dos antigos historiadores judaico-cristãos, em contraste com a visão cíclica do paganismo metaforizado pelo ciclo das estações. A ideia de uma História linear, com um começo e um fim teleológico, foi uma construção dos historiadores judeu-cristãos, fortemente influenciados por uma visão escatológica. Para essa tradição, a humanidade caminharia em direção a um desfecho definitivo – seja a salvação ou o juízo final. Esse modelo foi, mais tarde, secularizado por filósofos como Hegel e Marx, que enxergaram a História como um progresso inevitável rumo a um determinado destino. Já a visão cíclica, predominante nas tradições pagãs, via a História como um eterno retorno, onde civilizações nascem, crescem, atingem um auge e, inevitavelmente, entram em declínio, sendo substituídas por novas forças. Essa perspectiva, metaforizada pelo ciclo das estações, fazia muito mais sentido para povos que viam o mundo em termos de fluxos naturais, e não como uma linha reta rumo a um "fim da História".

O problema da visão linear é que ela gera ilusões perigosas: a crença de que a humanidade está sempre avançando e que qualquer retrocesso é apenas um "acidente" momentâneo. O século XX já demonstrou o perigo dessa mentalidade, com ideologias que acreditavam estar do lado "certo" da História e justificavam atrocidades em nome desse progresso inevitável.

Hoje, parece que estamos num momento de choque entre essas duas visões. Há os que ainda acreditam na linearidade e veem a globalização e o multiculturalismo como uma fase superior do desenvolvimento humano. E há os que, instintivamente, percebem a História como um pêndulo, alertando que a ascensão e queda das civilizações segue um ritmo próprio e que o declínio da Europa não é um desvio, mas parte de um ciclo natural.

A célebre dúvida existencial de Hamlet encaixa-se bem neste dilema histórico. "Ser ou não ser" pode ser lido, aqui, como a incerteza entre a continuidade e a dissolução, entre a renovação e o esquecimento. A Europa, e talvez o Ocidente como um todo, encontra-se nesse limiar shakespeariano, hesitante entre assumir sua identidade e história ou entregar-se à corrente da dissolução cultural e ao universalismo abstrato. Shakespeare, com seu profundo entendimento da condição humana, não nos dá respostas fáceis. O próprio Hamlet, consumido pela dúvida e pela consciência excessiva, adia a ação até que a tragédia se torne inevitável. A História pode estar a fazer o mesmo: os moderados hesitam, os extremos avançam e, no final, a decisão pode acabar por ser tomada não pela razão, mas pelo próprio desenrolar dos acontecimentos. Se a História fosse linear, como queriam os hegelianos e marxistas, saberíamos onde isso vai dar. Mas, sendo cíclica, como intuíam os pagãos, tudo é incerteza. Tudo é possível. O Ocidente pode já não ter forças para um novo ato e estarmos apenas assistindo ao epílogo.

Porque será que o desejo de identidade é louvável, exceto o desejo de ser europeu, ou francês? Essa é uma das grandes contradições do nosso tempo. Em quase todas as partes do mundo, a afirmação da identidade cultural e étnica é vista como legítima e até incentivada – exceto quando se trata da identidade europeia ou nacionalidades como a francesa, a alemã ou a britânica. Isso se deve a uma combinação de fatores históricos, ideológicos e políticos. Comecemos pela culpa histórica do colonialismo – A Europa carrega o peso moral de seu passado colonial, das guerras mundiais e do Holocausto. Isso levou a uma espécie de autocensura identitária, onde qualquer tentativa de afirmar um "orgulho europeu" é rapidamente associada ao nacionalismo agressivo do século XX. Em contraste, povos historicamente colonizados são encorajados a resgatar as suas identidades como forma de reparação.

O pensamento iluminista e, mais tarde, a ideologia globalista e multiculturalista promoveram a ideia de que as identidades europeias deveriam ser diluídas em prol de um cosmopolitismo sem fronteiras. Enquanto outras culturas são valorizadas por sua autenticidade e diferença, a Europa é pressionada a se tornar "neutra", sem um caráter próprio. A extrema-esquerda adotou a identidade europeia como um inimigo ideológico, associando-a ao imperialismo, racismo e opressão. Isso faz com que qualquer reivindicação de identidade europeia seja tratada como uma ameaça, enquanto outras identidades são vistas como formas de resistência. Para certas elites políticas e empresariais, um continente fragmentado, sem identidade forte, é mais fácil de administrar. Sociedades desprovidas de um sentido de pertença são mais abertas a mudanças culturais e económicas sem resistência, facilitando o avanço de agendas globalistas. O paradoxo é que esse duplo padrão não só gera ressentimento, como fortalece reações opostas. Se o desejo de identidade europeia continuar a ser demonizado, ele tenderá a se manifestar de forma cada vez mais radical, dando combustível justamente aos movimentos que os críticos da identidade europeia mais temem.

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