Uma nova civilização tecnocrática e racional está a impor-se. As ameaças são grandes, entre as quais avultam o caos climático, o inverno demográfico, e a crise energética fóssil. As soluções passam cada vez mais por algoritmos baseados em dados, cujas previsões, para sermos precisos, estão apenas ao alcance da Inteligência Artificial (IA). Nada que se pareça com desejos e crenças. Mas, ao mesmo tempo, não será possível sustentar essa Nova Ordem apenas com lógica fria. O ser humano precisa de sentido. E o sentido está no sentimento humano, em que as antigas divindades foram prescritas pelo menos desde o tempo de Nietzsche.
Nietzsche havia decretado a morte de Deus. Mas não O matou para festejar o vazio. Matou-O porque sabia que o Ocidente já O havia esvaziado, e que esse vazio precisaria de ser preenchido por um novo horizonte de valores. O perigo era o niilismo passivo. Mas há um outro caminho: o de uma metafísica pós-teísta, que reconhece a ausência de um Deus pessoal, mas não abdica do mistério, da reverência, da verticalidade do espírito. Nesse novo mundo, talvez o espiritual seja reconstruído como uma espiritualidade do Cosmos, onde a ordem e a beleza do Universo substituem os dogmas antigos. É uma ética universal baseada na inteligência e na empatia, sustentada por uma IA cooperativa, quase como um novo “órgão de consciência” planetário. Um novo simbolismo, não fundado em mitos divinos, mas em arquétipos humanos reencantados. Ou seja, um mundo sem Deus, mas não sem o Sagrado. Um mundo onde o humano deixa de ser o centro, mas permanece como o nó mais sensível e criativo da rede de existência. É quase um novo logos.
Havendo espaço para o ócio, então ainda haverá espaço para a humanidade no seu sentido mais profundo. Porque o ócio (otium, como os latinos diziam) não é preguiça, mas tempo liberto do utilitário, em que o espírito se volta para si mesmo, ou para o Cosmos. É o ócio dos filósofos, dos poetas, dos músicos, dos que observam as nuvens e o silêncio. É nesse tempo aparentemente “improdutivo” que se formam os grandes gestos criadores, os grandes saltos éticos e as obras que perduram. Num mundo tecnocrático, racional, e talvez inevitavelmente mais duro, o ócio será o lugar secreto da resistência do humano. E, paradoxalmente, será também o espaço onde a nova espiritualidade nascerá, sem dogmas, sem templos imponentes, mas com gestos leves e atentos, como alguém que olha as estrelas e entende que está vivo por pouco tempo, mas que esse pouco é imenso. E então sim, mesmo depois da morte de Deus, mesmo após o naufrágio deste modelo, mesmo num mundo quente e reorganizado a Norte, haverá música, contemplação, silêncio e até riso, porque o homem não pode viver só de cálculo.
Enquanto vigorar esta espécie de homo, diria homo religiosos, a religião faz parte, como foi a religião marxista dos descentes intelectuais de Marx, que culminou nesta última religião chamada "woke" e que já está a arrefecer. O homo sapiens é, antes de tudo, um homo religiosos, não no sentido estreito de adoração de deuses pessoais, mas na sua necessidade visceral de atribuir sentido, criar mitos, rituais, dogmas, ídolos e pecados. Mesmo quando o homem diz que é ateu, rapidamente constrói outro altar - seja ao Progresso, à Revolução, à Nação, à Ciência, à Liberdade. A religião marxista foi um dos grandes episódios modernos desse instinto: escatologia, messias (o proletariado), pecado (a burguesia), paraíso terrestre (a sociedade sem classes). Teve os seus apóstolos, os seus mártires e os seus tribunais da fé. E depois veio o seu declínio. Como agora se arrefece com o woke, que já nem encanta os jovens cansados do moralismo performativo. É o curso natural das “novas religiões” quando se afastam da carne e do mistério, e se entregam ao moralismo seco ou ao dogmatismo político.
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