sábado, 30 de novembro de 2019

A tentação de Fátima


Quando parti da Fundação Champalimaud para regressar a casa, os meus amigos e colegas que estavam ao corrente do meu cancro obrigaram-me a jurar que iria a Fátima. Em Portugal a peregrinação a Fátima é tida em elevada estima, e a ideia de estar em Lisboa de partida para o Norte, sem passar pela Cova da Iria, parecia inconcebível. Embora me tenha comprometido, não cumpri a promessa de imediato.
Ultimamente tenho-me deparado na comunicação social com testemunhos de pessoas não crentes – embora não devamos dizer ateístas, sobretudo mulheres, tendo sobrevivido a um cancro, algumas delas já com mais de cinco anos – que não resistiram à tentação de fazer uma peregrinação ao Santuário de Fátima incentivadas por familiares ou amigas crentes e com fé em milagres.

Tudo indica que é intrínseco ao género humano a posse de recursos designados por “sagrados”, que se revelam em pessoas hiper-racionais, de que nunca estavam à espera. É uma emanação que é inata quando a pessoa sente que a sua vida é ameaçada com a iminência da morte.

De facto, o percurso do peregrino apela para emoções poderosas – inquietação, confiança, surpresa, sentimento de comunhão – reforçadas pela atmosfera geral de introspeção, de fervor e de expectativa, tudo isto aumentado pela intensa cascata sensorial orquestrada pelo ritual.

Como curiosidade, a estátua original, que é a que está na Capela das Aparições em Fátima, foi oferecida por Gilberto Fernandes dos Santos em 1920, e encomendada à Casa Fânzeres de Braga, segundo as indicações da Irmã Lúcia. A obra de escultura em madeira de cedro do Brasil, foi realizada por José Ferreira Thedim [1892-1971], de uma família de escultores de São Mamede do Coronado. Thedim realizou algumas alterações na imagem, mais tarde, nos anos 50.


Este fenómeno português não é inédito, arrisco mesmo a dizer que é uma espécie de sucedâneo de outros sítios que despontaram muito tempo antes deste. Evoco o caso de Lourdes, o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, um dos maiores santuários marianos de peregrinação do mundo católico. Está situado no departamento dos Altos Pirenéus, região da Occitânia, França. Em Lourdes, na pequena Gruta de Massabielle junto ao rio Gave de Pau, acredita-se que a Virgem Maria terá aparecido algumas vezes a uma menina de nome Bernardette Soubirous, em 1858. As primeiras aparições da Virgem Maria em Fátima aconteceram muito mais tarde, em 1917.

De um relato a que tive acesso, em Lourdes o périplo começa por uma confissão. O peregrino tira uma senha e aguarda a sua vez numa imensa sala, parecida com o hall de embarque de um aeroporto, com confessionários parecidos com quiosques a toda a volta, com a indicação das línguas que os padres entendem para confessar os peregrinos. Depois do confesso o peregrino vai entrar no edifício das piscinas. Mas é preciso sofrer um pouco à espera da sua vez, se estiver sol, ao sol, antes de penetrar no edifício das piscinas, o verdadeiro momento da peregrinação, onde o peregrino tem de se despir e ficar apenas com uma simples toalha de banho à volta da cintura.

Toda a gente se arrepia, não só por causa da frescura súbita depois da canícula exterior, se for verão, mas por causa das reminiscências ameaçadoras que esta multidão de pessoas despidas pode despertar. O facto de estar “nu em frente do Divino” desencadeia igualmente uma emoção intensa e rara, feita de humildade e confiança. A certa altura, vem um hospitaleiro benévolo que pega no peregrino e mergulha-o repentinamente na água gelada, acompanhado de rezas em voz alta. Quem passou por isto reclama a vertigem e a angústia por que passou.

O ritual de purificação termina ao fim do dia com uma grande procissão extremamente comovedora, seguida de uma celebração em latim, legendada em várias línguas projetadas num ecrã de retransmissão. Toda a gente repete em coro as orações cantadas. É impossível as pessoas não se sentirem emocionadas, quiçá extasiadas, pelo mergulho, agora em multidão fervorosa, numa espécie de energia rara, avassaladora, não se sabendo de onde para onde. O que é certo é que as pessoas que contam isto, que passaram por isto, contam-no visivelmente num estado perturbado, mas dizendo que gostariam de poder lá voltar.

É claro, o resultado não é garantido. Mas quando funciona, funciona realmente, isto é, mobiliza todas as capacidades inatas de cura que há em nós. O mantra deles é: “é de muito fácil acesso, quase gratuito, e quase despido de efeitos secundários."

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