terça-feira, 10 de agosto de 2021

Era um Redondo vocábulo


Joana Afonso, filha de José Afonso, lembra-se de uma disputa entre ela e o irmão Pedro:
« Mas também queria o quarto arrumado. Lembro-me do meu irmão Pedro, com menos quatro anos e meio, que acabou com um brinquedo novo no lixo. Não me recordo de qual era o brinquedo, mas estávamos naquelas discussões: ‘É meu’, ‘é meu’, ‘não é nada, é meu.’ Ele veio e deitou-o fora. ‘Não é de ninguém. Nunca mais quero ouvir essa discussão’. Resultou até hoje. Não tivemos mais discussões dessas. O meu pai não suportava o egoísmo. Era tudo na base de: ou é de todos ou não é de nenhum!»

Mais do que impor regras, o que José Afonso transmitia aos filhos eram valores de partilha e de respeito pelo outro.



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa


Vitorino conta que, quando José Afonso os visitava no Redondo, trazia sempre cadernos onde escrevia textos e um gravador grande. De vez em quando interrompia a conversa e fazia vozes para o gravador, em vários tons, como se fizesse arranjos para futuras canções.
«Andava sempre a perguntar-nos por histórias para escrever canções do quotidiano. Em maio de 1974, por exemplo, estávamos nós a cantar no Coliseu do Porto e entra uma mulher com uma cesta à cabeça com uma galinha de fora, a dançar o vira ao nosso lado. Está filmado, passou na televisão! Eram estas situações que o Zeca adorava.»

"Era um redondo vocábulo", escrito na prisão de Caxias e de forte pendor surrealista, é assim elogiado por Janita Salomé, irmão de Vitorino:
«É uma forma de falar de amor brilhante, genial. Só conheço este nível em poetas como o Herberto Helder. Ainda ontem à noite estive a ler a poesia dele e o último poema do livro editado pela Assírio & Alvim, escrito no início dos anos 50, era ele muito jovem, é de uma profundidade impressionante. O cenário é o da morte da avó, a avó estendida e as mãos juntas, e a visão que ele nos dá do fim e do princípio da vida, dessa constante no decorrer do tempo, é notável. E isso nele era espontâneo, não era elaborado.»

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