segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O Livreiro de Cabul de Asne Seierstad



O Livreiro de Cabul é um livro de não-ficção escrito pela jornalista norueguesa Asne Seierstad sobre um livreiro, Shah Muhammad Rais (mudado para Sultan Khan no livro), e sua família em Cabul, publicado em norueguês em 2002.

Além de dar um relato histórico dos acontecimentos no Afeganistão em 2001/2002 - Asne Seierstad concentrou-se nas condições das mulheres afegãs que ainda vivem muito sob o domínio dos homens, em que as tradições afegãs permitem a poligamia e o casamento negociado.

Após a aclamação da crítica global, muitas das descrições do livro foram contestadas por Shah Muhammad Rais. Durante uma viagem à Escandinávia em novembro de 2005, Rais declarou que estava buscando asilo na Noruega ou na Suécia, como refugiado político. Ele sentiu que as coisas reveladas sobre ele no livro de Seierstad tinham tornado a vida dele e de sua família inseguras no Afeganistão, onde versões piratas do livro haviam sido publicadas em persa. Inclusivamente, a segunda esposa – Suraia, processou-a por difamação. Em 24 de julho de 2010, Seierstad foi considerada culpada de difamação e "práticas jornalísticas negligentes", condenada a pagar indemnização a Suraia Rais. Mas Seierstad ganhou um recurso que anulou a decisão anterior e inocentou a autora e sua editora, Cappelen Damm, de invadir a privacidade da família Rais, e concluiu que os factos do livro eram precisos.

Então, Shah Muhammad Rais publicou a sua própria versão da história, Once Upon a Time There Was a Bookseller em Cabull que foi traduzido para o inglês e várias outras línguas.


Shah Muhammad Rais foi uma das primeiras pessoas que Asne Seierstad conheceu ao chegar a Cabul em novembro de 2001. Ela havia passado seis semanas, com os comandantes da Aliança do Norte, no deserto perto da fronteira com o Tadjiquistão, nas montanhas de Hindu Kush, no vale do Panshir e nas estepes ao norte de Cabul. Acompanhou as ofensivas contra o Talibans, dormido em chão de pedra, em cabanas de barro, na linha de frente. Nesta região a etnia predominante não é Pashtun, mas Tajique. Depois de semanas entre pólvora e cascalho, ouvindo conversas sobre táticas de guerra e avanços militares, foi reconfortante folhear livros e conversar sobre literatura e história. Shah Muhammad Rais tinha prateleiras abarrotadas de obras literárias em várias línguas. Havia coletâneas de poesia, livros sobre lendas afegãs, livros de história e romances. Era um bom vendedor.
«Primeiro os comunistas queimaram meus livros, depois foram pilhados pelos mujahedin, e em seguida queimados de novo pelos talibans. Um dia, convidou-me para jantar em sua casa. Encontrei a família toda sentada em volta de uma farta refeição posta no chão: uma de suas mulheres, os filhos, as irmãs, o irmão, a mãe e alguns primos. Sultan contava histórias, os filhos riam e contavam piadas. O tom era descontraído, ao contrário das refeições simples com os comandantes nas montanhas. Mas percebi logo que as mulheres pouco falavam. A bela esposa adolescente de Sultan ficava sentada quieta perto da porta com seu bebé sem dizer uma palavra. A outra de suas esposas não estava presente nesta noite. As outras mulheres respondiam a perguntas, recebiam elogios pela comida, mas não tomavam a palavra para iniciar uma conversa. Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família.»

«No dia seguinte, voltei à livraria de Sultan e contei-lhe sobre a minha ideia. “Muito obrigado” foi só o que disse. Mas isso significava que eu teria que morar com eles. “Seja bem-vinda”, disse ele. Mudei-me para a casa deles num dia enevoado de fevereiro, levando comigo apenas o meu computador, blocos de notas, canetas, um telemóvel e a roupa do corpo. O resto sumira na viagem, em algum lugar no Uzbequistão. Fui recebida de braços abertos e logo passei a gostar de usar os vestidos afegãos que elas me iam emprestando.»
Começou a vender livros ainda adolescente. Tinha acabado de entrar para a engenharia, mas estava difícil encontrar os livros de que precisava. Numa viagem com o tio a Teerão, encontrou por acaso todos os títulos que estava procurando num dos ricos mercados de livros da cidade. Comprou vários exemplares que depois vendeu aos colegas em Cabul pelo dobro do preço. E assim nasceu o livreiro, e uma nova vida para ele: "Shah M Book Co". Como engenheiro só participou da construção de dois prédios em Cabul, antes que a sua mania por livros o arrancasse do mundo das construções. Novamente, foram os mercados de livros em Teerão que o seduziram. Andava na metrópole persa atrás de livros velhos e novos, livros raros e modernos, e encontrou obras que nunca sonhara que existissem. Comprou caixas e mais caixas de poesia persa, de livros de arte, de história e, para vender, livros didáticos para engenheiros.



«Abriu a sua primeira livraria em Cabul, entre lojas de temperos e kebabs, no centro da cidade. Eram os anos 1970, e a sociedade oscilava entre o moderno e o tradicional. O regente liberal e um tanto preguiçoso, Zahir Shah, estava no governo, e a sua tentativa de modernizar o país, embora timorata, provocou severas críticas dos religiosos. Houve protestos de vários mulás contra as mulheres da família real que se mostravam em público sem véu. As universidades e escolas do país cresceram consideravelmente em número, e com elas começaram as manifestações estudantis. Foram duramente combatidas pelas autoridades, e muitos estudantes foram mortos. Mesmo não havendo eleições livres, inúmeros partidos políticos surgiram nesta época, da extrema-esquerda aos fundamentalistas religiosos. Os grupos lutaram entre si e o sentimento de insegurança espalhou-se pelo país. A economia estagnou após três anos sem chuvas, e durante uma catastrófica fome em 1973, enquanto Mohammed Zahir Shah consultava médicos em Itália, seu primo Mohammed Daoud Khan tomou o poder que durava há 40 anos, e aboliu a monarquia. O regime do presidente Daoud foi ainda mais repressor do que o de seu primo, que durou até 1978 (assassinado em 28 de abril de 1978 em Cabul).»

«Mas a livraria de Sultan floresceu. Ele vendia livros e publicações editados por vários grupos políticos, de marxistas a fundamentalistas. Morava com seus pais e ia de bicicleta para a sua banca de livros em Cabul todas as manhãs, regressando a casa já de noite. Seu único problema era a insistência da mãe para que se casasse. Ela vinha sempre sugerindo novas candidatas, uma prima aqui, uma vizinha ali. Sultan ainda não queria começar uma família. Ele namorava várias jovens ao mesmo tempo, e não tinha pressa alguma de se casar. Queria estar livre para viajar e fazer negócios em Teerão, Tachkent e Moscovo. Em Moscovo, ele tinha uma namorada russa, Ludmila.»

 

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