Dois verões sem festivais de música ao ar livre é de enlouquecer, Mark Knopfler que o diga com o seu Shangri-La. É indescritível o desalento que muitos estão a sentir neste momento, festivaleiros e não só, para quem o Verão de 2021 significa o segundo consecutivo em que não conseguirão reencontrar os seus festivais de música de eleição.
Fui para Vilar e Mouros, faz hoje precisamente 50 anos, também era um sábado, à boleia com o Fernando. Completamente despreocupados, não levamos tenda, não levamos saco-cama, porque íamos ficar na casa de umas primas do pai do Fernando, a 100 metros do recinto onde se ia realizar o festival.
Partimos de Braga rumo a Vilar de Mouros, para assistir a um acontecimento inédito: Elton John e Manfred Mann em Vilar de Mouros, para além de uma dúzia de bandas rock portuguesas. Depois de várias boleias pelo caminho, chegámos lá já de noite, dentro de uma carrinha Citroen sem janelas, ainda com restos de milho e farinha, o fulano devia ser padeiro. E mal saíamos da carrinha demos de caras com um rapaz quase da minha idade, mais novo cinco dias, também chamado Fernando, os três da mesma terra, ele vestido à hippy, nós com roupa em segunda mão comprada na Trofa, na Rouparia Económica, um armazém de roupa importada da América. Nada de mochila às costas, que ideia? Ainda não entrara na gíria festivaleira. Por isso zarpamos para Vilar de Mouros como se fôssemos tomar café como habitualmente ao Peninsular da Arcada em Braga. Desenhamos apenas num pedaço de cartolina um dedo polegar gigante a dizer: Vilar de Mouros.
Como já disse, tivemos o privilégio de dormir e comer numa casa mesmo junto à ponte sobre o rio Coura, e não podia ser mais perto do recinto onde ocorreu o festival, a menos de cem metros. Lá viviam umas primas do pai do meu amigo, que nos receberam e trataram principescamente. E no dia seguinte apareceu por lá um tio do Fernando, o irmão mais novo do pai, que trazia consigo uma cabeleira, como se pode ver na foto tirada pelo tio com uma polaroide, onde estou sentado no carro do marido da prima do meu amigo.
Sem pretensões de historiador profissional, nem amador sequer, é Vilar de Mouros porque as condições extraordinárias do local, abrigado e diversificadamente rico, atraíram no século VIII os Mouros, que construíram uma aldeia de acordo com a sua cultura. No século IX, Paio Bermudes, no âmbito da reconquista da região norte, hoje designada por Entre-Douro-e-Minho, assenhoreou-se deste vilar e mandou construir uma igreja em honra de Santa Eulália, mártir hispânica. Com as incursões normandas a população migrou para o interior, tendo Vilar de Mouros beneficiado com este movimento dada a sua interioridade. Com estas convulsões o povoado passou para a posse do rei como terra autossustentada com monte, minas, sobrado, gado, vinho, pão e sal que era produzido no lugar de Marinhas onde o fluxo das marés se fazia sentir. Em 1855 com o encerramento da Fábrica de Cerâmica de Viana, alguns operários fundaram no lugar de Além Ponte, em Vilar de Mouros, uma nova fábrica que exportava principalmente para o mercado galego a sua produção. O barro vinha da Figueira da Foz e de barreiras locais, e a areia para o vidro era transformada no moinho do Viso da Quinta da Barze.
E agora dou entrada ao médico Augusto Barge, o grande impulsionador dos festivais de Vilar de Mouros. A primeira experiência já tinha sido conseguida em 1968, onde reuniu a Banda da GNR, Zeca Afonso, Carlos Paredes, Luís Gois, Adriano Correia de Oliveira, Quinteto Académico+2, Shegundo Galarza e alguns grupos folclóricos. Estima-se que assistiram a este festival cerca de quinze mil pessoas, repartidos por três dias. Bom, então para o Festival de 1971, depois de alguma indefinição, acabou por ser contratado Elton John, por 600 contos; e os Manfred Mann que terão custado pouco mais de cem contos. É claro, estavam contratados automaticamente os conjuntos (como se dizia nessa altura) portugueses: Quarteto 1111, Pentágono, Sindikato, Chinchilas, Contacto, Objectivo, Bridge, Beartnicks, Psico, Mini-Pop, Pop Five Music Incorporation, e outros.
Vilar de Mouros, a partir daí, passou a ser um destino turístico. O Dr. Barge exercia em Lisboa, mas sempre que chegava a Vilar de Mouros, a sua casa tornava-se num consultório. Os mais carenciados, o Dr. Barge fazia questão de ajudar. Daí a estima que granjeou no povo, que o recorda como o homem que colocou a aldeia no mapa. Se hoje ainda há alguma reverência perante a figura do médico, em 1971, numa comunidade rural, a palavra de um médico pode-se quase dizer que fazia lei. E isso foi determinante para o sucesso deste festival, não só para a aceitação perante a comunidade local, mas também como fator de crédito perante a sociedade em geral e até perante os intervenientes diretos. Não era um qualquer empresário, negociante ou investidor a promover o festival, mas um médico com vida organizada, com meios financeiros, com património à vista e com reconhecimento social, que dava crédito à iniciativa.
Rapidamente as estradas se encheram de jovens de cabelo comprido e vestidos de forma extravagante. O trânsito automóvel entre Caminha e Vilar de Mouros esteve parado durante horas, e a aldeia transformou-se de repente num enorme acampamento, numa confusão indescritível. Os terrenos reservados pela organização para acomodação dos campistas foram-se transformando em parques de estacionamento de automóveis, que não tinham sido previstos e todos os cantos serviam para montar uma tenda ou apenas um simples toldo. As margens do Rio Coura desapareceram debaixo do colorido das lonas das tendas, a paisagem transformou-se por completo em milhares de jovens. Nos locais de maior confluência alguns hippies vendiam artesanato típico do movimento e que atraía muitos curiosos. A população assistia a tudo isto com estupefação, mas ao mesmo tempo curiosa, como se de uma invasão pacífica e exótica de bárbaros se tratasse. Também havia estrangeiros - "Non-problème", o movimento hippie era internacional, pacifista e demonstrava-o na prática. Durante todo o Festival não houve registo de qualquer incidente ou altercação e a segurança esteve a cargo de um pelotão de 45 elementos da GNR do Porto, e, obviamente de alguns elementos da DGS (polícia política) que não chegou a uma dúzia. Até chegaram a protagonizar uma cena cómica ao confundirem a soprano Elisette Bayam com outra pessoa na clandestinidade. As forças da GNR tiveram uma atuação pautada pela discrição, procurando não estar à vista.
A comida nas redondezas esgotou-se em todo o lado passado pouco tempo. Inclusivamente, há relatos de populares que distribuíram alimentos pelos festivaleiros mais esfomeados. Os campos de milho e as hortas começaram a receber visitas. Os sanitários colocados para o efeito não chegaram para as encomendas. No final do Festival, pode-se mesmo dizer, a maior parte das culturas estavam dizimadas. A população condescendeu de uma maneira geral, até porque tinha a promessa do Dr. Barge em indemnizar todos os prejuízos. Muitos festivaleiros optaram por se deslocar a freguesias vizinhas na busca de alimentos. Caminha, em breve, se viu invadida por uma turba esfomeada. A primeira reação dos comerciantes foi encerrar os seus estabelecimentos. Mas depois, com a atitude pacífica e simpática dos hippies, mudaram de opinião. As lojas abriram, e os cafés serviram o melhor possível toda a gente que aparecia.
Muitos dos que trabalhavam no campo tinham emigrado “a salto” para França, onde aprenderam, da noite para o dia, novas profissões, fazendo todos os sacrifícios para um dia regressarem. Estávamos em 1971 na chamada “primavera Marcelista” que, após alguns tímidos avanços e outros tantos recuos, não logrou vingar. Se é certo que a muito contestada PIDE tinha mudado de nome e agora era designada por DGS, os métodos eram os mesmos e os objetivos não tinham sido alterados. A guerra em África continuava a matar e a mutilar jovens, o Estado continuava a recusar qualquer solução política, apostando tudo na solução militar que já se arrastava há uma década. A censura continuava vigilante e ativa. Os cortes na imprensa e todo o tipo de proibições estavam a tornar-se cada vez mais ridículos. E o ridículo também mata regimes políticos. Na esfera do censor estavam os livros, o cinema, a imprensa e o mundo da música onde inúmeros cantores de intervenção foram banidos por completo. Tudo o que tivesse a autoria, por exemplo, de José Mário Branco, José Afonso ou Ary dos Santos era proibido e apenas podia ser editado ou transmitido clandestinamente. De facto, Portugal vivia entre a angústia da guerra, o desconhecimento da situação real, o isolacionismo político e um nível sócio cultural muito atrasado em relação aos vizinhos europeus.
Tal como em Woodstock, o Festival de Vilar de Mouros, em 1971, deu prejuízo. Apoio estatal não houve. E o único patrocínio chegou do Secretariado Nacional da Informação, no valor de Trinta Contos (30.000 Esc.). Só em publicidade, feita apenas em Portugal, a organização terá gasto cerca de Trezentos Contos. Houve as receitas da bilheteira. Pelas contas do Dr. Barge, o Festival custou Dois Mil Contos. A RTP comprometeu-se financiar com uma verba pelas filmagens do Festival. Mas à última hora o seu presidente, Ramiro Valadão, voltou com a palavra atrás. Apenas apareceu uma pequena equipa para um apontamento de reportagem. É claro, não seria de esperar outra coisa senão serem convidados a abandonarem o recinto. Bem diferente foi o modo como a imprensa internacional foi recebida, pois circularam com todo o à vontade, tendo muitos deles dormido e comido na casa do Dr. Barge. Em meados dos anos 80 tive o prazer de conhecer o Dr. Barge na sua casa de Vilar de Mouros, numa visita que fizemos com um casal de amigos. Nessa altura, na pequena aldeia de Vilar de Mouros, a meia dúzia de quilómetros de Caminha, o tempo continuava a passar devagar, como em todas as aldeias minhotas.
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