quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Trocar seda por lã – um romance algures num centro equidistante entre Istambul e Xi’an





Istambul marca o extremo oeste da Rota da Seda, hoje a maior cidade da Turquia e a quarta maior do mundo, com 15 milhões de habitantes na sua área metropolitana. A grande maioria da população é muçulmana, mas também há um grande número de laicos e uma ínfima minoria de cristãos e judeus.

Xi'an, localizada na província de Shaanxi, China, com 5,4 milhões de habitantes, conhecida como Chang'an (Paz Eterna), marca o extremo leste da Rota da Seda e foi o lar das casas dominantes das dinastias Zhou, Qin, Han e Tang. Em sítios arqueológicos nas planícies circundantes de Xi'an encontra-se o famoso Bingmayong (Exército de Terra Cotta), milhares de figuras em tamanho real, moldadas à mão, que foram enterradas com o primeiro imperador da China, Qin Shi Huang.

Com os Talibans a voltarem ao poder no Afeganistão, e o facto de a China com o seu projeto da Nova Rota da Seda do século XXI (mais conhecida como One Belt, One Road) devemos tentar perceber o que o Afeganistão representa para a sua nova estratégia comercial com o Ocidente. Não nos devemos admirar, com a retirada dos EUA,  que passe a partir de agora a ser a China a ditar as regaras do jogo naquela vasta região, que ao longo de milénios e apesar da sua agreste geografia, sempre representou um nó estratégico nas trocas comerciais entre Oriente e Ocidente.




O antigo geógrafo e astrónomo Ptolomeu [90-168] fala na dimensão longitudinal do mundo e de um ponto médio na rota comercial entre a Europa e a China. A esse ponto chama Torre de Pedra. Mercadores gregos faziam todo o caminho até à Torre de Pedra, onde encontravam outros mercadores vindos da China. Era um ponto central, muito adequado aos mercadores que viajassem em direções opostas. Encontrar-se-iam aqui e trocariam as suas mercadorias. Para uns, esta Torre estaria localizada onde hoje é a fronteira entre o Uzbequistão e o Afeganistão. Para outros, entre o Afeganistão e o Paquistão, onde há um Templo Budista, e uma 'estupa' que preserva no seu interior uma estupa mais pequena, coberta por uma misteriosa inscrição. 
Para outros ainda, a Torre de Pedra de Ptolomeu deverá localizar-se em Daroot-Korgon no vale Alai do Quirguistão, que se estende por uma longa distância e fornece pastagem abundante, fazendo dele uma linha de tráfego privilegiada para as caravanas.

As montanhas são inúmeras e as pessoas que vivem nos vales são frequentemente de etnias sem qualquer relação falando línguas tão diferentes como as orgulhosas línguas europeias entre si. Montanhas, ravinas profundas, picos nevados e entre eles castelos e aldeias alcandoradas nas encostas. A visão do viajante perde-se na distância e sente-se que seria preciso viver pelo menos tantos anos como o mais velho habitante da mais remota aldeia antes de se começar a perceber o que se tem pela frente. Em parte, tal deve-se à cordilheira montanhosa sem fim, em que os picos separam aldeias e vales, multiplicando a distância. É também resultado do facto extraordinário de durante séculos se ter marcado aqui encontro entre a Europa e Ásia, entre civilizações, movendo-se em diferentes direções ao mesmo tempo. A cordilheira montanhosa foi sempre uma barreira entre a civilização e a barbárie, mesmo apesar dessas forças terem mudado de lado por algumas vezes.

Passa-se uma fértil planície escondida entre algumas das mais altas montanhas do mundo. A duas ou três horas da fronteira com a China, encontra-se a cidade de Tashkurgan, sede do condado autónomo da província de Kashgar, no Oeste de Xinjiang. O condado é o único condado autónomo tajique da China.




Aninhada num amplo vale, é onde muitos viajantes pernoitam para poderem passar a fronteira para o Paquistão ao romper do dia. Aqui há uma estrada que conduz diretamente ao vale Hunza no Paquistão. Mas antes dessa estarda há outro caminho, antes de Tashkurgan, que nos leva até ao outro lado do corredor Wakhan, que foi a rota tomada pelo Marco Polo. Ela prolonga-se até à famosa metrópole comercial de Bactro, província do Afeganistão, cuja capital é a cidade de Mazar-e Sharif.




Depois podemos atravessar o Vale Panjshir (literalmente Vale dos Cinco Leões) um vale no centro-norte do Afeganistão atravessado pelo rio Panjshir, perto da cordilheira do Hindu Kush, a 150 Km de Cabul. O vale abriga mais de 100.000 pessoas, incluindo a maior concentração da etnia tajique do Afeganistão.

Como disse atrás, com a chegada dos talibans a Cabul em 15 de agosto de 2021, Panjshir é para já uma das poucas partes do Afeganistão que continua ainda sob o controle efetivo da República Islâmica do Afeganistão, em oposição ao agora proclamado Emirado Islâmico do Afeganistão pela tomada do poder pelos Talibans. Por isso, afegãos da etnia Pashtun, que temem retaliação por parte dos talibans devido a terem colaborado com o regime anterior, procuram fugir para o Paquistão. E a via mais segura passa pelo Desfiladeiro de Khyber. E as mulheres suplicam: "
Por favor, prefiro ir para Hayatabad, para junto dos nossos parentes". A vida de casados oscila entre dois polos. O romance termina sempre que a cidade é invadida: "Há muito que estou farta de andar tapada, sem que ninguém me pudesses ver". 

Depois de duas horas por estradas estreitas, com a montanha de um lado e o abismo do outro, algumas horas a cavalo, lá se chega à planície de onde se avista Peshawar. A história registada de Peshawar remonta a pelo menos 539 a.C., tratando-se da cidade mais antiga do Paquistão, e uma das cidades mais antigas do sul da Ásia. Hayatabad é um subúrbio da região oeste de Peshawar. O Desfiladeiro de Khyber é uma passagem de montanha na província de Khyber Pakhtunkhwa no Paquistão, na fronteira com o Afeganistão (província de Nangarhar). Liga no Paquistão a cidade de Landi Kotal ao vale de Peshawar em Jamrud, atravessando parte das montanhas Spin Ghar. Era por aqui que outrora seguia a Rota da Seda. São 5 Km de passagem pelo ponto mais alto das montanhas e apenas 500 metros no ponto mais baixo em Jamrud.




Durante milhares de anos, o Desfiladeiro de Khyber tem sido invadido por pessoas indesejáveis. Persas, gregos, moguls, mongóis, afegãos e bretões já tentaram conquistar a Índia conduzindo seus exércitos através deste desfiladeiro. No século VI a.C. o rei persa Dario conquistou grandes áreas do Afeganistão e continuou a marcha através do Desfiladeiro de Khyber até ao rio Indo. Dois séculos depois foram os generais de Alexandre Magno que conduziram as suas tropas através do desfiladeiro, em cujo trecho mais estreito não passa mais que um camelo carregado ou dois cavalos lado a lado. Gengis Khan destruiu grandes partes da rota da seda, enquanto outros viajantes mais pacíficos, como Marco Polo, só seguiram o rasto das caravanas no caminho para o Oriente. Desde o tempo de Dario até os britânicos conquistarem o desfiladeiro, no século XIX, as tropas invasoras quase sempre encontraram grande resistência das tribos Pashtun das montanhas circundantes. Depois que os ingleses se retiraram, em 1947, as tribos novamente assumiram o controlo do desfiladeiro e do distrito até Peshawar. A mais poderosa delas é a tribo Afridi, temida por seus guerreiros.

A primeira coisa que se vê ao cruzar a fronteira continuam a ser as armas. Ao longo da estrada principal do lado paquistanês vêem-se a intervalos regulares as palavras Khyber Rifles entalhadas na encosta ou pintadas em placas sujas na paisagem árida. Durante a Guerra do Afeganistão a Passagem Khyber tem sido uma rota importante para reabastecer armamento militar e alimentos para as forças da NATO no teatro afegão de conflitos desde que os EUA iniciaram a invasão do Afeganistão em 2001. Quase 80% dos suprimentos da NATO e dos EUA trazidos por estrada foram transportados através da Passagem Khyber. Também tem sido usado para transportar civis do lado afegão para o paquistanês. Até finais de 2007, a rota era relativamente segura desde que as tribos que viviam lá, principalmente a tribo Afridi, que é de etnia Pashtun, foram pagas pelo governo paquistanês para manter a área segura. No entanto, depois desse ano, os Talibans começaram a controlar a região, e assim começaram a existir tensões mais amplas em sua relação política. Desde o final de 2008, comboios de abastecimento e depósitos nesta parte ocidental têm sido cada vez mais atacados por elementos ou supostamente simpatizantes do Taliban paquistanês. Em janeiro de 2009, o Paquistão isolou a ponte como parte de uma ofensiva militar contra os guerrilheiros talibans. Esta operação militar foi focada principalmente em Jamrud. Mais de 70 pessoas foram presas e 45 casas foram destruídas. Além disso, duas crianças e uma mulher foram mortas. Como resposta, no início de fevereiro de 2009, insurgentes talibans cortaram temporariamente a Passagem Khyber fazendo explodir a ponte que era estratégica na passagem.

Esta situação cada vez mais instável no noroeste do Paquistão fez com que os EUA e a NATO ampliassem as rotas de abastecimento, através da Ásia Central (Turquemenistão, Uzbequistão e Tajiquistão). Até mesmo a opção de fornecer material através do porto iraniano do extremo sudeste de Chabahar foi considerada. Em 2010, a já complicada relação com o Paquistão, sempre acusada pelos EUA de hospedar talibans nesta área fronteiriça sem o reportar, tornou-se mais dura depois que as forças da NATO, sob o pretexto de mitigar o poder taliban sobre esta área, executaram um ataque com drones sobre a linha Durand, passando pela fronteira do Afeganistão e matando três soldados paquistaneses. O Paquistão respondeu fechando a passagem em 30 de setembro, o que fez com que uma caravana de vários camiões batesse com o nariz na fronteira fechada. E que foram atacados por extremistas aparentemente ligados à Al Qaeda, o que causou a destruição de mais de 29 camiões e a morte de vários soldados. Em agosto de 2011, a atividade na Passagem Khyber foi novamente interrompida devido aos ataques da insurgência sobre as forças da NATO, que haviam sofrido um período de grande número de assaltos sobre os camiões que se dirigiam para abastecer as coligações da NATO e da ISAF por toda a linha de fronteira. Essa instabilidade fez com que a Associação dos Proprietários dos Camiões-Cisterna do Paquistão exigisse mais proteção do governo paquistanês e dos EUA ameaçando não fornecer combustível para o lado afegão.

Khyber Rifles é o nome de uma fábrica de armas, mas também da milícia tribal responsável pela segurança na área. A milícia tem grandes riquezas para proteger. A aldeia próxima à fronteira é conhecida pelo seu mercado de contrabando, onde se podem comprar haxixe e armas a preços baixos. Ninguém pede licença para porte de arma, mas, quem for apanhado a contrabandear armas para território paquistanês, há grande risco de ficar atrás das grades por muito tempo. Entre as casinhas de barro resplandecem palácios grandiosos, construídos com dinheiro do mercado paralelo. Pequenos fortes de pedra e casas tradicionais dos Pashtun, cercados de muros altos, espalham-se pela encosta. Aqui e ali surgem na paisagem paredes de cimento, os chamados dentes de dragão que os ingleses construíram por medo de uma invasão alemã vinda da Índia durante a Segunda Guerra Mundial. Há vários casos de estrangeiros sequestrados nestas áreas tribais indomáveis, e as autoridades têm tomado medidas severas para resolver o problema, mas sem grande resultado. Aos estrangeiros é proibido viajar sem guardas, até na estrada principal que vai a Peshawar, patrulhada por tropas paquistanesas. Os guardas mantêm as armas carregadas durante toda a viagem. Os estrangeiros não podem sair de Peshawar em direção à fronteira afegã sem os vistos e um guarda armado.

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